GENTE E COISAS DA CIDADE Carnaval do menino
Lydia Federici
O garoto trepou no muro alto, olhou para fora e zás… encontrou-se na rua. Andou, no começo, colado à parede, fazendo-se pequenino. O bater
surdo do bumbo, chegando de muito longe, ritmou-lhe, aligeirando-os, os passos leves. Três quadras mais adiante, meteu-se, liberto do medo, no meio do povo que continuava a passar rumo ao Boqueirão.
Chegando ao Ouro Verde, tentou varar a multidão parada. Passou sob braços entrelaçados, empurrou pernas plantadas no passeio. Conseguiu, espremendo o corpo miúdo, ficar na primeira fila, sentindo a corda grossa a
palpitar contra o peito, no mesmo ritmo dos tambores. Do mesmo jeito que batia seu coração. Viu a rua vazia. O desfile não começara. Ou já passara algum bloco? Não teve coragem de perguntar. Olhou os prédios altos, com serpentinas que o vento
encaracolava. O papel picado caindo de lá de cima parecia que vinha do céu. Será que lá também existia Carnaval? Sorriu.
Um moleque do lado deu-lhe um pisão no pé descalço. Num gesto instintivo de defesa, empurrou-o.
"Ei. Vai querê apelá?"
"Não. Mas tu pisou no meu pé". Ficaram a olhar-se com animosidade. E a briga não saiu porque o paredão humano avançou sobre a corda.
"Aí vem o Santos. O maior!" O garoto se abre num sorriso. Chegara bem em cima da hora. Dobra o corpo para a frente, a corda amassando-lhe o peito.
Todos se debruçam para o começo da avenida. Berra o alto-falante coisas que ele não entende. Nem precisa entender. Ele só quer ver o Santos. Ao longe, no meio da rua, avança lentamente, sob aplausos, uma fila de homens vestidos de branco. O menino,
um nó na garganta sente a corda bater-lhe, cada vez com mais força, contra o peito inchado. Sem piscar, boca entreaberta, crava os olhos na mancha branca que avança. Dão-lhe uma cotovelada.
"O do meio é o Athié. Tá vendo? Aquele de bigodinho. É o presidente do maior. Do maior! Ou tu não acha que é?"
O garoto nem responde. Pra quê? A fila branca se abre e atrás aparecem os homens de branco e preto. Tocando violão. Coisa triste. Parece até que é como quando o Santos perde. Todos aplaudem. Ele não. Só sente tristeza.
Mas quando surge o grupo dos arlequins, pulando o frevo, é que ele encontra o Santos como o Santos é. Dono de tudo, com sua alegria, seu movimento, suas vitórias. O seu Santos. O seu clube. O seu alvinegro.
"Tu tá chorando? Que é que tu tem?" O garoto passa a mão suja no rosto. E some. Caminha de volta, ainda ouvindo a banda do Santos a tocar o frevo. Vai com o coração arrebentando. Mas tão leve. Tão leve.
E é leve também – e feliz – o pulo que dá para voltar para o asilo escuro.
"Eta, Carnaval bom!"
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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