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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 382)

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Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 6 de abril de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Cais ao anoitecer

Lydia Federici

A conversa fôra além do pôr do sol. Não era noite ainda. Havia claridade suficiente para bordejar o canal 5, da Afonso Pena para o Norte, sem necessidade de excomungar as luzes fracas dos postes distanciados.

Como ainda há chão verde por aquelas alturas. E cheiro de mato. E nuvens de mosquitos. Levantando-se das valas de água podre. Terminadas as touceiras de bambu e de bananeira, aparece um chão limpo. Nivelado. Atapetado de pedregulho minúsculo. Cinzento pálido. Chilreador sob os passos. É o único sol que se ouve naquele fim de cais. Ao anoitecer.

Sobre o telhado do armazém 31, de paredes douradas pela luz forte dos refletores, levantam-se os pastros de um cargueiro. Não há movimento a bordo. Talvez só na cozinha. Deve ser hora da janta.

Janta? Que faz aquele vulto à beira do paredão? O corpo agachado recortando-se contra o fundo tranquilo da água? Pesca. Sem vara. Só com linha. Pesca o que? Sua janta. Uns bagrinhos amarelos. Menores que sardinha. É prático o pescador. Sua isca é econômica. As vísceras do peixe que pegou enganam o companheiro que pegará. Se eles mordem? Devem morder. Já há quatro bagres limpos na sacola suja. Aberta sobre o paredão.

Da Ponta da Praia, pelo canal escuro, avança um cargueiro. Pequeno e escuro. Desliza mansamente. Silencioso. Sem pressa de chegar. Bobo. Espírito de contradição. Não vê que os marinheiros estão loucos pra pisar terra? Mas o navio não compreende. Que tem ele à sua espera? Ninguém.

Nos últimos metros de cais construído, quatro pesqueiros japoneses aconchegados, contam-se histórias de alto-mar. À última claridade do anoitecer, mostram a ponte de comando enferrujada. Caixas ainda úmidas empilhadas na popa. As redes, embrulhadas num rolo grosso, aumentando o volume dos mastros. Onde a graça das malhas esvoaçantes? Caindo abertas, sobre o mar?

O mar? É um braço estreito e escuro. Cor de chumbo. Liso de enraivecer. Quando muito, e por muito favor, reflete as luzes amarelas da Ilha de Santo Amaro. Imobilizando-lhe a estria cor de ouro.

Mas, que diabo, onde está o porto de Santos? Esse porto de trabalho? De guindastes barulhentos? De homens atarefados? De vagões, empilhadeiras, caminhões em constante movimento? Não existe àquela hora. Não trabalha naquele fim de cais. Ali há apenas sugestão de porto. É um pedaço de paredão flutuante que toma fôlego para o dia de amanhã.

Só quando um pequenino Maru pesqueiro põe o motor a ronronar é que chega, de improviso, a impressão de cais. E então se percebe a força que há naquela tranquilidade. O vigor do aço imóvel.

E a imperssão se completa quando, de um canto qualquer, cantante, explosivo, um palavrão sacode até a lua. Semi-escondida nas nuvens encarneiradas.

***

Tire meia hora, amigo, para ir ver aquele pedaço de cais. Ao anoitecer.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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