SEXTA PARTE (1926-1935)Capítulo LXXXIV
Mauá - Gaffrée - Guinle
Nesse decênio acolheu a imprensa carioca, como de costume, os
relatórios anuais da empresa.
Para não citar senão uma destas referências, ressaltou ainda uma vez o Jornal do Commercio, a propósito do de 1934, a significação da obra realizada, com homens à altura dela. O fato era
tanto mais para salientar, quanto no porto do Rio se havia rescindido o contrato, passando a ser o cais administrado pela União (29 de abril de 1934):
Certo, as Docas de Santos tiveram de aparelhar um porto que é todo de excepcionais condições de êxito e de grandeza. Mas os brasileiros que assumiram as
responsabilidades de seu aparelhamento estiveram sempre à altura do formidável e excepcional encargo.
Não fizeram da empresa uma simples exploração para lucros imediatos, que foram aliás grandes, mas um empório com a consciência da missão que lhe poderia caber, como coube, no desenvolvimento econômico do país.
As Docas de Santos exerceram, além disso, grande influência no saneamento do porto e da cidade a que servem. Santos era uma cidade vítima das epidemias de febre amarela e do impaludismo. Antes das teorias de Finlay e da experiência dos
norte-americanos em Cuba, os trabalhos do aparelhamento do porto de Santos mostraram que, extintos os pântanos, drenadas as águas estagnadas, consolidados os terrenos onde perduravam os poços de mosquitos, estes portadores dos males terríveis não
encontravam meio para sobreviver e espalhar a sua progênie.
Nessas condições, as obras das Docas de Santos sanearam a linda cidade, antes do saneamento do Rio, e proporcionaram ao grande porto comercial não só a grande expansão econômica que teve com a sua paralela transformação em sítio de recreio e
centro balneário. A Docas, aterrando, terraplenando, tornando os terrenos estanques, transformou Santos na cidade salubre que hoje apresenta um coeficiente admirável, como grau de civilização e garantia de seus habitantes.
Em São Paulo, havia-se antes feito o paralelo entre Mauá, construtor da São Paulo Railway, e Gaffrée & Guinle, do porto de Santos, obras essas que se completavam. Assim quanto a
Mauá, na seção livre do Correio Paulistano (13 de novembro de 1927):
No gozo e na fartura se havia enregelado a fibra dos conquistadores da terra. Ela voltava, porém, revigorada na pessoa de um filho rio-grandense. Quando
todos desanimavam ou naufragavam, surge ele, forte; e a bandeira dos trilhos de ferro, que 20 anos tinha sido levantada na concessão Aguiar Viúva, Filhos &U Companhia, é conduzida por Irineu Evangelista de Souza, a quem dois grandes paulistas, um
de nascimento, outro de adoção, os marqueses de Mont'Alegre e São Vicente, associam a força de seus nomes, prestando-se a figurar como concessionários da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí. E a obra foi feita.
O dinheiro brasileiro de Mauá tomou mais de metade do capital de que os Rothschilds tomaram menos da quarta parte; e o dinheiro do Banco Mauá, em Santos, veio ainda suprir depois £ 414.000, que os mercados londrinos recusavam para acabar a obra
ameaçada de abandono.
Em 1868 inaugurava-se a Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, cujo provável desastre de tal forma aterrorizara os paulistas, que durante a construção os poderes provinciais haviam mandado abrir ao lado uma estrada de rodagem, por muitos anos
abandonada, até agora, quando os automóveis começam a tirar proveitos do turismo. Aquele enorme depósito de riquezas, que a genialidade de Mauá adivinhou no coração do Brasil, tinha encontrado o seu escoadouro. A Serra ficava vencida.
Quanto a Gaffrée & Guinle:
Em 1899, quando se constituía a empresa do porto de Santos, Gaffrée & Guinle eram os responsáveis quase que exclusivamente da concessão. Modestas fortunas,
então amontoadas lentamente em empreitadas de estradas de ferro e em empreendimentos comerciais. Candido Gaffrée e Eduardo P. Guinle passaram a consagrar toda a sua atividade e todos os seus recursos de dinheiro e de crédito à execução dessa
obra, que Gaffrée denominava única menina dos seus olhos, parodiando o seu conterrâneo Mauá, que chamava a sua estrada de ferro a menina de meus olhos.
Dentro em pouco, a inflação das emissões duplicou e triplicou os valores em papel dessas modestas fortunas; no meio das loucuras do encilhamento, Gaffrée & Guinle nunca se desviaram do seu objetivo. O que apuravam em ágios que a todos tocaram
porque tudo subia, logo invertiam em blocos de concreto para a muralha do cais de Santos.
E não bastou esse dinheiro. Nada bastava. Todos os cálculos falhavam com o preço alto do custo das obras, determinado por uma baixa de câmbio que, da taxa de 27, vinha em 8 anos às proximidades da atual, no fim do quadriênio Prudente de Moraes.
A empresa correu risco. Em momento dado, abeirava-se da falência. Salvou-a o crédito pessoal dos empreendedores. Recordava vaidosamente Gaffrée o elogio que dele fizera um jornalista na comparação a Bernardo de Palissy, lançando os seus últimos
móveis ao forno, de ondeia sair o esmalte da porcelana.
Na diretoria do Banco do Brasil, dois homens que neles confiavam cegamente abafaram os seus sustos de banqueiros, em bem da execução da obra nacional, Diogo Duarte e Luiz Martins do Amaral, fornecendo a Gaffrée & Guinle 11.000 contos com que se
completaram as primeiras instalações do cais de Santos.
Dos 300 ou 400 mil contos que o Banco havia arriscado na febre dos negócios, foram estes dos poucos que lhe voltaram e dos poucos que produziram utilidades ao país.
Tinham sido lançadas em 1930 as pedras fundamentais do edifício para a Alfândega, para a estação sanitária em Itapema e o Lazareto Veterinário na Conceiçãozinha
[38]. Estavam incluídos todos na verba de 10.000 contos para a construção de edifícios federais.
A inauguração da Alfândega se realizou em 19 de novembro de 1934, com a presença dos ministros da Viação e Fazenda e altas autoridades federais, estaduais e municipais. O edifício
ocupa uma área de 2.400 metros quadrados, tem cinco pavimentos e, pelas suas dimensões, linhas arquitetônicas, disposições internas e esmerado acabamento, constitui a melhor sede aduaneira do Brasil.
Entregando o edifício ao Governo da União, o presidente da empresa, depois de lembrar o decreto n. 18.284, de 16 de junho de 1928, e o aviso n. 1.937, de 18 de outubro de 1933,
determinante da construção, recordou que ali fora sempre o lugar da Alfândega:
É talvez interessante saber-se que há mais de um século funciona neste local a Alfândega de Santos. De fato, em 1806, o governador França e Horta resolveu
aproveitar o velho Colégio de Jesuítas, que aqui se elevava, para nele instalar, além da Alfândega, os armazéns de sal, o hospital militar e a residência dos capitães generais, quando de visita a esta cidade.
Ocupou a Alfândega os fundos do edifício, fronteiro ao mar, até 1838, quando, mudado o Hospital Militar, obteve ela mais outras dependências do Colégio, até que em 1840 ficou utilizando sozinha todo o vetusto casarão.
Nessa época, a Guardamoria funcionava no antigo Forte de Nossa Senhora do Monte Serrate, e num armazém a ele contíguo. Em 1876, muda-se a Alfândega para o quartel de polícia, para que fosse demolido o velho prédio do Colégio dos Jesuítas e em seu
lugar construído um outro, especialmente a ela destinado.
Mais tarde:
Em 13 de dezembro de 1880, instala-se a Alfândega em sua nova casa, onde esteve até 1924, quando o mau estado de conservação do edifício a obrigou a
mudar-se novamente, indo, em agosto, funcionar no armazém externo n. XIV, que a Companhia Docas gratuitamente cedera.
Nesse armazém, em caráter provisório,trabalhou a Alfândega durante dez anos seguidos até agora, quando ela volta novamente a seu secular domínio, para ocupar este novo edifício.
Espero que ela aqui permaneça longos anos, até que o desenvolvimento de seus serviços exija outra mudança, para que novamente ganhe ela outra casa, que melhor sirva às suas necessidades, sempre crescentes, como vem acontecendo desde mais de um
século.
Depois, fez Guilherme Guinle o histórico da construção, dizendo do pesar com que a empresa via, para tal porto e para tal cais, instalada a Alfândega num armazém de café:
Em 29 de março de 1930, foi lançada a pedra fundamental deste edifício, com a presença de ss. excias. os srs. ministros da Fazenda e da Agricultura, drs.
Oliveira Botelho e Lyra Castro, e mais outras altas autoridades federais, estaduais e municipais.
Apesar de declarada no país a grave crise financeira de novembro de 1929, que profundamente afetou a situação financeira do porto, apesar do período revolucionário, havido neste Estado em 1932, que paralisou por completo a vida do porto, nunca
deixou a Companhia de trabalhar nesta obra um só dia, para dar cumprimento à sua obrigação contratual.
Sabia a Companhia que tinha que inverter aqui alguns milhares de contos de réis e não esmoreceu, persistiu no trabalho empreendido, tendo ela hoje a satisfação de entregar a v. excia. a obra que aqui está.
Além do empenho, em que estava, de dar satisfação completa à sua palavra empenhada, um outro motivo levava a Companhia a prosseguir na sua tarefa.
Ela via, desolada, a situação em que a Alfândega desta cidade se encontrava, instalada num armazém de cargas, onde de pouco conforto dispunha seu pessoal para realizar a árdua tarefa de que está incumbido. Eram os seus companheiros de trabalho
que a Companhia assim via desamparados e lhe corria a obrigação de tudo fazer para melhorar-lhes a situação.
Por último:
Digo, sr. ministro, companheiros de trabalho, ao referir-me ao operoso quadro de funcionários aduaneiros, que neste porto exerce a sua árdua função de bem
zelar pela boa arrecadação das rendas fiscais, porque doutro modo não os pode considerar esta Companhia.
De fato, na vida quotidiana de labor intenso deste porto, de tal modo se entrelaçam e se completam os serviços aduaneiros e os da Companhia, que podemos nos considerar irmanados na tarefa comum de bem servir ao público, defendendo os interesses
gerais a nós confiados.
Mais de uma vez pôde a Companhia constatar o prazer crescente de todos os funcionários desta casa, à medida que as obras iam caminhando para seu fim.
Essa alegria se nos comunicava e nos dava força para prosseguir, sem desânimo, apesar das dificuldades sérias que teve a Companhia de enfrentar. Hoje cabe à Companhia o momento de se alegrar também, entregando a esses prezados companheiros uma
casa digna deles.
Coube a Paulo Martins, diretor das Rendas Internas, depois que o ministro da Fazenda falou sobre a situação geral do país e a orientação do Governo, dizer do que era Santos na
economia do Brasil. Confessava sua emoção e alegria por ver, afinal, instalada num edifício condigno a Alfândega:
Não se compreendia continuasse esta Alfândega alojada no velho casarão que foi outrora o Colégio da Companhia de Jesus e muito menos, nos armazéns da
Companhia Docas. A grandeza do porto de Santos contrastava com a misérrima instalação de sua aduana. Tem, afinal, esse grande departamento aduaneiro, instalação condizente com a sua qualidade de alfândega especial.
Examinemos aqui, em rápida revista, os algarismos atestadores da grandeza do porto de Santos, reflexo da pujança comercial do Estado de São Paulo. Santos é o porto do Brasil de maior exportação. Bastará dizer que 55,7% das mercadorias nacionais,
vendidas para o exterior, saem por Santos. Quanto à importação, ocupa o porto desta cidade o segundo lugar. Em 1929, quando sua importação foi de £ 34.572.000, ocupou o primeiro, porque a do Rio se representou por £ 31.784.000. Somadas a
exportação e a importação, ainda ao porto de Santos cabe o primeiro lugar. Esse comércio, em 1933, foi de £ 30.287.000, ao passo que o do Rio alcançou £ 18.616.000. É ainda o porto de Santos que contribui com o maior saldo do nosso intercâmbio
comercial.
Mais:
Em 1933, o saldo da balança comercial do Brasil foi de £ 7.658.000; mas o da balança do comércio exterior, pelo porto de Santos, foi de £ 9.541.000, ou
mais de £ 2.000.000 que o do Brasil.
Santos foi sempre a maior fonte de saldos em nosso intercâmbio, mesmo nos períodos em que a nossa balança foi deficitária.
Nos últimos trinta anos, os saldos pelo porto de Santos oscilaram entre o mínimo de £ 6.000.000, em 1918, época da grande geada, que devastou os cafezais paulistas, e o máximo de £ 42.160.000, no ano seguinte, isto é, em 1919.
No comércio de cabotagem está o porto de Santos em segundo lugar, logo após o do Rio. Em 1933, exportaram-se por cabotagem, por Santos, 442.018 contos, e importaram-se mercadorias no valor de 299.644 contos.
Para a renda aduaneira do Brasil contribui Santos com 40%. O Estado de São Paulo, depois da Capital Federal, é o maior contribuinte da renda da União. Em alguns anos essa contribuição tem atingido a 35% do total da renda.
Estava a Alfândega na mesma praça em que se alteia o monumento a Braz Cubas, fundador de Santos. E isso mereceu de Paulo Martins esta referência histórica:
O crescimento do comércio efetuado pelo porto de Santos exigia que se enfrentasse, cumulativamente, dois problemas: o da construção do porto e o do
saneamento da cidade. Até às alturas de 1878 nada se fez de aproveitável. Mas, nesse ano, o Governo entendeu de estudar o assunto a sério e, no ano seguinte, as plantas para a execução do porto estavam concluídas. Mais tarde, em 1888, fundou-se a
Empresa de Melhoramentos do Porto de Santos, por iniciativa de Candido Gaffrée, Eduardo Guinle, Francisco de Paula Ribeiro e Guilherme Weinschenck.
Aqui estão alinhados os nomes de quatro cidadãos que a cidade de Santos não pode e nem deve esquecer. Com recursos difíceis, encontrando a cada passo desalentos e decepções, conseguiram, em 1892, transformar aquela empresa em Companhia Docas de
Santos, com o capital de 20 mil contos. Já nessa fase o porto de Santos era uma afirmação, embora o estado sanitário da cidade oferecesse o mais deplorável nível demográfico. A febre amarela dizimava impiedosamente nacionais e estrangeiros. Mas,
o que é de acentuar aqui, como título de benemerência àqueles ilustres cidadãos, é a circunstância de terem sido as obras, em todas as fases de sua execução, custeadas sempre com capitais exclusivamente brasileiros.
Foi também nesse dia que se inaugurou a Avenida Francisco de Paula Ribeiro.
Nada mais justo. Francisco de Paula Ribeiro não serviu à Companhia na sua última fase, mas foi dela em Santos a alma administrativa, no seu período mais ingrato – o das obras iniciais, da luta com os trapiches e a febre amarela, do primeiro
abarrotamento do porto etc. Nem sempre essa ação teve eco público, mas nunca deixou de ser oportuna, eficaz. A descendência numerosa sobrelevou-se por empreendimentos sociais e humanitários, um de cujos exemplos foi, ali mesmo, a doação feita por
Samuel Ribeiro e sua mulher d. Heloisa Guinle Ribeiro, do edifício em que se fundou e desenvolveu o ambulatório que, instituído pela Companhia, para seu pessoal, atende hoje a toda a população de Santos.
Nesse mesmo dia, inaugurou-se igualmente, com as mesmas autoridades, o monumento a Candido Gaffrée e Eduardo P. Guinle, a que se referira uma moção da intendência por ocasião da morte do segundo e mandado levantar pela empresa, em memória
daqueles seus dois fundadores. O monumento era o cais, seus acessórios; o que se inaugurava, era a lição às novas gerações sobre quem os havia construído. Entregando-o à Municipalidade, recordou Oscar Weinschenck – e ninguém com mais orgulho e
saudade o podia fazer – os primeiros trabalhos:
Foi neste local, senhores, no antigo Arsenal de Marinha, que a Companhia levantou seus primeiros barracões; fi naquela esquina, onde hoje se ergue o
edifício do Santos-Hotel, que ela teve seu primeiro escritório, foi aqui que, dentro de velhas casas, se reuniram e viveram os primeiros grupos de seus operários e contramestres; foi ali, do lado do mar, em ponto fronteiro a esta praça, que se
lançaram as fundações do primeiro trecho do cais.
Neste local, portanto, iniciou-se a grande obra executada pela Companhia; foi daqui que aos poucos se foi tornando realidade o sonho audacioso de um grupo de homens decididos, que agiam conduzidos pelo seu elevado espírito público e pela
confiança que tinham no futuro de sua terra.
Sendo assim, era aqui e não em qualquer outro lugar que devia ser levantado o monumento em homenagem aos dois grandes lutadores, Gaffrée e Guinle.
E que tenacidade foi preciso ter, que lutas a enfrentar até aquele dia!Depois de lembrar as tentativas alheias e a obtenção da concessão por Gaffrée & Guinle:
Começou, desde logo, a se desenvolver o trabalho titânico dos organizadores da firma que ia executar o contrato de concessão.
Foi preciso, primeiro, lutar contra as epidemias reinantes e devastadoras de febre amarela, que dizimavam o pessoal; foi preciso obter capitais, cujo vulto excedia o das primeiras previsões, isto é, aquele de que dispunham os sócios da firma e
seus amigos pessoais, todo invertido na execução dos trabalhos; foi preciso vencer as condições ingratas do terreno em que iam sendo executadas as obras, que no gênero eram as primeiras realizadas no Brasil; foi necessário, sobretudo, vencer a
descrença do meio, que os insucessos anteriores justificavam, permitindo augurar, para a nova tentativa, um novo fracasso.
Não desanimaram, porém, os novos concessionários. Empenharam todos os bens que possuíam, pediram emprestado, sobrecarregando-se de dívidas, mas aguardando confiantes os melhores dias, que deveriam chegar, como resultado de seus esforços tenazes.
É que, meus senhores, como fazem agora do alto deste monumento, já naquela época distante, Candido Gaffrée e Eduardo P. Guinle, contemplando o Estado de São Paulo, anteviam-lhe o futuro grandioso, que é hoje esplêndida realidade, a acentuar-se a
todo o momento e cada vez mais.
Mauá fizera a São Paulo Railway, e o complemento foi o cais de Santos:
A tenacidade de Mauá tinha feito construir-se a atual São Paulo Railway, permitindo os transportes fáceis do altiplano até o mar. A obra de Gaffrée e
Guinle vinha completar aquela, aparelhando o porto de Santos para o fácil transbordo, entre a via férrea e a navegação de todas as mercadorias que o comércio com o exterior da província tivesse de movimentar.
Realizava-se uma obra nacional, projetada por brasileiros, por eles executada, por eles financiada e por eles mantida, com o desejo continuado de serem úteis ao seu país, pois, decerto, já lhes cantava n'alma a legenda rotariana – "mais se
beneficia quem melhor serve". Até agora, no Brasil, nenhuma outra obra de porto, com o vulto da de Santos, se realizou por iniciativa particular.
Respondeu o prefeito da cidade, Aristides Bastos Machado, aludindo aos dois resultados – estrada de ferro e porto:
Ainda depois de vencida a Serra pela máquina, o Governo da Província de São Paulo, ou por medo à aventura, ou por míngua de recursos financeiros,
procrastinava a construção do cais do porto, obra indispensável à expansão do nosso intercâmbio comercial e à salvação da saúde dos moradores da cidade miasmática, insalubre pelo regime das marés a invadir-lhes as ruas e vielas, cobertas, nas
vazantes, de detritos lodosos, depositados pelas águas.
Naquela época, em que o capital estrangeiro, quase desconhecido no Brasil, receava não só as pestes que nos dizimavam, como a sorte dos empreendimentos, num país despercebido para a luta econômica, o arrojo destes dois ilustres coestaduanos de
Mauá, fascinados pela ação fecunda do sublime mestre de energia criadora no derradeiro quartel do Império, levou a cabo esta obra grandiosa, que nos enche de orgulho nacionalista, porque é essencialmente brasileira – a construção do porto de
Santos.
Obra devida à capacidade empreendedora e corajosa dos dois brasileiros a quem rendemos, agora, um preito de gratidão e reconhecimento, obra custeada com capitais brasileiros; obra que é, desde a origem, atestado magnífico da aptidão técnica de
profissionais brasileiros, reunidos sob a direção do doutíssimo Benjamin Weinschenck, a construção das docas santistas é padrão do engenho e do destemor brasileiro, para edificação dos que menosprezam a inteligência e a valia da gente brasileira.
Adiante:
Se para o trabalho paulista a ideia do tráfego para o mar, iniciada pelo espírito ardente de Mauá e ultimada pelo arrojo de Gaffrée e Guinle, tem a
significação dos feitos inestimáveis, pelo infinito do seu valor, para o santista, particularmente, ela trouxe, além disso, um sentido humano indissimulável.
Isso aqui era mais um hospital que uma cidade e, em certos transites, mais um cemitério que um núcleo de população. O alfange da morte não descansava da tarefa destruidora de vidas, porque as condições mesológicas deste porto eram propícias à
ceifa de homens.
Foi inegavelmente, a construção do cais autorizada pelo Governo Imperial, em 1888, o passo inicial para o saneamento da cidade. Só depois desta obra, primeiro socorro sanitário trazido à população flagelada pelas pestes, volveu o Governo de São
Paulo as vistas para Santos e deu-lhe, então, água potável abundante, serviço eficiente de esgotos e drenagem e de higiene urbana.
Concluindo:
Senhor dr. Oscar Weinschenck: A cidade de Santos não se surpreende com as palavras carinhosas da vossa oração. Tendes motivos de ordem sentimental para
querer a Santos todo o bem possível. Nas pedras deste cais se desgastou a vida laboriosa de vosso grande progenitor, o insigne engenheiro Weinschenck, cuja imagem a nossa saudosa recordação vislumbra na cantaria com que a sua ciência dominou o
mar.
É das mãos do filho deste obreiro inteligente e digno que a cidade recebe, agradecida, este monumento à lembrança sempre viva de seus dois beneméritos benfeitores, Candido Gaffrée e Eduardo Guinle.
Sob o título "O porto de Santos visto através a construção que lhe imprimiu a Companhia Docas", fez a Tribuna um longo quadro histórico – Santos em 1888, a febre amarela,
as tentativas de construção, seus entraves.
Sobre o porto de outrora:
Tristes tempos aqueles! De velhos pardieiros em trapiches alfandegados, tortuosas e alquebradas pontes de construção pré-histórica, serpenteavam pelo
lodaçal até penetrarem algumas braças nas águas turvas da baía.
Sob o tremendo bochorno dos dias estivais, a pele suarenta e escaldante, enxameavam por ela turmas de homens brancos, que a sedução de um "El Dorado" para tantos enganoso atraíra d'além-mar, de envolta com os negros filhos da raça escravizada da
África, arquejando todos ao peso da carga de que iam aliviando o bojo dos navios e atulhando os trapiches.
Os barcos, cuja atracação se apresentava problemática por muito tempo ainda, descarregavam mesmo ao largo, sobre pontões, sorte de velhos cascos aposentados, onde as mercadorias, a troco de grossa armazenagem, jaziam até o dia em que o Fisco,
cobrando-se das respectivas taxas, permitia seu livre ingresso no território nacional.
Serviços primitivos deficientíssimos, executados com a desesperadora lentidão da única máquina da época, o braço humano, cobrados a peso de ouro pelos felizes trapicheiros e pontonistas, e sujeitos, para os importadores, a toda a espécie de dolos
e ludíbrios clamorosos, deixavam eles tanto a desejar e atentavam tanto contra os nossos foros de povo progressista e honesto, que a péssima nomeada do porto de Santos se tornara corrente e proverbial na Europa, levantando séria animosidade no
espírito dos armadores, muitos dos quais se negavam sistematicamente a que seus barcos demandassem nossas águas, a menos que os exportadores lhes acenassem com fretes fabulosos.
Ainda:
Verdade seja que miraculosas fortunas, surgindo num ápice, fizeram aquela época chegar até nós com o sugestivo nome de "tempo da mina"… Mas a que preço
eram elas obtidas? Pela porta francamente escancarada do contrabando, que a espantosa desorganização dos serviços do porto não permitia coibir; pela ausência absoluta de escrúpulo na apropriação indébita de mercadorias atiradas ao acaso e
confundidas aos montões na praia, e pelo atrevimento que animava os espíritos avassalados por desmarcada ambição, arrostando os botes mortais da febre amarela na conquista de uma fortuna rápida e polpuda.
A febre amarela! Endêmico naqueles tétricos tempos, o terrível morbus tinha o seu principal habitat radicado no paul nojento e miasmático que cintava, na orla marítima, o coração da cidade, o seu centro comercial. Sob a canícula
senegalesca dos sóis de verão, o pântano fervilhava na química elaboração de gazes deletérios; e, à noite, quando vencida, esgotada por um trabalho exasperante, a população recolhia aos seus lares e amodorrava sob a pressão angustiosa da
atmosfera abafadiça, portas a dentro entrava-lhe o pútrido odor da "maresia" acompanhado de legiões de mosquitos vorazes, em que a ciência oficial não descobrira o terrível transmissor da pavorosa epidemia.
E depois de larga exposição:
E aqui é tempo de mencionar o nome do grande executor do cais do nosso porto, o saudoso engenheiro Guilherme B. Weinschenck, de quem
disse Candido Gaffrée, ao vê-lo apresentar-se:
"Amigo dedicado que me acompanhou desde o dia em que se lançou a principal pedra do cais de Santos, companheiro infatigável que dedicou toda a sua atividade, toda a sua inexcedível competência durante mais de trinta anos, às obras grandiosos do
porto de Santos, que perpetuaram o seu nome e a sua excepcional capacidade".
Extintos que são, por sua vez, Candido Gaffrée e Eduardo Palassin Guinle, eles não viverão subjetiva e imorredouramente somente pela homenagem que, em sua memória, hoje se inaugura, mas, e principalmente, pela grandeza do cometimento que levaram
a cabo com um descortino, energia e competência acima de qualquer encômio, a par de acendrado patriotismo, culminado na obra gigantesca, puramente nacional, de que o nosso país se pode ufanar, e que iguala, se não supera, congêneres das mais
civilizadas nações do globo.
Aspecto atual de uma parte do cais (1935)
Foto: reprodução da página 674-a
[38] "Em 29 de março do ano próximo findo, com a presença dos
srs. ministros da Fazenda e da Agricultura e dos secretários da Fazenda e da Agricultura do Estado de São Paulo, dos representantes dos srs. ministros da Viação e do Interior e do sr. presidente do Estado de São Paulo, do sr. prefeito de Santos,
de outras autoridades federais e estaduais e de pessoas gradas, foram lançadas as pedras fundamentais dos edifícios para a Alfândega de Santos, para a Estação Sanitária em Itapema e para o Lazareto Veterinário na Conceiçãozinha.
"As obras de construção da Alfândega já foram iniciadas, depois de penoso trabalho de rebaixo na rocha existente no local do velho edifício demolido, rebaixo que se estendeu a uma considerável área da Praça da República, serviço necessário para
regularizar a via pública em frente ao novo edifício". Relatorio da Diretoria, 1931.