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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 404)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 7 de maio de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Um pedaço de flanela

Lydia Federici

Examinando o assunto, a gente chega à conclusão de que há dois contratempos. Dois senões. Que de forma alguma se coadunam. Que não combinam. Que não podem marchar lado a lado. E o pior da história é que nenhum desses fatores pode ser modificado. Existem. Acho que desde que o mundo se tornou habitado. E, aí, continuarão a existir até que a nossa valente raça se acabe.

Um deles é o clima. Temperatura quente durante parte do ano. Fria, logo a seguir. Que aquecedor, no inverno, conseguiria, em junho, julho, esquentar todo o Hemisfério Sul? Toda esta cidade?

O outro senão reside na fabricação. Nem americano, com sua industrialização em série, capaz de aperfeiçoar e acelerar qualquer produção, conseguiu dar jeito no fabrico de nenês. Explico-me de forma mais clara.

O problema, nesta, como em todas as entradas de inveno, é o frio que nos maltrata. Quem tem posses para alimentar-se bem, para comprar abrigos, vai varando invernos sem outro problema maior senão o de empoar mais frequentemente uma ponta de nariz sempre avermelhada. Acontece que nem todos conseguem defender-se. Por falta de meios. E, nessa desgraça, quem pena mais é criancinha sem defesa. Daí aquela afirmação de que inverno não combina com o fabrico e os primeiros meses de vida de nenezinhos. Compreendeu, amiga?

Durante nove meses o nenê foi sendo fabricado numa pequenina e quente sala escura. De temperatura sempre estável. Aqui fora, o sol pode estar derretendo asfalto. O vento gelado, endurecendo, entanguindo mãos e pés e estômagos. Mas lá, na escuridão sossegada em que dia a dia toma forma, o pequeno ente está sempre mergulhado na mornice. Constantemente igual. Protetora e amiga.

E, de repente, isso se acaba. Você já viu, amigo, um recém-nascido? Por que se cala quando um xalezinho de lã o abriga? Por que deixa de chorar quando volta a sentir o calor de um peito que o aconchega?

Nenê chora de frio, amigo. Pode ser de fome também. Como pode ser por sentir uma dor qualquer. Mas nenê chora de frio, amigo. E não é só nos primeiros dias de vida, não. Você já viu de perto um bebê com um ano de vida? Acha que aquela pele fina é para dar-lhe calor? A sua pele já acostumada ao vento, os seus músculos rijos, amigo, servem-lhe de grande proteção? A você, que a vida já temperou? E enrijeceu?

Nenê, mesmo neste nosso começo de inverno, sente frio, amiga. Não o seu. Felizmente. Que suas mãos lhe teceram casaquinhos. Seu dinheiro lhe pôde comprar agasalhos. Mas há nenês pobres em Santos, amiga. Um mundo deles. Cem, pelo menos, estão na Gota de Leite. Mande-lhes um pedaço de flanela. Dois metros são suficientes. Apenas dois metros para uma criança de Santos não chorar de frio.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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