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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - CUBATÃO EM... - 1839 - BIBLIOTECA NM
1839-1855 - por Kidder e Fletcher - 02

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Em meados do século XIX, os missionários metodistas estadunidenses Daniel Parrish Kidder (1815-1892) e James Cooley Fletcher (1823-1901) percorreram extensamente o território brasileiro - passando inclusive por Santos e por Cubatão em 1839 (Kidder) e 1855 (Fletcher) -, fazendo anotações de viagem para o livro O Brasil e os Brasileiros, que teve sua primeira edição em 1857, no estado de Filadélfia/EUA.

Kidder fez suas explorações em duas viagens (de 1836 a 1842), e em 1845 publicou sua obra Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil (leia), sendo seguido por Fletcher (a partir de 1851), que complementou suas anotações, resultando na obra O Brasil e os Brasileiros, com primeira edição inglesa em 1857 e sucessivamente reeditada.

Esta transcrição integral é baseada na primeira edição brasileira (1941, Coleção "Brasiliana", série 5ª, vol. 205), com tradução de Elias Dolianiti, revisão e notas de Edgard Süssekind de Mendonça, publicada pela Companhia Editora Nacional (de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre), publicada em forma digital (volume 1 e volume 2) no site Brasiliana, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - acesso em 30/1/2013 - ortografia atualizada - páginas 15 a 43 do volume 1):

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O Brasil e os Brasileiros

Daniel Parrish Kidder/James Cooley Fletcher

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Hotel Pharoux

Imagem: reprodução da página 16 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Capítulo II

Desembarque — Hotel Pharoux.

O forasteiro que, com ansiosa expectativa, passeia pelo tombadilho de seu navio, enquanto este esperava no ancoradouro por trás de Villegagnon, não conhece melhor saudação de boas-vindas que a licença da Alfândega e autoridades sanitárias para desembarcar e perambular pela cidade que quatro horas antes os seus olhos visitaram. Os pretos que haviam chegado das praias voltaram de novo, impelindo vigorosamente as suas embarcações pesadas, pois contam na certa com o pagamento triplicado dos recém-chegados.

Quem que um dia já tenha visitado o Rio de Janeiro deixará logo de reconhecer a praça de desembarque representada na figura junto. Hotel Pharoux, o Palácio das Escadas, o Largo do Paço, estão associados com o Rio de Janeiro na memória de todos os funcionários navais estrangeiros que fizeram um estágio no Brasil.

Aspectos e sons novos.

Deram-se, porém, algumas transformações, tanto maiores quanto observadas no seio de uma população tão descansada. O Hotel Pharoux ainda conserva as suas paredes cinzentas; mas está modernizado, e o velho restaurante, juntamente com a cavalariça, que ocupavam o andar térreo, cederam seu lugar a vendedores de ostras e a uma casa de flores de penas, funcionando nos andares de cima um hospital particular.

Não desembarcamos mais no Palácio das Escadas, onde antigamente as ondas da maré alta batiam, espumantes, de encontro ao parapeito de pedra que, nesse ponto, marcava o limite de seu alcance. A praça foi prolongada pela baía adentro e, em breve, o governo construirá um belo cais ao longo de toda a porção à beira-mar desse trecho da cidade.

Em vez dos velhos degraus de granito, subimos os degraus de madeira na extremidade de uma longa ponte de desembarque. O nosso bote aterrou aí, entre exalações que certamente não chegaram da "abençoada Arábia"; informaram-nos que os despejos são no Rio um negócio portátil e não subterrâneo.

O sentido da audição, também, é ferido pelo confuso falatório dos pretos na língua do Congo, os berros dos portugueses donos dos barcos e pelas pragas dos marinheiros ingleses e norte-americanos.

Uma vez livres dessa barulheira, que aspectos e sons novos nos surpreendem! Um cocheiro de aluguel, de chapéu de verniz e vestido de vermelho, convida-nos para um passeio ao Jardim Botânico; um mulato janota aponta para a sua carruagem junto do Hotel de França.

Antes que terminem as suas palavras, um rufar de tambores e toques de corneta atraem a nossa atenção para outro lado. Em frente do velho palácio, está formado um pelotão da Guarda Nacional, composto de todos os elementos imagináveis, desde o branco até o africano; agora, como diariamente ao meio-dia, eles põem seus capacetes, ouvem durante uns segundos com religioso respeito um trecho de música que os corneteiros pretos tocam inchando as bochechas e nisso resumem, com exceção das sentinelas, a sua difícil tarefa de vaguear pelos corredores do enorme casarão, ou aquecer-se ao sol, até que outro som de corneta os chame a mudar a guarda ou entrar em formatura na hora das vésperas.

O Largo do Paço.

Ainda não estamos dispostos a experimentar os veículos do Rio de Janeiro; por isso, dispensamos o nosso pretendente a cocheiro, e demos uma espiadela em volta de nós pelo Largo do Paço
[T15].

Nessa praça, o forasteiro se vê cercado pela mais diversa multidão em modos de vestir e aspectos, e mais variada em composição e costumes, que a sua imaginação poderia representar. A maioria é de africanos, que se reúnem em volta do chafariz para conseguir água, que corre de uma fila de canos e, recolhida em baldes e pipas, é transportada na cabeça de homens e mulheres.

Os escravos andam descalços, mas alguns vestem roupas alegres. Quando juntos assim, nesses pontos de reunião, a sua sociabilidade é extrema, mas às vezes terminam em discussões e pancadas. Para evitar desordens dessa natureza, soldados geralmente estacionam perto dos chafarizes, que estão mais ou menos certos de poder manter a sua autoridade sobre os pretos sem resistência.

Antigamente havia apenas uma ou outra fonte principal; mas agora há grandes chafarizes em todas as praças, e nas esquinas de quatro em quatro ruas, aproximadamente, formam-se pequenos riachos do precioso elemento quando se abrem as torneiras.

O Paço é um vasto edifício de pedra, exibindo o velho estilo arquitetônico português. Foi durante muito tempo utilizado como residência pelos vice-reis, e por algum tempo por dom João VI, mas agora foi adaptado a vários serviços públicos, e possui uma série de quartos em que se aloja a corte nos dias de festa.

As construções que ficam ao fundo do Largo do Paço (representadas à esquerda da gravura) foram todas erigidas para funções eclesiásticas. A mais antiga era um convento franciscano, mas de há muito que foi ligada ao Paço e utilizada para funções seculares.

A velha capela, com a sua torre baixa e larga, ainda se conserva, mas foi sobrepujada, em popularidade e esplendor, pela capela imperial mais recentemente erguida, a qual, sem campanário, fica-lhe à direita. Junto da capela imperial, vê-se a igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo, que está diariamente aberta e serve de catedral. As torres dessa igreja são iluminadas durante certas solenidades religiosas, inclusive as cruzes, apresentando um esplêndido aspecto, vistas do ancoradouro.

Rua Direita.

As ruas da cidade são geralmente estreitas demais; mas a Rua Direita,
[T16] que se vê na estampa juntamente com o Largo do Paço, é larga e bem calçada com pequenos blocos de pedra trazidos da ilha de Wigth.

A Rua Direita e muitas das principais ruas do Rio de Janeiro são agora tão bem calçadas como os mais belos logradouros de Londres ou Viena, apresentando grande contraste com o primitivo calçamento irregular, que estava em uso até 1854. A Rua Direita e o Largo do Rocio são os pontos de estacionamento dos ônibus, que daí partem para todos os pontos da grande cidade e seus subúrbios.

Os edifícios raramente possuem mais de três ou quatro andares; porém uma construção de quatro andares no Rio iguala em altura uma de cinco andares de Nova York.

Antigamente quase todas eram ocupadas como residência, e mesmo nas ruas comerciais somente os primeiros andares eram destinados à armazenagem e exposição das mercadorias, morando as famílias em cima. Mas, desde 1850, isso mudou muito nos quarteirões onde se encontram os estabelecimentos de comércio por atacado: os seus proprietários e empregados residem agora nos pitorescos subúrbios de Botafogo, Engenho Velho e, do outro lado da baía, em Praia Grande e São Domingos.

Todas as tardes assiste-se ao animado espetáculo de vapores apinhados de gente, ônibus repletos e cavalos e bestas a galope, conduzindo os negociantes e caixeiros (guarda-livros) para as suas respectivas residências.

As torres de igreja que se veem distantes à esquerda da gravura são as da Candelária, situada numa rua estreita por trás da Rua Direita. É a maior igreja da cidade, e ostenta as mais altas pontas e a mais bela frontaria de todas elas.


Largo do Paço e Rua Direita, vistos do Paço

Imagem: reprodução da página 19 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

A Bolsa.

A Praça do Comércio ou Bolsa
[T17] ocupa uma posição proeminente na Rua Direita. Esse edifício, outrora fazendo parte da Alfândega, foi cedido pelo Governo para as suas funções atuais em 1834. Possui uma sala de leitura, suprida de periódicos nacionais e estrangeiros, e está sujeita aos regulamentos comuns a tais instituições de outras cidades.

Debaixo do seu espaçoso pórtico, os vendedores de oito ou nove diferentes nacionalidades encontram-se todas as manhãs, trocam-se saudações e especulam seus negócios em geral. A Bolsa não dista muito da Alfândega, que primitivamente tinha a sua principal entrada próximo dela.

Nada mais movimentado e característico do que as cenas que podem ser presenciadas nessa parte da Rua Direita durante as horas de trabalho, isto é, de nove da manhã às três da tarde.

Somente durante essas horas é que é permitido aos navios descarregar e receber carga, e durante o mesmo intervalo de tempo todas as mercadorias e bagagens devem ser despachadas na Alfândega e daí retiradas. Por conseguinte, devido a tais dispositivos legais, a máxima atividade tem que ser exigida para retirar as mercadorias despachadas e embarcar os produtos do país que diariamente constituem as transações de um vasto empório comercial.

Aí estão os negociantes vestidos de preto reunidos nas proximidades da Bolsa. Eis que chegam as carroças com os negros. A turma compõe-se de cinco rijos africanos que puxam, empurram, fazem as suas manobras e saem gritando para abrir caminho entre a cerrada multidão, sem se importarem com o ilhéu da Madeira que, soltando uma praga e estalando o chicote, dirige a sua atroadora carroça puxada a burros e carregada de caixotes. Agora é um ônibus que passa trepidante pela multidão, e um vasto veículo de quatro rodas, pertencente ao Expresso Smith para transporte de mercadorias, rola sobre os seus eixos.

Antigamente todo esse trabalho era feito a mão, e raramente se usava uma carroça ou qualquer outro veículo mais pesado, a não ser quando puxados por pretos. As carroças e outros meios de condução movidos por animais são atualmente comuns; porém para o transporte de pesos leves e mudanças de móveis, pianos etc., a cabeça do negro não havia sido substituída por qualquer veículo até 1862, quando o Expresso Smith, e grandes carroções denominados andorinhas entraram em voga, exceto para o transporte de pianos.


A turma dos carregadores (atualmente abolida)

Imagem: reprodução da página 21 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Carregadores de café musicistas.

Em 1857, quando estávamos atordoados pelo barulho da multidão, tivemos uma nova fonte de surpresa. Acima de toda a confusão da Rua Direita, ouvimos um coro estentório de vozes respondendo num compasso apressado ao estribilho de uma cantiga. E vimos, por sobre as cabeças da multidão, uma fila de sacos brancos correndo e dando a volta da esquina da Rua da Alfândega.

Apressamos o passo até esse trecho da Rua Direita, e vimos que cada qual daqueles sacos tinha embaixo um Hércules vivo de azeviche. Eram os famosos carregadores de café do Rio. Costumam correr em tropa, em número de dez ou vinte, dos quais um assume a direção e é denominado o capitão.

São geralmente os homens mais corpulosos e fortes que se possa encontrar. Quando em atividade, raramente vestem outra roupa que não seja um par de calções curtos; a sua camisa, com o tempo, é posta de lado como um estorvo. Cada qual deles põe um saco de café em cima da cabeça, pesando cento e sessenta libras e, quando todos estão prontos, saem correndo num trote compassado, que logo se acelera em rápida corrida. Desde 1860 que se empregam carroças para transportar o café.

Os negros carregadores de pianos e louças de barro frequentemente trazem na mão um instrumento de música, semelhante a uma matraca de criança, que eles sacodem no compasso duplo de alguma canção rústica da Etiópia, que todos cantam juntos quando correm.

A música tem um poderoso efeito de diversão sobre a mentalidade dos pretos; e ninguém negará a estes o direito de suavizar a sua pesada tarefa produzindo a harmonia de sons que para eles é doce, embora rude para ouvidos alheios. Disseram-nos, contudo, que se tentou uma vez assegurar maior silêncio nas ruas, proibindo-os de cantar. Em consequência disso eles produziram menor trabalho, ou mesmo nenhum; e a restrição foi em breve suspensa.

O certo é que atualmente se aproveitam de seus privilégios vocais com todo o gosto, quer cantando e gritando para os outros quando correm, quer proclamando em público a qualidade dos vários artigos que carregam para vender. A impressão causada no estrangeiro pelo som misturado de uma centena de vozes ferindo-lhe os ouvidos a um só tempo, não se esquece muito cedo.

Alfândega.

Deixamos agora a multidão atarefada da Rua Direita, e em poucos minutos subimos os degraus de um grande edifício, sobre cujo pórtico se lê, em gigantescas letras verdes: ALFÂNDEGA.

Não me demorarei em descrever a origem dessa e muitas outras palavras que na língua portuguesa começam por Al, devido à sua origem árabe, mas informarei logo ao leitor que essa é a primeira palavra que ele aprende no Brasil, palavra que, em várias línguas, a maioria dos viajantes em países estrangeiros têm ocasião de recordar. É a nossa Custom-House.

Entramos por um vasto hall de bela arquitetura, iluminado por graciosa abóbada. Aí estão centenas de despachantes, negociantes e funcionários. Mas que contraste com a barulhenta multidão da Rua Direita! Todos estão descobertos e, quando alguém entra no hall, tira o chapéu e não o recoloca senão quando de novo alcança a porta. Que disciplina capital para os visitantes anglo-saxões e para os capitães de navio ingleses e norte-americanos, cujos chapéus parecem formar parte integrante de suas existências corpóreas!

Ouvi certa vez Albert Smith, numa de suas deliciosas palestras, dizer que em terras estrangeiras um inglês considera como fazendo parte da constituição inglesa não tirar o chapéu, exceto quando o God save the Queen acontece soar-lhe aos ouvidos. O brasileiro é muito rigoroso na observância externa da polidês; e, como nunca entra numa casa particular sem tirar o chapéu, considera que também não deve entrar em nenhum dos edifícios pertencentes ao governo do seu imperador sem demonstrar o mesmo respeito.

No fundo do hall, num estrado elevado, está o coletor-chefe, constantemente ocupado em assinar despachos e outros papéis alfandegários, que lhe são trazidos em silêncio pelos suboficiais e empregados.

O inspetor-chefe, que dirigia a Alfândega do Rio em 1855, era o sr. S. Paio Vianna, da Bahia que, se bem que exigente e mesmo rigoroso na administração de sua repartição, é um cavalheiro de grande inteligência e amenidade de trato. Tomava grande interesse pelas finanças do Império, e seus relatórios anuais eram claros e cheios de importantes informações sobre estatística comercial. Seu predecessor era o sr. Ferraz, a quem se devem as grandes reformas que foram realizadas na alfândega do Rio de Janeiro. Primitivamente era administrada da maneira mais corrupta; o suborno era então a regra e não a exceção.

Contam-se agora as mais incríveis histórias passadas em 1844, ao expirar o tratado entre a Inglaterra e o Brasil, por prescrição no mês de novembro. Malas, sacos e caixas passavam pela Alfândega com assombrosa rapidez; e corre a tradição que o carregamento completo de uma escuna entrou pelos fundos da Alfândega e num tempo notavelmente curto emergiu do Portão Grande. Não há mais oportunidade para semelhantes abusos; e a maior das alfândegas do Império é tão bem administrada como as da Alemanha e da França.

À esquerda do coletor-chefe, no fundo de uma fila de colunas, está o guarda-mor, sr. Leopoldo Augusto Camara Lima, conhecido por todos os capitães de navio por Senhor Leopoldo. Esse cavalheiro, que fala inglês fluentemente, arregimentou-se na ala liberal dos políticos brasileiros nos últimos vinte anos, e esteve na vanguarda dos que condenam o tráfico dos escravos africanos, que foi completamente abolido em 1850. O gabinete do guarda-mor em 1865 era mais próximo do mar.

As vastas dependências da Alfândega estendem-se até à beira d'água
[A01]. Foi conveniente construí-las para o desembarque de mercadorias sob abrigo. Uma vez retiradas dos botes ou barcaças, são distribuídas e armazenadas em departamentos especiais, até que uma requisição seja feita dentro das formalidades para seu exame e despacho. O transporte dos vários artigos no interior da Alfândega, assim como a sua retirada pela porta de saída, são facilitados por pequenos trilhos de ferro que se estendem por todas as dependências dos múltiplos edifícios.

As demoras aborrecidas que ocasionalmente ocorrem no despacho de mercadorias e bagagens não surpreendem a quem esteja acostumado com as fastidiosas formalidades exigidas por lei; nem poderá estranhar que, entre a turma de empregados ou suboficiais pertencentes a esse estabelecimento e pouco remunerados, encontre-se alguns que embaracem nossos negócios a cada passo até que se obtenha o seu favor dando-lhes diretamente ou indiretamente dinheiro; mas isso se dá mais raramente do que outrora.

A maioria das grandes casas comerciais tem um despachante particular, cuja tarefa é tratar das questões com a Alfândega; o estrangeiro que está pouco acostumado com a língua e os costumes do país evitará sempre muitos contratempos contratando os serviços de tais pessoas.

Pela minha experiência própria em despachar livros e bagagens pelas diferentes alfândegas do Brasil, estou habilitado a dizer que uma pessoa que compreende e empenha-se por se conformar com as leis do país pode contar que, nessas circunstâncias, encontrará um delicado tratamento e todas as possíveis facilidades.

Se, entretanto, uma consulta ao vosso relógio vos diz, quando estais no meio de vossos esforços e dificuldades, que já se aproximam as três horas da tarde, e pretendeis apressar o subcoletor no andamento do vosso processo, podeis estar certos de receber em resposta: "Paciência, senhor". Essa é a nossa segunda lição de português; e a terceira logo virá em resposta à vossa pergunta: "Quando essas coisas poderão ficar despachadas?" — "Amanhã" será prontamente respondido.

Se conseguirdes sair pelo portão grande na ocasião em que essa enorme porta está sendo fechada, assistireis a uma cena cheia de vida. Caixotes, fardos e embrulhos de todos os gêneros de mercadorias, móveis encaixotados, pipas de vinho, rolos de cordas, estão empilhados juntos numa confusão apenas igualada pela multidão de empregados, feitores e negros, que atravancam totalmente a Rua Direita na sua ânsia de entrar na posse de seus respectivos artigos, vociferando para apressar a remoção de suas mercadorias.

Estávamos talvez querendo apressar os altos negros a quem incumbíramos de transportar nossa bagagem para o seu destino. Por sinais com as mãos o nosso desejo foi compreendido, mas recebemos um frio "Espere um pouco, senhor", que completou o nosso aprendizado de português por esse dia. E que lição que recebemos!

Paciência, amanhã e espera um pouco! Essas palavras, quando em ação, surpreendem os nervosos, impacientes, violentos, impertinentes anglo-saxões em toda parte do Brasil.


Primitivos carregadores de café

Imagem: reprodução da página 23 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Opinião do governador Kent.

O ex-governador Kent, cujo nome se acha associado às fronteiras do Canadá bem como à política da Nova Inglaterra, durante quatro anos residiu no Rio como cônsul norte-americano, e longo tempo como encarregado de negócios. Era sua firme opinião que o Brasil era o melhor lugar do mundo para esfriar um yankee férvido, fazedor de discursos e excitador de multidões. Ri-me francamente da sua maneira ríspida e humorística de falar, quando ele desenvolveu con amore o seguinte tema:

"
Para um homem disposto ao sossego, pacífico, que já transpôs o meridiano da existência, que já viu muitas grosseiras faces da humanidade, há algo de agradável e deleitante nos hábitos tranquilos, calmos e pouco barulhentos dos brasileiros. Passar um ano inteiro sem nunca tomar parte numa conspiração ou assistir a um meeting de protesto, nada ouvir a respeito de eleições, não ver o povo reunido, não ler cartazes apelando para que o povo soberano se levante para reivindicar seus direitos, não escutar improvisos ou discursos de sobremesa, nunca ser importunado para acompanhar a pé ou a cavalo um cortejo político, não ver nenhuma marcha aux flambeaux em honra de uma vitória que salvou o país e os empregos — em suma, viver sem política — é, para quem tem propensão para o repouso e estafou-se no serviço, atraente e delicioso".

Apesar de que a nação se vem tornando cada dia mais ativa, com seus vapores, trens de ferro e geral prosperidade, pode-se todavia afirmar que os brasileiros não estão habituados a estremecer e chocar-se com as misérias e as desgraças dos outros povos. Possuindo uma imprensa livre e bem feita, o temperamento deles não pede vibráteis edições noturnas, cheias de longas e minuciosas notícias sobre o último naufrágio, acidentes terríveis ou horripilantes assassinatos.

De um modo geral, os brasileiros pensam que os mundos moral, físico e político girarão sobre seus eixos sem a sua interferência. Por esse motivo é que, sem dúvida, alguns estadistas mais clarividentes e argutos do Rio de Janeiro propuseram que se cobrasse uma multa de cinco dólares de todo cidadão que não comparecesse para votar nas eleições municipais.

O Correio.

Quase todas as pessoas que chegam ao Rio estão esperando cartas que se lhes anteciparam pelo paquete inglês, e logo que a sua bagagem foi despachada na Alfândega, dirigem-se ao Correio Geral, na Rua Direita. Entra-se por um vasto vestíbulo, com pavimentação de pedra, ocupado por alguns soldados, ou da guarda ou dormindo em bancos no fundo do salão e, após indagações, fica-se informado de que o diretor geral dos Correios e grande parte dos funcionários trabalham no andar superior.

Entra-se pela porta do grande salão que fica junto do vestíbulo. Do lado direito, por trás de um alto balcão, ficam as cartas e os periódicos, distribuídos, não em caixas, mas em pilhas conforme os lugares de sua proveniência; como, por exemplo, de Minas, São Paulo etc. De acordo com isso, dos lados do salão, estão penduradas numerosas listas de nomes, classificados sob os títulos de Cartas de Minas, de São Paulo etc.

As cartas, com exceção das que pertencem a certas firmas comerciais e dos que pagam uma assinatura anual para ter a sua correspondência entregue a domicílio, são misturadas promiscuamente e aquele que chega primeiro tem o privilégio de examinar todo o maço para escolher as cartas que lhe pertencem e a seus amigos.

Esse processo tem sido um tanto modificado depois do estabelecimento de linhas de vapores para a Europa. No dia em que chega um paquete, uma imensa multidão acorre ao Correio; mas as cartas, em lugar de serem, como no caso geral, examinadas por todos sobre o referido balcão, são cuidadosamente colocadas na parte posterior do hall, onde quatro pessoas são admitidas de cada vez.

Há razões para queixas a respeito da entrega da correspondência dos paquetes estrangeiros (exceto dos ingleses). Os vapores ingleses têm seu encarregado próprio de distribuição. Todo o sistema é desnecessariamente primitivo e impróprio de uma cidade de trezentos mil habitantes.

Aversão pelas novidades.

Informaram-me no Rio que alguns anos atrás, o sr. Gordon, de Boston, que era então cônsul dos Estados Unidos, ofereceu ao Governo Brasileiro colocar o seu Correio Geral no mesmo pé de eficiência do de seu país. O sr. Gordon estava admiravelmente qualificado para isso, tendo sido por muitos anos diretor-geral dos correios de cidades marítimas do maior movimento de correspondência na Nova Inglaterra.

Mas o seu oferecimento não foi aceito; os brasileiros, apesar de mais progressivos do que a maioria dos povos sul-americanos, herdaram contudo muitas características de seus antepassados portugueses, e uma das mais dominantes é a antipatia pelas inovações.

A exiguidade do progresso que a mãe-pátria tem feito durante os últimos séculos é admiravelmente ilustrada na bem conhecida anedota seguinte: Uma vez Adão pediu licença para visitar de novo o mundo; foi-lhe dada a permissão, e designado um anjo para acompanhá-lo. Nas asas do querubim, o patriarca apressou-se em chegar à sua terra natal; mas tão mudado, tão estranho lhe pareceu tudo, que não se sentiu mais em casa senão quando chegou a Portugal. "Ah, agora sim, exclamou, deixe-me descer; tudo aqui está tal e qual como eu deixei".

As malas postais mais importantes, que seguem ao longo do litoral, são muito frequentes, regulares e ligeiras. O mesmo se pode dizer da que se destina a Petrópolis pelo vapor, pela estrada de ferro ou pela estrada particular da Companhia União e Indústria. Em compensação, os transportes de correspondência para o interior são muito morosos.

Quando, porém, a Estrada de Ferro D. Pedro II e outras similares atingirem o interior, far-se-ão naturalmente progressos correspondentes nesse sentido. O correio interno para as províncias distantes parte de cinco em cinco dias, e a volta se dá com o mesmo intervalo de tempo. O seu transporte através do país é lento e difícil, sendo feito a cavalo ou por emissários a pé, numa média, em todo o Império, de vinte milhas em vinte e quatro horas. As taxas postais são moderadas, e um viajante para qualquer zona do país tem licença de levar consigo tantas cartas quanto lhe deem os seus amigos, contanto que tenham os selos do Governo colados sobre as mesmas.

Há, contudo, uma exceção na geral barateza do correio. Dá-se frequentemente o fato de livros e pacotes que deviam passar pela Alfândega encaminharem-se para o Correio, e então as despesas são extravagantes. Há também um erro clamoroso que precisa ser remediado: refiro-me às taxas impostas pelos funcionários postais a cartas que já foram pagas adiantadamente. Isso assume as proporções de verdadeiro assalto legal. Se os funcionários não recebem um salário suficiente, que o Parlamento reforme as tabelas, para que a extorsão não se dê mais.

Sr. José Maxwell.

Há anos passados, nós, logo em seguida ao Correio, visitamos o grande trapiche comercial dos srs. Maxwell, Wright & C. Esse estabelecimento era de há muito conhecidíssimo das principais casas de consignações do Rio de Janeiro. Fora fundado sob a direção do vigilante e operoso sr. Joseph Mawell, de Gibraltar, e vários membros de sua família, em colaboração com os srs. Wright, de Baltimore.

Poucos são os norte-americanos e ingleses que têm visitado o Rio e que não receberam atenções de alguns dos principais chefes ou empregados dessa firma. Na mesa abundantemente servida da sala de refeições do trapiche, muitos deles travaram seu primeiro conhecimento com os pratos da comida brasileira e com as refrigerantes frutas dos trópicos.

Em setembro de 1854, faleceu o sr. José Maxwell, sócio mais antigo dessa importante firma; e provavelmente não houve um enterro de outro qualquer particular na capital do Império que houvesse tido maior acompanhamento do que o que levou para a sepultura os restos mortais desse bondoso pai e respeitável cidadão. A firma não mais existe.

A Rua do Ouvidor.

Voltamos, pela Rua do Rosário, novamente à Rua Direita, e continuamos o nosso passeio subindo a Rua do Ouvidor, que é a Rue Vivienne, Regent Street e Broadway combinadas do Rio. Não é, porém, nem comprida nem larga, mas as suas lojas são vistosas e de bom gosto.

Não há parte da cidade mais atraente para um recém-desembarcado do que essa rua, com suas tipografias, lojas de flores de penas, e joalherias. Os diamantes, topázios, esmeraldas podem ser aqui adquiridos em qualquer quantidade, e estão tentadoramente arrumados por trás de ricas vitrinas. As flores de penas e insetos manufaturadas no Brasil são originais e belíssimas.

Os primeiros colonizadores portugueses viram que os índios se adornavam com as ricas plumagens dos pássaros inexcedivelmente brilhantes das florestas. Na região amazônica, os aborígenes não perderam o gosto e a habilidade de seus antepassados e, como os cultivadores de rosas, não se contentam com o vistoso colorido que a natureza pintou, e por meios artificiais produzem novas variedades.

Assim é que, no Rio Negro, os índios Uapés possuem um ornato de cabeça que é altamente estimado, e só se separam dele sob a pressão da maior necessidade. Esse ornamento consiste numa coroa de penas vermelhas e amarelas dispostas em fileiras regulares, firmemente presas numa forte tira franzida. As penas são todas dos ombros da grande arara vermelha; mas não são inteiramente as penas que as aves possuem naturalmente, pois os índios conhecem uma curiosa arte pela qual mudam as cores da plumagem de muitas aves.

Arrancam algumas das penas, e nos vazios assim produzidos introduzem a secreção leitosa da pele de um pequeno sapo. Quando as penas crescem de novo, apresentam um colorido amarelo ou alaranjado vivo, sem mistura de verde e azul como o das aves em estado natural; e dizem que as penas amarelas tão cobiçadas se reproduzem daí em diante sem precisar nova introdução da secreção leitosa.

No Museu Nacional do Campo de Santana, muitos desses curiosos adornos de cabeça e mantos de penas das tribos aborígenes atraem a atenção dos visitantes.

Flores de penas.

Poucas curiosidades são tão estimadas na Europa e nos Estados Unidos como as flores de penas do Rio de Janeiro e da Bahia. São feitas com penas naturais, embora, de quando em vez, alguns novatos tenham sido impingidos com um ramo delas em que as flores, ao invés de serem feitas com penas de papagaio, foram roubadas da parte traseira da branca íbis, e depois tintas. Essa decepção pode ser evitada observando se a haste das penas é colorida de verde, o que não se dá no natural.

Nenhum passageiro dos navios ingleses deve apressar a aquisição dessas belas lembranças das brilhantes aves do Brasil logo que chegue a São Vicente, pois os numerosos vendedores de miudezas dessa ilha oferecem um artigo inferior feito de penas artificialmente coloridas. O Rio de Janeiro é o melhor mercado para esse gênero de artigos.

Nenhum enfeite excede em esplendor as flores feitas com as penas do colo e do pescoço dos beija-flores. Uma senhora, cujo chapéu ou gorro seja adornado com semelhantes penas, parece cercada dos lampejos do mais vistoso e variado brilho. Os cravos e outras flores feitas da feliz combinação das penas do íbis escarlate e da colhereira cor-de-rosa, são também muito naturais e altamente estimados. Bourget, Ouvidor 115, é o melhor naturalista do gênero.

Nessas lojas encontram-se também flores de escamas de peixe, outras feitas com asas de insetos, e alfinetes de peito fabricados incrustando em ouro um pequeno besouro muito brilhante.

Da Rua do Ouvidor quebramos para a Rua dos Ourives, onde há uma série de joalherias repletas de grande quantidade de objetos de ouro e prata, desde um par de esporas até um crucifixo.

Os ônibus.

Dirigimos agora os nossos passos, através do Largo de São Francisco de Paula, para o Largo do Rocio (Largo da Estátua, como o chamam os ingleses), onde tomamos um ônibus para Botafogo. Os ônibus no Brasil são muito semelhantes ao tipo geral de qualquer parte do mundo, com essa singular e importantíssima exceção: — não são elásticos.

Em Nova York ou Filadélfia um ônibus proverbialmente nunca "está cheio", mas o mesmo gênero de veículo no Rio pode ficar cheio e, quando um deles está completo, o condutor fecha a porta, e grita "Vamos embora", sacudindo o cocheiro a sua longa tira de couro e metendo a galope a sua dupla parelha de mulas. E vamos para frente, barulhentamente passando por cima das valetas como se estas não existissem, e rolando por estreitas ruas como se os negros carregadores d'água não estivessem nelas.

É curioso observar os escravos sobrecarregados de peso dar livre passagem nas ruas, escapando-se para as portas abertas das lojas quando surgem os ônibus. Ocorrem poucos acidentes; e quando tal se dá, é pronta a reparação. Certa vez, estávamos numa gôndola na estreita Rua de São José. Nossas quatro bestas orelhudas eram dirigidas em terrível velocidade e, como são mais difíceis de dominar que os cavalos, não puderam ser puxadas antes das rodas dianteiras terem esmagado as pernas de uma pobre mulata velha.

Esta ficou seriamente, mas não mortalmente ferida, e foi instantaneamente socorrida. O cocheiro da gôndola, porém, nunca mais o vimos segurando as rédeas. A Casa de Correção, ou outra das muitas prisões foi, sem dúvida, a sua moradia durante alguns meses.

Ruas estreitas e Regulamento da Polícia.

As ruas, com suas diminutas calçadas, são tão estreitas que em muitas delas só pode passar um veículo de cada vez. Por mais de uma vez lembrei-me de Herculano e Pompeia, não somente pelos utensílios de uso corrente e instrumentos mecânicos, nos mostruários das lojas, como nas residências brasileiras, que pedem um belo vestíbulo (o atrium), e onde ainda se dorme numa alcova sem janela como uma cela de calabouço; nada, porém, lembrava mais visivelmente a semelhança que as ruas estreitas que, sem dúvida, devem sua origem ao desejo de obter sombra.

O sr. George S. Hillard, no seu sugestivo livro Seis meses na Itália, refere-se à estreiteza dos logradouros de Pompeia: "como cada veículo deve ocupar o espaço entre dois meios-fios, isso nos deixa sem poder conjecturar qual o expediente empregado, ou qual o regulamento policial em vigor, quando duas carruagens, movendo-se em sentidos opostos, encontram-se nessas ruas".

Se esse competente autor houvesse visitado o Rio de Janeiro antes de sua excursão às cidades desterradas da Grécia Maior, teria resolvido o mistério. Nas estreitas ruas do Ouvidor, Rosário, Hospício, Alfândega, São José, e outras, os ônibus e carros nunca se encontram; e tão admiráveis são os regulamentos policiais que nenhum engano pode se dar. Na esquina de cada uma dessas ruas, no ponto de encontro com as outras, vê-se pintado, distintamente visível, um índex logo embaixo do nome da rua.

Assim, duas das mencionadas ruas são adjacentes e paralelas com cada uma das outras, e são atravessadas pelas Ruas Direita e Quitanda. Nas esquinas com a Rua Direita, veem-se as seguintes placas:


Imagem: reprodução da página 35 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

Ora, se eu estou num carro no ponto de encontro das ruas Direita e Rosário, e desejo visitar uma loja na esquina da última rua com a Rua da Quitanda, embora seja mais direto para mim subir pela rua do Rosário, o meu Jehú sabe que se contrariar o índice se sujeitará a uma pesada multa e à cassação de certos privilégios dos cocheiros. Ele portanto roda pela Rua Direita abaixo, sobe a Rua do Ouvidor, e vai pela Rua da Quitanda, percorrendo as três esquinas do quarteirão mas evitando um encontro.

Sugestão para aliviar Broadway.

Na cidade de Nova York, durante muitos anos se imaginaram soluções para aliviar o trânsito de Broadway, e dificilmente se encontrará nessa vasta metrópole um cidadão ou visitante que não tenha tido mais de uma ocasião de ser sujeito a grandes transtornos devidos ao "bloqueio" regulamentar instituído diariamente na parte baixa daquele imenso logradouro, tudo isso podendo ter sido evitado pela simples aplicação do plano brasileiro, fazendo com que os incontáveis ônibus, caminhões, carroças e carros descessem Broadway e que os veículos que se dirigissem para o centro da cidade subissem Greenwich Street.


Imagem: reprodução da página 36 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

O Passeio Público.

O nosso ônibus lá vai tocando para frente em marcha rápida. Damos um giro pela Fonte da Carioca e, antes que pudéssemos lançar uma segunda vista para as verdes encostas do Morro de Santo Antônio, já vamos sendo rodados por baixo dos muros ajardinados do alto edifício do Convento da Ajuda.

Tudo aí parece lúgubre, exceto as folhagens que surgem por cima do alto recinto enclausurado. Uma volta nos leva ao Largo da Ajuda, onde, num relance, temos a maravilhosa vista — para os olhos de um homem do norte, pelo menos — do Passeio Público, tendo diante de nós as verdejantes escarpas do Morro de Santa Tereza. Por baixo das árvores tropicais que as cobrem, espreitam lindas e alvas casas de campo, nenhuma outra elevação, dentro da cidade, sendo preferível a Santa Tereza para residência.

O Passeio Público, por onde estamos passando, foi o meu lugar de reunião favorito no Rio de Janeiro; a qualquer hora — quer à noite, quando se mostra brilhantemente iluminado, quer à luz mais intensa do dia — é um dos mais agradáveis passeios dentro dos limites da cidade. Nele se veem altíssimas árvores, parasitas em flor, plantas raras, alamedas sombrias e fontes cheias de frescura. Do lado que dá frente para a baía, há um amplo terraço, donde se tem uma vista magnífica do Morro da Glória, do Pão de Açúcar ao longe e, ainda mais ao fundo, o ondulante oceano.

Passado o jardim público, achamo-nos no logradouro denominado Largo da Lapa. O edifício apalacetado à nossa direita foi adquirido há alguns anos para a Biblioteca Nacional, sendo considerado até então como uma das mais luxuosas moradias particulares do Rio.

Numa rua soberbamente pavimentada, o nosso ônibus apressa mais a marcha; mas de vez em quando um portão aberto ou um alto pinheiro do Cabo da Boa Esperança nos dizem que há jardins por trás dos muros que nos proíbem de vê-los. Vamos atravessando o que é aqui chamado a "Costa d'África" — uma fila comprida de casas baixas à direita, enquanto que, à esquerda, a baía está diante de nós, donde, portanto, sendo a rua privada de sombra, a propriedade do tórrido cognome.

Esse grande edifício de três andares, que foi outrora a Embaixada Inglesa, também alojou uma casa dos expostos [T18]. O chafariz de Santa Tereza foi construído encostado a uma porção rochosa do morro que lhe deu o nome.

Polidez dos brasileiros.

Depois de passar em frente aos jardins do falecido barão de Meriti e pelo Morro da Glória, os passageiros do nosso ônibus começam a descer nas diferentes ruas transversais à do Catete, que é o mais largo logradouro dessa parte da cidade. Cada qual que se levanta para sair tira o chapéu e o cumprimento é correspondido por todos no ônibus, mesmo que nenhum deles se conheça.

Ninguém entra num grande veículo público no Rio sem saudar os que estão dentro e receber em resposta um polido acolhimento à sua presença. Frequentemente uma pitada de rapé vos é oferecida por um vosso vizinho desconhecido. Vi cavalheiros recentemente regressados do Brasil entrarem num ônibus em Nova York e cumprimentarem com deferência os demais passageiros; os polidos estrangeiros foram recebidos com um riso de debique ou olhados com desprezo.

Cada ônibus traz pintada em grandes letras ao lado a sua lotação: por exemplo, "14 pessoas", quer dizer que o veículo está registrado na Polícia como podendo conter esse número de pessoas, e um passageiro a mais sujeitará a companhia a uma pesada multa. Nunca vi mais passageiros num ônibus que aqueles que os algarismos ao lado determinam.


Aqueduto, Largo da Lapa e Passeio Público, vistos de Santa Tereza

Imagem: reprodução da página 38 do 1º volume da edição de 1941, da Cia. Editora Nacional

As Gôndolas.

Mais de uma vez nos referimos a gôndolas, — nome associado aos romances amorosos e a Veneza, "luares, noitadas, e vozes de sonhos". Quando ouvi pela primeira vez esse melífluo nome no Brasil, supus que as esbeltas e graciosas embarcações da Rainha do Adriático tivessem sido transportadas para as iluminadas águas do Rio de Janeiro; logo, porém, percebi o meu engano, e verifiquei que essa doce palavra italiana era empregada para designar o menos poético dos veículos, de quatro rodas, puxados por outras tantas mulas escoiceantes e teimosas!

A gôndola se assemelha a um ônibus em tudo, menos em não ser acompanhada por um condutor. Paga-se adiantadamente ao Senhor Bernardo ou a um Senhor Fulano no Largo do Paço; e, quando há muitos passageiros, são recebidos pelo cocheiro.

Imperturbabilidade dos brasileiros.

A gôndola não tem a vantagem que os ônibus de Nova York possuem, isto é, uma correia de couro com que os passageiros fazem o cocheiro parar o veículo à vontade. Em lugar disso, os passageiros da gôndola fazem livre uso de bengalas, guarda-chuvas e punhos, batendo em rápido compasso na parte da frente da gôndola próxima ao cocheiro; ou às vezes a perna deste é mais forte do que carinhosamente puxada pelo passageiro que se senta junto da última janela.

Algumas vezes a gôndola não pode ser impelida pelos seus remos de carne e osso; e, em tais circunstâncias, quando um escocês, um yankee ou um francês descarregaria a sua impaciência com pesadas palavras sobre o infortunado Jehú, os brasileiros se mantêm perfeitamente calmos, nenhum deles descendo para ver o que sucedeu, conversando uns com os outros filosoficamente como se nada houvesse acontecido.

Certa vez fui testemunha de uma cena que custa ser acreditada. Quando uma gôndola cheia de passageiros estava virando uma esquina na Rua dos Ourives, desgraçadamente empacou. O cocheiro berrou com as mulas, bateu-lhes com o seu comprido chicote de couro cru, fez "chii...u" [A02] para elas, bateu com os pés na plataforma do carro, tudo ineficazmente: os animais não podiam fazer o carro andar.

Nenhum passageiro se retirou, mas todos ficaram olhando das janelas como se aquilo fizesse parte do programa para que haviam pago seus dois tostões (cinco pence), e estavam decididos a fazer jus a tal despesa. O pobre cocheiro estava em profundas aperturas: quase que toda uma multidão se achava reunida junto da gôndola, mas ninguém se oferecia para ajudá-lo, até que afinal ele, por alguns vinténs, alugou o serviço de vários africanos, cujos largos ombros aplicados às rodas, em combinação com o arranco das mulas, moveram o veículo, os passageiros, e tudo mais.

Devido a uma certa inclinação para a filologia, indaguei por que motivo esses veículos públicos eram chamados gôndolas. Informaram-me logo que havia sido concedido um dado monopólio a determinadas companhias de ônibus, que foi considerado oneroso, mas como o governo municipal não podia em consciência abolir o contrato ou conferir nova autorização a mais uma companhia de ônibus, todos os escrúpulos estariam finalmente resguardados concedendo-se privilégio a uma companhia de gôndolas para transportar passageiros!

Terminamos a nossa corrida na Ponta do Catete, e daí nos dirigimos para o Hotel dos Estrangeiros, no começo do Caminho Velho de Botafogo
[T19]; ou poderíamos dar mais uns passos e entrar no Hotel Johnson, no Caminho Novo.

O Hotel dos Estrangeiros é um grande casarão dirigido à moda francesa; o Hotel Johnson é onde os ingleses costumam reunir-se e onde se pode encontrar maior conforto que em qualquer estabelecimento para acomodar hóspedes na cidade. Ambos estão cercados de vegetação, quer consideremos os jardins em volta deles quer os morros adjacentes, cujas encostas estão cobertas de árvores de luxuriante folhagem e plantas trepadeiras. O Hotel Johnson já não existe mais.

Falta de hotéis.

O estrangeiro no Rio de Janeiro fica geralmente surpreso ante a escassez de hospedarias e casas de pensão. Há vários hotéis franceses e italianos com apartamentos para alugar; esses são sustentados principalmente pelos numerosos forasteiros que chegam constantemente e ficam só temporariamente no lugar. Mas entre a população nativa, e pertencentes a brasileiros, há apenas oito ou dez pensões numa cidade de trezentos mil habitantes, e raramente essas ultrapassam as dimensões de uma casa particular. É quase inconcebível como os numerosos visitantes dessa grande metrópole encontram as necessárias acomodações.

Pode-se seguramente supor que o consigam mediante uma pesada contribuição da hospitalidade dos seus habitantes, junto aos quais, em muitos casos, uma carta de recomendação garante uma moradia. Na falta desse recurso, o forasteiro tem que alugar um quarto e, com auxílio de seu criado e alguns móveis, consegue manter-se, recorrendo mais ou menos frequentemente a alguma casa de pasto ou restaurante.

A maioria dos membros da Assembleia Nacional montam casa particular durante a sua estadia na capital. Em consequência dessa falta de hotéis e pensões, algumas firmas comerciais mantêm uma mesa para seus empregados e hóspedes. Isso já foi mais comum, faz tempo; depois, porém, de 1850, a maior parte daqueles que assim se acomodavam associaram-se e alugaram casa em Botafogo, Praia Grande ou Santa Tereza, e mantêm casa própria.

Primeira noite no Rio.

Tendo servido de cicerone, até aqui, do leitor nesse rápido giro através desta cidade tropical, não encontro melhor meio de terminar o dia do que imaginar-se ele num dos amplos quartos do Hotel dos Estrangeiros.

Durante tantos dias, num beliche estreito, a gente vem sendo rolada pelos vagalhões do oceano, e esta é a primeira noite passada em terra firme, em confortável leito. As janelas do quarto estão totalmente abertas e, fechando os olhos, sente-se a brisa da terra, que docemente murmura, trazendo em suas asas não somente o suave e fresco perfume da terra, como, roubando em sua passagem pelos jardins próximos a fragrância dos jasmins, o delicado aroma da florapondia e o perfume das flores recém abertas das laranjeiras, enriquece o ambiente da noite com os mais ricos aromas.

O gemido distante das vagas, que se veem quebrar na Praia do Flamengo, é uma suave melodia, que acalenta o sono para se sonhar com cenas não mais deleitosas que aquelas que nos rodeiam nas quais existem.

As maiores constelações brilhando, suaves luares e felizes céus,
Variedades de matizes tropicais, palmeiras em grupos, trechos de paraíso.
"

uma terra onde

"Deslizam os pássaros sobre matas luxuriantes, pendem as trepadeiras dos píncaros.
Arqueiam as abóbadas cobertas de flores, erguem-se as árvores carregadas de frutos,
Ilhas estivais do Eden repousando nas esferas purpúreas do mar.
" [A03].


Notas do autor:

[A01] Na "vista do Rio de Janeiro, tomada da Ilha das Cobras", somente se vê a face do edifício da Alfândega que dá para o mar, estendendo-se por cima de toda a fila das palmeiras que se veem ao fundo.

[A02] Som irrepresentável por meio de letras, semelhante ao empregado nos Estados Unidos para chamar as galinhas e que, no Brasil, todas as classes sociais, empregam para atrair a atenção dos outros. 1866 — todas as gôndolas têm agora condutor.

[A03] Nota de 1866 — As gravuras das páginas 21 e 23, embora graficamente representem as coisas como eram em 1855, não estão mais adequadas. Foram conservadas como documento histórico. O governo proibiu esses exaustivos e cruéis trabalhos da parte dos escravos. O café é atualmente carregado em carroças. A municipalidade do Rio deve dar mais um passo a frente e cobrar o triplo da licença para as carroças que não tiverem molas.

Não tratar do peso imenso do veículo atualmente em uso, que só encontra paralelo em Portugal, é deixar que ele esfarele em pedaços o calçamento das ruas, agindo sobre ele como um malho de grande peso. Um carro de molas pode ter a mesma força com a metade do peso, um só animal pode fazer o mesmo trabalho que ora exige dois para o peso brutal destruidor de ruas que atualmente se emprega. Ficamos satisfeitos de ver no Rio já algumas carroças de molas de Nova York. Venham outras, e os fluminenses terão que pagar menores taxas de calçamento.

Notas do tradutor:

[T15] Atual Praça 15 de Novembro.

[T16] Atual Rua 1º de Março.

[T17] Edifício atualmente ocupado pelo Banco do Brasil.

[T18] A roda dos Expostos, antes de ocupar o seu lugar atual na Rua Marquês de Abrantes e depois de ocupar o edifício aqui mencionado na Praia da Lapa, esteve na antiga Rua dos Barbonos, atual Evaristo da Veiga, até a data em que o governo comprou à Misericórdia os edifícios em que funcionou, para ampliar o quartel dos Barbonos, nome por que era então conhecido o quartel da Força Policial que ainda aí existe.

[T19] Atuais ruas Senador Vergueiro e Marquês de Abrantes.