GENTE E COISAS DA CIDADE
Um pescador teimoso
Lydia Federici
Por que o mundo é assim? Porque há gente assim.
Foi ontem. O primeiro dia feio, cinzento e frio, depois de semanas de sol. De calor muito doce e amigo. De luz clara ou escura, durante o dia ou a noite, mas sempre alegre e carregada de paz.
Chovera. Pela madrugada. E ventara. Estragando o fim gostoso de sono de muita gente cansada pelo mormaço. Ia voltar a chover na manhã de céu baixo. Cinzento. A ventania acalmara. Mas um vento frio, vindo do Sul, continuava a encrespar a pele ainda quente da gente santista. E, mais que os corpos arrepiados, o vento ondulava todo o mar. As ondas, carregadas de areia, formavam-se ao longe. Sacudindo os navios ao largo. E arrebentavam, fortes, seguidas, por toda a praia. Quase junto do jardim.
Na Ponta da Praia, de cinco segundos, o paredão de cimento em arabescos recebia franjas novas. Brancas de espuma. A água batia com fúria. Lavando os passeios carregados de detritos marinhos.
No ponto final dos bondes, um senhor, olhando o mar, pulou para o chão do abrigo. Erguendo, com cuidado, uma vara de pesca. Com carretilha. Rebrilhante de niquelados. Devia ser nova. O verniz não mostrava um único arranhão. Ou então não o era. Que pescador caprichoso gosta de ver sua vara sempre impecavelmente limpa. Faiscante no amarelo e na prata dos metais.
Caminhou para a Ponte dos Práticos. Pela beira do passeio do paredão. As pernas prontas para saltar para o meio da rua, se uma onda lhe saltasse à frente. Não foi necessário. O mar comportava-se.
Na ponte, encostou a vara ao ombro. Largou o vidro com as iscas sobre o parapeito molhado. E ficou a olhar o mar. Agitado sob os seus pés calçados. Engraçado. O prazer de pescador é vestir-se como pescador. Com roupas coçadas. Cômodas. Sapatos de corda. Mas ele não devia ser desses. Vestia boas calças. Camisa de mangas compridas que um pulôver bege escondia. E calçava sapatos pretos de verniz. Se não novos, muitíssimo bem conservados.
Olhou a superfície do mar junto da ponte. Pedaços de madeira batiam nas colunas. Galhos de árvores ajudavam a encrespar as constantes pontas de água. Sempre irrequietas. Por uns minutos, acariciando a vara, ficou a fitar o remoinhar das águas turvas. Um petroleiro descarregado da Texaco saía com preguiça. Nem o olhou. Só lhe interessava o viveiro dos peixes. Quando as ondas da esteira do navio estouraram contra o paredão, ele tomou a sua decisão. Ali não daria peixe.
Agarrou o vidro com as iscas, levantou a vara e foi para a ponta do ancoradouro. Onde os barcos, empurrados pelas ondas, batiam os pneumáticos protetores conra o cimento. Rangendo de leve. Aquele trecho de mar também não o deve ter agradado. Com a vara novamente apoiada contra o ombro, passou a investigar o outro lado da entrada da barra. Onde os vagalhões lavavam, com espuma muito branca, as rochas nuas e tiritantes.
Deus! De algum lugar daquele mar irado ele arrancaria um peixe. Saíra para pescar.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|