GENTE E COISAS DA CIDADE
Esses trabalham
Lydia Federici
Funcionário público? Eis aí um tipo feliz. Segundo a opinião geral, bem entendido. Trabalha pouco. Ou nada. Funciona quando lhe dá na telha. E, embora seja povo, penando as mesmas agruras, com ele não se identifica. Não quando está, ou deveria estar, em função. Obrigações tem. Dribla-as, sempre, entretanto. E bem. Não fossem todos eles conterrâneos do maior driblador do mundo. E escapam às obrigações, não permitem, porém, que o menor de seus direitos seja esquecido.
É ou não assim que, por culpa de uma boa parte de empregados públicos, classificamos, indistintamente, toda a classe? Invejando-lhes os privilégios?
Na Prefeitura, por exemplo. Você sobe a escadaria. Vai varando corredores. Pelas portas abertas, olhos tranquilos olham os papéis que você segura na mão. E sorriem. Sorriem com zombaria. Parecendo antegozar as agruras que sua paciência terá que suportar.
Já com o mau humor aumentado, você pega um rabo de fila. A que lhe pareceu menor. E ali fica. Avançando dez centímetros de minuto em minuto. Às vezes esperando cinco. Plantado no mesmo lugar. Mas será que até para pagar uma taxa, com a qual, de forma alguma, nem sua boa, nem sua má vontade concorda, é aquela desorganização? Que fazem os caixas? Tomam cafezinho? Discutem futebol? E você, contribuinte a muque, que espere? De pé. Roçando corpos tão suados e impacientes quanto o seu. Aguentando um abafamento de dar vertigem? Desaforo. Desaforo, puro.
É. Saia da fila, amigo. Dê a volta e entre por trás. Escolha um daqueles seis cubículos. Fique atrás do guichê. Para o serviço andar. Isso. Receba os avisos. Alise-os. Procure o total de cada um. Verificando se estão dentro do prazo. Faça a soma de todos. Receba o dinheiro. O senhor contribuinte não tem sessenta centavos? Não importa. Vai assim mesmo. Só que, no fim do expediente, acerte de seu bolso todos os centavos que não entraram. Não importa? Então dê o troco. Em notas novas. Que ninguém aceita manolita (N.E.: cédula de dinheiro. Possivelmente denominação derivada da figura de D. Manuel I estampada no vintém que chegou ao Brasil com as primeiras caravelas) rasgada. Não. Por nada. Só de pirraça. Que manola, hoje, não vale nada. Mas uma vingança tem sabor especial.
Trabalhou depressa? Ótimo. Continue a correr, assim, durante seis horas. Receba. Some. Confira. Dê troco. Receba. Alise. Some. Confira. Faça troco. Cansou? Tonteou? Tem vontade de mandar tudo para o ar? Passe para o guichê anexo. Onde trabalham as moças. Autenticando os recibos. Faz calor? Seus pés enformigaram? Dance sobre eles. Não. Com aquela máquina só dá jeito de trabalhar de pé. Que fazer? É aguentar.
Terminado o expediente, confira o caixa. Confronte somas. Deu certo? Não? Azar. Faça tudo de novo. Conte o dinheiro. Arrume-o em maços de dez. Atulhe o cofre. Depois de ver aquele mar de dinheiro, veja se encontra, em seu bolso, uma nota de mil para comprar as injeções para o Alfredinho. Não tem?
No fim do mês, envelope 4 mil ordenados. Volte a receber. Some. Confira. Dê troco. Receba. Alise. Some. Confira. Faça troco. Isso no inverno e no verão. Dia após dia. Uff!
Funcionário público? Gente folgada? É. Mas há os que se viram. Os da Tesouraria, por exemplo. Entre outros. Para alegria de 4 mil colegas. E azar, ai, de cinquenta mil contribuintes. Da Prefeitura Municipal de Santos.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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