SEXTA PARTE (1926-1935)Capítulo LXXXV
Conclusão
Já é tempo de encerrar-se esta exposição. Nada do que ocorreu, a favor
da Companhia Docas de Santos, ou contra ela, deixou de ter referência.
Talvez haja, por isso, demasia de documentação. Preferiu-o o autor, pela luta que a empresa enfrentou, as apreciações violentas de que foi alvo, o longo,
perturbado caminho que percorreu. Só dessa maneira se poderia pôr em relevo a verdade, nem sempre reconhecida, ou salientar certas circunstâncias adrede ou sem propósito olvidadas.
Essa documentação evidencia a vontade de dois homens, desprovidos de diplomas universitários, lançando-se à construção de uma obra técnica, não conhecida no
Brasil e que já havia feito desanimar outros, quando não o próprio Estado a que ia servir.
Seria isso bastante para que ficassem perante a opinião no número dos que trabalharam com acerto pelo progresso econômico do país. E conheceram-se então mais
pela abastança em que viveram e morreram, nivelados até a certos capitães de indústria, de todas as épocas e nações, para os quais só o lucro material conta. A resenha histórica, que ficou atrás, coloca Candido Gaffrée e Eduardo P. Guinle no seu
papel, mostrando o que lhes inspirou a ação, como nela andaram, quais as vicissitudes e finalidades do trabalho realizado.
Ainda está por fazer-se no Brasil a história dos homens que nos deram as estradas de ferro, os portos, as docas, todos os melhoramentos materiais que
estadistas ou legisladores puseram em ação, mas homens de negócio ou engenheiros projetaram e realizaram. Nem por menos conhecido, o esforço destes é menor do que o daqueles. Houve mesmo, em torno, mais doestos do que louvores; mas as obras
ficaram, arcabouço do país de amanhã.
Não faltou até um sorriso escarninho, quando é certo que o esforço do empresário não vale menos do que o dos criadores políticos da nação. Inaugurando em Pot
Said o monumento a Lesseps, não achou o visconde de Vogüé outro termo que aquele para defini-lo: "Entrepreneur, réfléchissez au sens premier et à la beauté intérieure de ce mot..."
No setor da vida brasileira, que escolheu para edificar, a Companhia Docas de Santos foi precursora, fazendo obra notável e perene. Ali, de fato, o primeiro
porto construído, entre nós, por iniciativa privada, com capitais, direção técnica e administrativa nacionais, quando todos os demais se fizeram com dinheiro de fora, alguns dos quais, ainda assim, como o do Rio de Janeiro, pelo próprio Estado,
senão quando, como Manaus, por companhias estrangeiras.
Criação única entre nós, a esse respeito, ela também se antecipou às demais, pelas preocupações e consequências sanitárias que a caracterizaram. Santos muito
lhe deve a este respeito: na febre amarela, pela contribuição de saneamento que foi o cais; e, sem dizer de outras melhoras gerais, na malária, pela campanha empreendida em Itatinga. Essa campanha, segundo seu organizador e chefe, foi a primeira
e a de maiores resultados no Brasil; e nela assentou Carlos Chagas doutrina sobre a malária, aceita depois universalmente.
Não só, porém, pelo que fez, como também pelos embaraços que encontrou, foi singular a Companhia. Nenhuma outra teve os embates que a adversaram. Construir é
fazer coisa solidária, mas é também despertar interesses, lutar.
Além dessas contingências de ordem geral, deparou a empresa em São Paulo, mal inaugurado o primeiro trecho do cais, campanha que a pintou como órgão
espoliador, em vez do instrumento de riqueza, que de fato seria; e essa campanha lançou a semente, de que brotaram outras, na questão da alfândega da capital, na da exibição dos livros, na do direito exclusivo de melhoramentos do porto, na das
capatazias em sua forma legal e em sua redução legislativa; etapas todas de um caminho longo e porfiado, no qual nenhum adjetivo se poupou contra a empresa. Tendo razão na aparência, não a tinha o Estado no fundo, donde difícil a conciliação.
Nessa luta, ficou também provado, foram adversários a imprensa de São Paulo, muitos de seus homens públicos, vários de seus dirigentes, quando não o próprio
Governo. Explicaram-se também as circunstâncias que atuaram em cada qual dessas campanhas e foram sete, como delas se saiu a Companhia - administrativas, políticas, apenas de imprensa ou judiciais.
Tendo crescido em perene defensiva, é seu orgulho que, um a um, viu vencedores os princípios pelos quais lutou. Acusada de opressiva e perdulária, não só
construiu o cais mais barato do Brasil, como foi a que menores taxas exigiu. Compararam Santos, a tal respeito, ao Rio de Janeiro, e entretanto, essa comparação, assim na construção como na administração, foi sempre, pelo contraste, seu melhor
argumento.
Tida por um Estado no Estado, não procurou defesa que não fosse a legal, de seus contratos. Eis porque no foro não perdeu questão em que foi chamada, desde
antigos sócios pretendendo indenizações, ou vendedores de terrenos reclamando depois preço maior, até essa questão meio secular das capatazias, na qual foi uniforme a decisão administrativa e forense; reivindicação que não exclui a mais rumorosa
causa, a da exibição de livros, onde, se perdeu em princípio, ganhou de fato pelo acordo, a que a sentença implicitamente obrigava e fez-se.
Seria absurdo pretender que a empresa devesse isso à sua estrela, quando não ao poder de seu ouro, tantas e ruidosas vezes apregoado; porque, mais do que tudo,
ela o devia à estrutura legal em que se ergueu, ao tino e à pertinácia com que, ano sobre ano, soube amparar-se, em meio das maiores dificuldades, perante administrações estaduais e federais que se renovavam em seus homens e inspirações, durante
quase meio século.
Primaz, sem dúvida, Candido Gaffrée teve um grande colaborador em Eduardo P. Guinle; e ambos souberam escolher os auxiliares principais em Guilherme B.
Weinschenck, que levantou das águas, docas e acessórios; J. X. Carvalho de Mendonça, que lhes deu arrimo legal; Francisco de Paula Ribeiro, a alma administrativa da empresa em Santos, no seu pior período; Gabriel Osorio de Almeida, cuja
assistência técnica tanto valeu à Companhia.
Construir, administrar é também saber escolher homens. Ainda aí a Companhia Docas de Santos tem uma das razões de seu êxito. O espírito, em que se fez e
consolidou, não muda nos sucessores. Não há maior cabedal para uma empresa do que a forma porque mantém, no tempo, sua administração técnica e comercial; e isso vale tanto ou mais que outros fatores materiais, por altos que pareçam. Se algum dia
viesse o Governo Federal (ou mesmo o de São Paulo) reger a Companhia, veria que nesse elemento impalpável esteve sempre uma de suas grandes reservas nas lutas que enfrentou.
Estas páginas, se mostram quão difícil é construir no Brasil, deixam também claro que não há tropeços que não possam transpor-se. A Companhia Docas de Santos é
obra que recomenda nosso espírito de iniciativa e nosso ânimo realizador. Não teve o autor outro intuito senão deixá-lo provado. E julga que as páginas anteriores falam bem nesse sentido.
Imagem: reprodução parcial da página 677