GENTE E COISAS DA CIDADE Confusão
Lydia Federici
Rita ganhou um Volks. Ou melhor: o marido comprou. Para a família. Mas o carro é de Rita. Que é, com suas andanças de dona de casa, quem
dele realmente necessita. É ela que o limpa e lustra. Todo dia. E, como só mulher é que sabe, realmente, onde se esconde o menor grão de poeira, o Volks amarelinho é o carro mais reluzente da cidade. Brilha tanto que ofusca.
Há anos que Rita possui carta de habilitação. Mas, sem treino, ficou, no primeiro dia, ao lado do marido, a observar como ele engatava as marchas. Vinte e quatro horas depois, alvoroçada, tomou conta do carro. Andou pelas ruas de pouco movimento.
Andando 50 metros e parando. Até automatizar os movimentos. Penou um pouco para aprender a sair maciamente. Suou muito para encostar no meio fio, na medida exata, sem raspar os pneus. Vê lá!
Para evitar aperturas, naquele primeiro dia e nos dias subsequentes, ia sempre devagar. A cada esquina, buzina. E, quer estivesse na preferencial ou não, pé no breque. Está doido? Há tanto louco por aí.
E assim, logo, logo, Rita adquiriu prática. E segurança. Se bem que, ainda hoje, seu coração sempre salte quando um ônibus, atrás ou do lado, faz estremecer o Volks dos seus amores.
Depois de dois meses ao volante, só uma coisa ainda atrapalha o desembaraço de Rita. É o querer adivinhar o que os outros carros vão fazer. Para poder prevenir, com folga, qualquer situação apertada. No mais, a moça se desembrulha perfeitamente.
Conhece as ruas que dão mão, sabe onde pode estacionar: é até capaz de dizer, de cor, onde estão as sinaleiras, onde ficam os guardas, de dia e de noite, e onde estão os buracos ou valetas das ruas mais comumente percorridas.
Na última semana, entretanto, ao levar o marido para a cidade, recebeu uma boa e estridente apitada de um guarda. Estacou, assustada. O capacete-branco apontou-lhe o poste de sinalização. Entrara com o sinal fechado. O guarda sacudia o dedo. Rita
encabulou.
"Eu nem sabia que isso estava aí. Olhei, não vi nada, entrei". O marido sorriu, compreensivo. Nem ele reparara. Mas agora era preciso prestar atenção. A esquina tinha dono. Com três olhos autoritários.
Rita tomou nota. Conselheiro Nébias e Epitácio Pessoa. Sinaleira automática. Custou um pouco para habituar-se à modificação. Mas aprendeu. Chegava ali, olhava e obedecia. Às vezes, não havia nada no cruzamento. Nem indo, nem vindo. Mas Rita
obedecia ao olho vermelho. Era chato. Mas era a lei.
Na 5ª feira, o Volks chegou na esquina e parou. O sol batia em cheio nos vidros coloridos. Brilhavam os três, com intensidade igual. E agora? Qual estaria realmente aceso. Não conseguia perceber. Ficou um minuto à espera, ouvindo buzinas
impacientes,vendo os carros entrarem de todos os lados. A sinaleira não funcionava. Estava ali para dar confusão?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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