Fortaleza e Ilha de Villegagnon
Imagem: reprodução da página 54 do 1º volume da edição de
1941, da Cia. Editora Nacional
Capítulo III
Descoberta da América do Sul — Pinzon.
Se bem que a baía e a cidade do Rio de Janeiro encerrem grande interesse para o estudante de história em geral, e ainda mais para o cristão
protestante como sendo a porção do Novo Mundo onde a bandeira da Reforma foi pela primeira vez desdobrada, julguei mais conveniente incluir aqui um
breve resumo da descoberta e primeiras colonizações do Brasil.
Guanihani — o posto pioneiro do Novo Mundo — foi avistado por olhos europeus seis anos antes da descoberta da América do Sul. Em 1498, Colombo
desembarcou próximo às bocas do Orinoco. Ele registrou, em palavras entusiásticas, "a beleza da nova terra" e declarou que ele desejaria "não poder
mais ausentar-se de tão encantadora região".
A honra, todavia, da descoberta do Hemisfério Ocidental ao Sul da linha do Equador deve ser
atribuída a Vicente Yanez Pinzon, companheiro de Colombo e que comandava a Niña na gloriosa primeira viagem que tornou conhecida a existência
do Novo ao Velho Mundo.
Pinzon partiu de Palos em dezembro de 1499 e, atravessando o Equador, seus olhos se regozijaram com
a vista de um verde promontório, a que denominou Cabo Consolação. Este é atualmente conhecido como Cabo de Santo Agostinho, ponta de terra situada
imediatamente ao Sul da cidade de Pernambuco (N. E.: antiga forma de denominar a cidade do
Recife). Daí seguiu para o Norte, descobrindo a vasta embocadura do Amazonas, e tocando em
vários pontos até alcançar o Orinoco.
Cabral.
Quando Pinzon avistou os palmeirais, e as espessas florestas, e sentiu as perfumadas brisas que sopram dessas praias, supôs que estivesse visitando
a Índia além do Ganges, e acreditou ter viajado para lá da celebrada Catai. Em nome de Castela tomou posse da
formosa terra; porém, antes que voltasse à Espanha, Pedro Alvares Cabral, ilustre navegador português, havia reivindicado o território para o seu
soberano.
No regresso de Vasco da Gama a Portugal, em 1499, com a certeza de haver descoberto o caminho para
as Índias pelo Cabo da Boa Esperança, o rei Dom Manuel resolveu mandar uma grande frota àquelas famosas paragens, com instruções para entrar em
relações comerciais com os soberanos orientais ou, em caso de recusa, fazer-lhes guerra e submetê-los. O comando dessa expedição foi conferido a
Cabral e, no dia 9 de março, a grande frota, com seus 1.500 homens, soldados e marinheiros, zarpou entre grandes cerimônias militares e religiosas,
tendo o próprio rei honrado a partida com a sua augusta presença.
Com esse punhado de homens, destinados a trazer à força o Oriente para os desígnios comerciais de
Portugal, Cabral dirigiu-se ao arquipélago de Cabo Verde e, daí, a fim de evitar as calmarias que prevalecem
nas costas africanas, afastou-se tanto para Oeste que, sem intenção alguma de sua parte, descobriu, a 21 de abril de 1500, as mesmas terras que,
noventa dias atrás, haviam sido visitadas por Pinzon.
A descoberta de Cabral deu-se entretanto na atual província do Espírito Santo,
próximo ao Monte Pascoal [T20],
que está situado a oito graus ao sul do Cabo de Santo Agostinho.
Alguns autores brasileiros mencionam com má vontade a viagem de Pinzon; outros a ignoram, desejando aparentemente atribuir toda a glória a um de
seus antepassados portugueses. Não resta dúvida que Cabral foi levado pelos ventos alísios e pelas correntes — de que não tinha conhecimento — até
às costas do Brasil, realizando assim a sua afortunada descoberta.
Presentemente, os navios que saem da Europa para as Índias Orientais podem (como bem o demonstram
as cartas dos ventos e correntes do tenente Maury) apressar as suas viagens prevalecendo-se dos maravilhosos ventos alísios, que se dirigem primeiro
para a América do Sul e depois na direção do Cabo da Boa Esperança.
Pinzon partiu de Palos com a intenção de realizar descobertas no Ocidente; Cabral saiu de Lisboa
com instruções para prosseguir nas descobertas orientais de Vasco da Gama; mas, porque um feliz acidente (afirmam alguns que forte tempestade)
forçou a sua frota na direção do Brasil, e isso meses depois do desembarque do navegador espanhol no Cabo de Santo Agostinho, não há razão nem
justiça para que o orgulho nacional empenhe-se em tirar a prioridade da descoberta a Vicente Yanez Pinzon.
No Domingo da Páscoa foi celebrada missa; e a 1º de maio, repetiu-se a solenidade, tendo-se, na presença de milhares de
aborígenes, erguido uma alta cruz, com as insígnias de dom Manuel, e tomado posse solene em nome do rei de Portugal, da terra a que deram o nome de
Vera Cruz [A4].
Foi frei Henrique, de Coimbra, quem celebrou as cerimônias religiosas, no que foi piedosamente acompanhado (assim rezam as crônicas) pelos indígenas
"imitando os gestos e movimentos dos portugueses".
Dois degredados foram aí deixados com os nativos, tendo um deles mais tarde se tornado de grande utilidade como intérprete. Cabral despachou Gaspar
de Lemos para Lisboa, a fim de informar o soberano da descoberta e posse da nova terra da Vera Cruz, e depois prosseguiu na sua rota para as Índias
Orientais. O Papa de Roma lançou uma bula regulando o direito de posse das regiões descobertas por Espanha e Portugal, e assim se resolveu a questão
entre Pinzon e Cabral.
Gonçalo Coelho — Américo Vespúcio.
O rei Dom Manuel ficou profundamente interessado pelas informações trazidas por Gaspar de Lemos e, em maio de 1501, enviou a seus
novos domínios três caravelas sob o comando de Gonçalo Coelho [A05].
Numa delas veio Américo Vespúcio. Tal expedição teve mais insucessos que
sucessos, e foi substituída, em 1503, por uma segunda que, composta de um número duplo de navios, partiu, segundo alguns autores, sob o comando de
Cristovão Jacques e, segundo outros, do mesmo Gonçalo Coelho [A06],
acompanhando-a novamente Américo Vespúcio. Quatro das caravelas se perderam, com o comandante em chefe; mas o venturoso florentino escapou e viveu
para, indiretamente, privar as novas terras do nome que lhes deu Cabral.
As duas naus restantes penetraram numa baía, que se supõe hoje ser a espaçosa Baía de Todos os Santos, tendo em seguida percorrido 216 milhas para o
Sul ao longo da costa, ficando ancorada próximo da terra durante cinco meses, entabulando relações amistosas com os indígenas. Erigiram aí uma
fortificação, deixando nela 24 homens.
O nome de "Brasil".
A mais valiosa parte do carregamento que Americo Vespúcio levou de volta para a Europa foi a muito conhecida madeira de tinturaria, Cesalpinia
brasiliensis, denominada em português pau-brasil, em razão de sua semelhança com a brasa, carvão incandescente, tendo a terra donde ela provém
sido denominada "terra do pau-brasil" e, finalmente, resumindo a denominação, Brasil, que usurpou completamente os nomes de Vera Cruz ou Santa Cruz.
Essa mudança não se deu sem protestos da parte de alguns, — não que o seu gosto pela eufonia se
houvesse chocado, mas sob o fundamento de que a causa da religião requeria um título sacro para as belas possessões da fiel Lusitânia no Novo Mundo.
Um dos "reverendíssimos" declarou que foi pela expressa intervenção do demônio que uma terra tão
escolhida e formosa se teria chamado Brasil em substituição à piedosa designação dada por Cabral. Um outro — devotado jesuíta — produziu uma
jeremiada sobre o assunto, concluindo, com ênfase, por assegurar que vergonha era "a
cupidez dos homens, por um tráfico indigno, poder mudar o lenho da cruz, tinto de vermelho pelo sangue verdadeiro do Cristo, nessa outra madeira que
só se lhe assemelhava na cor"!
Baía do Rio de Janeiro.
Outras viagens foram empreendidas por ordem de Espanha e Portugal, tornando desse modo conhecido todo o litoral Leste da América do Sul, desde o
Amazonas até o estreito de Magalhães.
Entre os navegantes que comandaram tais expedições figuram De Solis e Magalhães. Em 1515, De Solis
partiu para a sua viagem ao Sul, descobrindo o Rio da Prata, que a princípio teve o seu nome. Quando para lá se dirigia, penetrou na baía hoje
conhecida como do Rio de Janeiro.
Fernando de Magalhães, português a serviço de Carlos I, de Espanha, partiu, em 1519, para descobrir
a passagem pelo Oeste para as Índias. A 13 de dezembro entrou na baía anteriormente visitada por De Solis, onde se demorou até 27 do mesmo mês,
tendo-lhe dado o nome de Baía de Santa Luzia, pela data de sua entrada coincidir com o aniversário da santa. Em seguida percorreu o litoral do
continente até penetrar nos estreitos que ainda têm seu nome e que, durante séculos, foram a única passagem conhecida para o Pacífico. Magalhães foi
o primeiro a circunavegar o globo.
Martim Afonso de Souza.
A versão comum da origem do nome Rio de Janeiro, tão impropriamente dado a uma baía, já foi por nós referida. Os fatos parecem contrariar a
explicação geralmente aceita de que Martim Afonso de Sousa descobriu essa vasta porção d'água — que ele supôs ser um rio — a 1° de janeiro de 1531.
É incontestável que essa baía tenha sido visitada pelo menos duas vezes antes de sua partida de Portugal.
Marfim Afonso de Sousa era um fidalgo português de alta linhagem, em grande estima junto à corte de
dom João III. Tendo esse rei recebido informações das visitas dos espanhóis às plagas que ele considerava de seu domínio, resolveu enviar uma
expedição comandada por Martim Afonso ao Brasil. Deu-lhe plenos poderes sobre terra e mar, tendo o mesmo vindo para fortificar e proceder à partilha
das novas terras.
Foi o primeiro donatário português no Brasil, tendo saído de Lisboa no dia 3 de dezembro de 1530.
Poucas semanas depois, avistava o Cabo de Santo Agostinho, próximo do qual encontrou três naus francesas. Deu-lhes combate, venceu-as e trouxe-as em
triunfo para o atual porto de Pernambuco. Após reparos, chegou à Baía de Todos os Santos, onde estava localizada a pequenina povoação do náufrago
Diogo Alvares Correia (Caramuru) cuja romântica história vai narrada em outro trecho deste livro.
Após uns dias de demora, zarpou de novo em direção ao Sul, e na data de 30 de abril de 1531, entrou
na baía que já havia sido denominada Santa Luzia e Rio de Janeiro. Refletindo-se um momento sobre a data, 3 de dezembro de 1530, em que Martim
Afonso de Souza partiu de Lisboa, e os vários acontecimentos e demoras da viagem, pode-se facilmente compreender que seria impossível percorrer mais
de cinco mil milhas (e não se tratava das modernas embarcações), combater e capturar três naus, reabastecer-se sucessivamente em dois portos
diferentes, e chegar à Baía do Rio de Janeiro a 1º de janeiro de 1531.
Além disso, temos o direto e singelo testemunho de Pero Lopes de Souza, irmão do comandante da
expedição, de que não só dá a data da chegada, como o fato de que a baía ou o suposto rio já era anteriormente conhecido como Rio de Janeiro: — "sábado,
30 de abril, às quatro horas da madrugada, estávamos na foz do Rio de Janeiro".
Martim Afonso não fundou qualquer estabelecimento nas margens da esplêndida baía em que penetrou, contentou-se apenas em permanecer nela alguns
meses, construindo aí três bergantins, e partiu para o litoral da atual província de São Paulo.
Num local que não possuía nenhum predicado natural para isso iniciou a primeira colonização
europeia no Brasil (o punhado de homens de Vespúcio e as palhoças indígenas de Caramuru não podem ser consideradas as primeiras colonizações),
denominando-a São Vicente.
São Vicente não existe presentemente, a não ser que se possa basear a sua existência nuns poucos
casebres miseráveis e numa fonte quebrada que assinala o local em que foi lançada a primeira pedra da orgulhosa colônia de Portugal. Nas margens da
espaçosa e segura baía do Rio de Janeiro, que Martim Afonso rejeitou por um exposto braço de mar, brotou a primeira cidade comercial da América do
Sul, terceira do Novo Mundo.
Passada glória de Portugal.
Não seria desinteressante lançar uma vista rápida para a situação, nessa época, do reino que enviou Dias, Vasco da Gama, Cabral, Cristóvão Jacques e
Martim Afonso de Souza para novas e ousadas viagens de descobertas.
O território de Portugal europeu não era então maior do que hoje, mas seus ambiciosos monarcas e
seus destemerosos navegadores haviam levado suas conquistas e descobertas não só ao longo de toda a costa oriental e ocidental da África, mas até á
longínqua Índia. Bartolomeu Dias descobriu o Cabo da Boa Esperança seis anos antes de Colombo descobrir a América; e Vasco da Gama dobrou o mesmo
cabo antes que o grande genovês desembarcasse na foz do Orinoco.
Portugal possuía prósperas colônias em Angola,
Luango e Congo, antes que Cortez houvesse incendiado suas naus no Golfo do México. Antes que a respeitável
Companhia da Índias Orientais fosse sonhada, os vice-reis e as empresas comerciais de Portugal já dominavam sobre milhões no
Industão e no Ceilão. Traficavam com os distantes Peguans e os pouco
conhecidos Burmeses, nas margens do Irrawaddy, trezentos anos antes que Judson proclamasse, junto do mesmo
rio, o evangelho do abençoado Salvador.
Séculos antes dos ingleses possuírem Hong Kong ou os
norte-americanos abrirem o Japão por meio de tratados comerciais, Portugal já possuía
Macau, mantinha relações com os curiosos chineses, comerciava com o Japão e, por intermédio de seus
sacerdotes, levava mais de um milhão desses ilhéus de olhos amendoados a abraçar o credo de Roma. De suas imensas aquisições por meio de conquistas
e descobertas, o Brasil certamente não seria a menor em importância e futuro.
Quando se considera o que Portugal já foi e o que é presentemente, pode-se apenas exclamar: — "Como
pode decair o poder!" Portugal foi pesado na balança e foi encontrado na miséria. Tosquiado em todas as suas possessões no Oriente, exceto um
território compreendendo Goa e algumas poucas ilhas sem importância, menores do que o estado de
Carolina do Sul, o seu comércio é atualmente apenas conhecido nos mares da Índia. Seus domínios a Oeste da
Ásia limitam-se ao pequeno território de seu reino na Europa, a colônias decadentes na África e a umas raras ilhas no Atlântico.
Não possui uma polegada de território no Mundo Ocidental, onde já possuiu um quarto do continente.
Não contou para tanto com o sal conservador de um puro Cristianismo para preservar a sua moralidade e grandeza. Como a Espanha, tornou-se um dia
patrono e protetor da Inquisição; e, se bem que os portugueses sejam muito mais tolerantes que os espanhóis, ainda assim o governo de Portugal
ajudou a maldita arma da intolerância romana até 1821.
O contraste entre a Holanda e Portugal impõe-se à atenção de
todo mundo. Ambos têm aproximadamente a mesma população e superfície, ambos foram grandes nações marítimas no século XVI e fizeram extensas
conquistas no Oriente. Mas, quando os países vizinhos criavam uma frota marítima depois dessa época, a Holanda, nesse particular, ainda se coloca
como terceira potência da Europa e quarta do mundo, não tendo declinado a sua prosperidade interna. Seu crédito tem-lhe mantido sempre a mais
elevada posição entre as nações do Globo, ao passo que Portugal tem-se visto mais de uma vez à beira da bancarrota.
A Holanda governa atualmente 22 milhões de súditos, prósperos e progressivos, tanto no Hemisfério
Ocidental como no Oriental. Portugal, em todos os seus domínios, governa menos de um terço. Aquela nação se distingue pela sua tolerância e
inteligência; esta, sob a sombra crestante do Papado tem, mesmo na última metade do século XIX, manifestado estreiteza de vistas e intolerância, e a
sua população, em média, é a mais ignorante da Europa.
Os últimos anos têm sido, podemos certificar, precursores de melhores tempos para Portugal. Seu
jovem e esclarecido monarca veio ao trono com vistas ampliadas, e espera satisfeito que os seus súditos se elevem, e que Portugal assuma uma posição
mais de acordo com as tradições históricas dos tempos em que seus reis eram enérgicos e seus navegadores depositavam a seus pés os tesouros do
mundo.
Voltando dessa nossa digressão, vejamos o progresso dos acontecimentos nas novas aquisições de Portugal no Novo Mundo.
Colônia Huguenote de Coligny.
Outros olhares, além dos navegadores espanhóis, estavam observando o Brasil, e justamente para aquela porção do mesmo que fora desdenhada por Martim
Afonso de Souza.
Entre os aventureiros de França, figurava Nicolas Durand de Villegagnon, cavaleiro da ordem de
Malta, homem de notável capacidade e de certa distinção no serviço da França. Havia sido mesmo designado para o galante posto de comandante do navio
que conduziu Mary, rainha dos Escoceses, da França para o seu reino.
Villegagnon aspirava à honra de estabelecer uma colônia no Novo Mundo, e o Rio de Janeiro foi o
local escolhido para sua tentativa. Teve a habilidade de, logo de saída, assegurar-se do patrocínio do grande e bondoso almirante Coligny, cuja
perseverante intenção de implantar a religião reformada nas duas Américas foi seu traço fundamental de vida até o momento em que as vésperas de São
Bartolomeu fossem escritas em caracteres de sangue.
Villegagnon propôs-se fundar um asilo para os huguenotes perseguidos. A influência do almirante Coligny garantiu-lhe um respeitável número de
colonos. A corte de França estava disposta a ver com satisfação não pequena o plano de fundação de uma colônia, segundo o exemplo dos portugueses e
espanhóis.
Foi no ano de 1555 que Henrique II, então reinante, forneceu três pequenas naus, cujo comando foi assumido por Villegagnon e que saíram do Havre de
Grace. Um tufão ocorreu quando ainda se achavam perto da costa, que obrigou a frota a entrar em Dieppe, o que fizeram com grande dificuldade. Nessa
ocasião, muitos dos artesãos, soldados e nobres aventureiros haviam contraído o mal do mar e abandonaram a expedição mal desembarcaram.
Primeiro pendão protestante desfraldado no Novo Mundo.
Após longa e perigosa viagem, Villegagnon entrou na Baía de Niteroi, e começou por fortificar uma pequena ilhota junto à barra da mesma, hoje
denominada Lage e que é ocupada por uma fortaleza. As suas fortificações, porém, por serem de madeira, não puderam resistir à ação das vagas e foi
obrigado a removê-las mais para o interior da baía, para a ilha hoje denominada Villegagnon, onde construiu um forte, a princípio denominado Coligny,
em honra de seu patrono.
Essa expedição havia sido bem planeada, e o local da colônia apropriadamente escolhido. As tribos
nativas eram hostis aos portugueses, mas negociaram amistosamente com os franceses. Algumas centenas de índios reuniram-se na praia à chegada dos
navios franceses, acenderam fogueiras em sinal de regozijo e ofereceram tudo o que possuíam a seus aliados que os vinham defender dos portugueses.
Uma recepção assim inspirou aos franceses a ideia de que eram senhores já do continente, e denominaram-no França Antártica.
Foi nessa ilha que eles erigiram sua tosca casa de culto, onde os Puritanos franceses ofereceram suas orações e cantaram seus hinos quase setenta
anos antes que um Pilgrim pusesse seus pés em Plymouth Rock e mais de meio século antes que o Livro das Orações aparecesse nas margens do Rio
James.
Com a volta das naus à Europa para uma nova remessa de colonos, foi empregado muito zelo para a implantação da religião reformada nessas longínquas
plagas. A Igreja de Genebra interessou-se pelo assunto, enviando dois de seus ministros e quatorze estudantes, dispostos a afrontar todas as
dificuldades de um clima desconhecido e de uma nova vida em benefício da causa.
É interessante considerar o fato de que, quando a Reforma ainda estava em sua infância, o propósito
de propagar o evangelho em regiões distantes do mundo preocupava o ardor dos cristãos na cidade de Genebra, ainda em vida de Calvino, Farel e
Teodoro de Beza. Dificilmente se encontraria mais remoto exemplo do esforço missionário dos protestantes.
Como a situação dos huguenotes na França longe estava de ser favorável, o duplo motivo de procurar libertar-se da opressão e fazer progredir a fé
parece ter dominado francamente e induzido muitos a embarcar. Quando consideramos os primeiros passos incipientes dessa tentativa, sem considerar o
seu epílogo, muita razão se teria para desejar que os princípios da Reforma tivessem tomado raízes no Brasil, como mais tarde na América do Norte,
onde produziram uma colheita de tão admiráveis resultados.
Mas o revés parecia espreitar cada passo do empreendimento. Em Harfleur, a população Papista atirou-se contra os colonos, e estes, depois de
perderem seus melhores oficiais no conflito, viram-se obrigados a procurar salvação na retirada. Tiveram uma exaustiva travessia, sofrendo outrossim
violenta tempestade; ao aproximarem-se da costa brasileira, tiveram um ligeiro encontro com os portugueses.
Foram, entretanto, recebidos com aparente cordialidade por Villegagnon, que tomou efetivas medidas
para a instalação dos novos colonos. Mas não tardou que certas circunstâncias desagradáveis se dessem para patentear o caráter de verdadeiro vilão
do chefe.
Traição de Villegagnon.
Tendo conquistado para sua absoluta influência certo número de adeptos não muito dados à piedade espiritual, Villegagnon, sob o pretexto de
modificar a sua religião e voltar à verdadeira fé, iniciou uma série de perseguições. Aqueles que haviam vindo à França Antártica para desfrutar
liberdade de consciência, viram-se diante de condições ainda piores do que dantes. Foram sujeitados a um tratamento abusivo e grandes privações.
Essa inesperada defecção consumou a prematura ruína da colônia. Os colonos recém-chegados pediram
licença para regressar, o que lhes foi assegurado, porém numa nau tão mal suprida de recursos que alguns recusaram-se a embarcar, e a maioria que
aceitou sofreu posteriormente as agruras da fome. Villegagnon, na forma do costume, fez-lhes entrega de uma caixa com cartas, envolta em pano
impermeável.
Entre essas cartas, havia uma dirigida ao principal magistrado do porto em que tivessem a sorte de
desembarcar, na qual o digno amigo dos Guises denunciava aqueles que convidara para desfrutarem no Brasil o exercício tranquilo da religião
reformada, como heréticos merecedores do patíbulo. Aconteceu que os magistrados de Hennebonne, onde desembarcaram, eram favoráveis à Reforma,
tendo-se assim frustrado a malignidade de Villegagnon e posto a descoberto a sua traição.
Dentre os que recearam confiar suas vidas a uma embarcação tão mal provida e tão imprópria para a
travessia, três foram condenados à morte pelo seu perseguidor. Outros fugiram dele para o lado dos portugueses, onde foram obrigados a apostatar e
professar uma religião que detestavam.
Os colonos obrigados a regressar ao seu país viram-se reduzidos às mais extremas privações e, por falta de alimento, não só devoraram todo o couro —
até mesmo o revestimento de seus baús — como, em desespero, tentaram mastigar o duro e seco pau-brasil que havia a bordo. Alguns morreram de fome e
já haviam tomado a resolução de se entredevorarem, quando surgiu terra a vista.
Chegaram justamente a tempo para desiludirem um grupo de aventureiros flamengos prontos a embarcar
para o Brasil, assim como dez mil franceses, que teriam emigrado se o plano de Coligny fundando sua colônia não tivesse sido tão malvadamente
atraiçoado.
Lutas entre portugueses e franceses.
Se bem que os portugueses se mostrassem tão ciosos do comércio do Brasil a ponto de tratarem como pirata a todo aquele que, sem licença, se
interpusesse em seu tráfico, permitiram no entanto, por inadvertência, que a colônia dos franceses não sofresse molestação durante quatro anos; e,
não fosse a traição de Villegagnon ao seu partido, o Rio de Janeiro teria sido hoje, provavelmente, a capital de uma colônia francesa ou de um
estado independente onde teria predominado o elemento huguenote.
Os jesuítas estavam bem cientes do perigo, e Nóbrega, seu chefe provincial, conseguiu afinal despertar a atenção da corte de Lisboa. Um mensageiro
foi mandado espionar o estado das fortificações francesas. Baseado em suas informações, foram expedidas ordens a Mem de Sá Barreto, governador da
colônia e que residia em São Salvador, para que atacasse e expulsasse os intrusos que ali permaneciam.
Tendo aprestado duas naus de guerra e várias mercantes, o governador, assumindo em pessoa o
comando, embarcou, levando Nóbrega como seu principal conselheiro. Surgiram à barra do Rio de Janeiro nos primeiros dias de 1560, com a intenção de
surpreender a ilha ao cair da noite. Assinalados pelas sentinelas, falhou o plano. Os franceses imediatamente se aprestaram para a defesa,
abandonaram seus navios e, com oitocentos índios armados de flechas, retiraram-se para suas fortificações.
Com reforços recebidos de São Vicente, Mem de Sá conquistou os pontos de desembarque e, desalojando os franceses de suas
mais importantes posições, intimidou-os por tal forma que, sob as trevas da noite, estes recuaram, fugindo para as suas naus ou para o continente.
Os portugueses, não se sentindo suficientemente fortes para conservar as posições que haviam tomado, demoliram as fortificações, levando consigo a
artilharia e as munições que encontraram. Pouco tempo depois, novos combates, dessa vez levados a efeito pelos índios, contra os mesmos,
obrigaram-nos a se acolherem em diversos pontos onde foram perseguidos com grande ferocidade durante vários anos.
Entrementes, os franceses recobravam força e influência. Fizeram-se novos preparativos para
expulsá-los. Uma força armada, composta de portugueses e índios amigos, sob o comando de um jesuíta indicado por Nóbrega, desembarcou junto à base
do Pão de Açúcar e, tomando posição no local hoje conhecido por Praia Vermelha, sustentou uma série de escaramuças indecisas com o inimigo por mais
de um ano.
Certa vez, vitoriosos, entoaram, com triunfante esperança, um versículo das Escrituras, que diz:
"Os arcos do poderio foram quebrados" etc. Bem podiam eles referir-se aos arcos do poderio dos tamoios, pois as setas por eles enviadas se fixavam
nos escudos e alcançavam o braço que os sustinha, e às vezes atravessavam o corpo, prosseguindo na sua trajetória com tal força que se fincavam nas
árvores fazendo tremer os troncos.
Vitória dos portugueses.
Nóbrega afinal veio a campo, e a seu pedido Mem de Sá novamente surgiu com todos os recursos que conseguiu em São Salvador. Tudo se deu com
presteza, e o ataque foi adiado para 48 horas depois, para coincidir com o dia de São Sebastião. O dia auspicioso chegou — 20 de janeiro de 1567. A
fortaleza dos franceses foi tomada. Nenhum tamoio escapou.
Southey observa, com muita justeza, nunca se ter dado outra guerra em que tão pouco esforço se tenha feito e tão poucos homens empregado de ambas as
partes e que fosse seguida de tamanhas consequências.
A corte de França estava por demais empenhada em queimar e massacrar huguenotes para poder pensar
no Brasil, e Coligny, depois de seus generosos planos terem sido arruinados pela traição vil de Villegagnon, não mais olhou para a colônia; a época
da emigração terminara, e aqueles que haviam colonizado o Rio de Janeiro sustentaram a sua luta, contra um inimigo sanguinário e implacável, em
defesa de todas as coisas que são caras ao homem.
Portugal tinha para com o Brasil quase que a mesma atitude de desatenção; de forma que, mesmo pouco
numerosos e desarmados como eram os franceses antárticos, se Mem de Sá não tivesse sido tão enérgico no cumprimento de seu dever, ou Nóbrega menos
hábil e infatigável em sua oposição, estes últimos teriam conservado suas posições e, em lugar de a Portugal, talvez à França tivesse pertencido
todo o país.
Fundação de São Sebastião.
Imediatamente após a vitória, o governador, de acordo com as suas instruções, traçou os planos da nova cidade, a que chamou São Sebastião, em honra
do santo sob cujo patrocínio a batalha se vencera, e também do rei de Portugal. O nome de São Sebastião foi suplantado pelo de Rio de Janeiro.
Cruel intolerância.
Relacionado com os acontecimentos acima narrados, conservou-se o registro de uma melancólica prova de crueldade e intolerância dos vencedores.
Segundo os anais dos jesuítas, Mem de Sá manchou de sangue inocente as fundações da cidade.
"Entre os huguenotes que se
viram obrigado a fugir da perseguição de Villegagnon, havia um João Boles [T21],
homem de considerável saber, muito versado tanto no grego como no hebraico. Luiz de Gram fez com que ele fosse aprisionado, com três de seus
companheiros, tendo um deles fingido convertendo-se ao Catolicismo; os demais foram levados para a prisão; e aí passou Boles oito anos, quando foi
mandado ao Rio de Janeiro para ser martirizado, a fim de inspirar terror aos seus concidadãos, se qualquer deles ainda andasse errante por essas
paragens" .
Os jesuítas são os únicos a historiarem esse assunto. Pretendem haver Boles apostatado, tendo sido convencido de seus erros por Anchieta, padre
grandemente celebrado nos anais do Brasil. Porem, pela própria narrativa deles, não é muito provável que um homem que, durante oito longos anos,
firmemente recusou renunciar à religião de suas convicções tivesse então cedido. Boles com certeza, deve ter-se mostrado um tenaz e inflexível
protestante, e por isso sofreu morte cruel. E não obstante a afirmação de que ele devia ser sacrificado como um exemplo para seus concidadãos, "se
qualquer deles ainda andasse errante por essas paragens", não era do costume de Roma condenar à
morte os que renunciavam a seus erros e se punham sob o seu manto protetor.
Quando Boles foi trazido ao local da execução, e o executor titubeou no seu sanguinário ofício, "Anchieta
apressadamente interveio, instruindo-o como despachar um herético o mais depressa possível, — no receio de que, diz, pudesse este se impacientar,
sendo como era um homem obstinado, e por ser um recém-convertido, com isso a sua alma se poderia perder. O padre que, de qualquer modo, acelera uma
execução de morte é por esse motivo suspenso de suas funções; mas os biógrafos de Anchieta enumeram essa como uma das virtuosas ações de sua vida".
Reflexões.
Embora o Rio de Janeiro haja sido fundado com sangue, não há nação Católica Romana no mundo mais libertada de fanatismo e intolerância que o Império
do Brasil.
Assim fracassou o estabelecimento da colônia de Coligny, sobre a qual, durante um curto tempo, se concentraram as esperanças da Europa protestante;
mas o Rio de Janeiro será para sempre memorável como o primeiro ponto do hemisfério Ocidental em que a bandeira da Reforma foi desfraldada.
É verdade que a tentativa se fizera num território de que Portugal já se apropriara; mas uma dúvida
poderia ser levantada quanto ao direito de prioridade na descoberta desse trecho do Brasil, pois que é certo que os espanhóis De Solis e também
Magalhães, Rui Faleiro e Diogo Garcia, navegantes portugueses a serviço de Espanha, penetraram na Baía de Niterói muito antes de Martim Afonso de
Souza.
De qualquer modo, o fato do fracasso desse esforço dos huguenotes é rico de matéria para reflexão;
podemos plenamente simpatizar com as observações seguintes do autor de O Brasil e o Prata, em relação à traição de Villegagnon, e consequente
descalabro das intenções dos primeiros colonizadores franceses:
"Lembrando-me do fracasso da implantação da religião reformada aqui, e da causa direta que
levou a isso, fico às vezes meditando sobre os possíveis e prováveis resultados que se teriam seguido ao sucesso da instituição do protestantismo,
nos trezentos anos que se seguiram.
Diante da opulência, o poder e a crescente prosperidade dos Estados Unidos, fruto que foram no fim
de duzentos anos de colonização de algumas fracas mãos de protestantes nas regiões litorâneas relativamente mais áridas e despidas do continente
setentrional, não é exagerado acreditar-se que, tivesse um povo de fé semelhante, semelhante moral e hábitos de trabalho e empreendimento,
conseguido habitar num clima tão generoso e num solo tão exuberante, há muito já que a selvatiqueza ainda inexplorada e impenetrável do seu interior
teria florescido e frutificado em civilização, e o Brasil, desde o litoral até os Andes, ter-se-ia transformado num dos jardins da Terra.
Mas a semente que poderia ter produzido isso, foi esmagada pela má fé e
perversidade de Villegagnon; quando contemplo o local que conserva o seu nome e, pelo menos aos olhos de um protestante, perpetua o seu opróbrio, as
três palmeiras solitárias que sacodem seus tufosos cimos sobre as ameia do forte, como a única amostra de vegetação da ilha, parecem, ao invés de
guerreiros emplumados no meio de suas defesas, sentinelas da dor lamentando as esperanças perdidas de um passado distante."
Não devemos, porém, lamentar demais o passado; porquanto, se bem que pelos desígnios da Providência nenhuma nação protestante,
com seu consequente vigor e progresso, impere sobre essas terras férteis e salubres, não podemos, até certo ponto, deixar de considerar a tolerante
e justa Constituição do Império do Brasil, e o seu bom governo, prosperidade geral e progresso dos brasileiros
e admiti-los superiores, em todos os pontos de vista, aos das demais nações Sul-Americanas, como uma resposta satisfatória às fervorosas preces com
que aqueles piedosos huguenotes batizaram o Brasil há mais de três séculos? [A07]
Notas do autor:
[A04]
Historia do Brasil, pelo gen. J. I. de Abreu Lima. Rio de Janeiro, 1843.
[A05]
Ibid. vol. I, cap. II.
[A06]
Epitome da História do Brasil, por José Pedro Xavier Pinheiro. Bahia, 1854, capítulo I, p. 27.
[A07]
Nota de 1866 — O atual imperador se tem mostrado um partidário da tolerância. Tem auxiliado a construção de igrejas protestantes para os colonos; o
governo prontamente dominou três levantes tentados contra os protestantes brasileiros (no Rio de Janeiro e na Praia Grande), podendo-se citar outros
atos para demonstrar que temos razão em ser gratos pela situação atual da tolerância religiosa no Brasil. A legislação brasileira deve dar um passo
a frente e admitir no Parlamento todos os homens capazes, sejam quais forem as suas crenças religiosas. O Brasil estará em dia com o século XIX.
(N.E.: nesta obra, as citações de Praia Grande se referem ao antigo nome da cidade de
Niterói/RJ).
Notas do tradutor:
[T20]
Por inadvertência, figura no texto o Monte Pascoal como situado no Espírito Santo; como todos sabem, o primeiro ponto do Brasil avistado pelos
descobridores situa-se na Bahia.
[T21]
Sobre o martírio de João Boles, mais propriamente Jean Jacques Le Balleur, vítima da intolerância religiosa em nossa terra, ver: O Martir Le
Balleur por Alvaro Reis e A tragédia da Guanabara de Crespin, trad. de Domingos Ribeiro. |