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parcial da matéria publicada em A Tribuna de 3/4/1955, página 8
"O bairro do Marapé foi arrematado por 300 contos de réis"
O descaso dos topógrafos do Estado,
descreve à A Tribuna o panorama de Santos de há meio século – Terrenos de 250$000 no Gonzaga e geral desprezo pelos loteamentos no José
Menino e Macuco – Ideou, em 1914, um balneário flutuante, objeto de carta-patente expedida pelo então presidente da República, sr. Wenceslau Braz
– Se em 1908 os topógrafos ganhavam 200 réis por m² de terreno medido, hoje percebem apenas Cr$ 1,00
Francisco de Marchi
Continuando
a série de trabalhos evocativos da Santos de tempos idos, ouvimos hoje uma pessoa que, por força da profissão que exerce, não tem feito outra
coisa, há meio século, senão palmilhar o chão santista, para bem demarcá-lo e traçar-lhe o perfil legal, em cartas laboriosamente desenhadas.
O nosso entrevistado, sr. João Thomaz Tangary
(pronuncia-se Tângari), italiano cujo sobrenome sugere aos menos avisados ser vocábulo de origem indígena, veio para o Brasil quando ainda
vivíamos no regime colonial e fixou-se em Santos em 1908. Conta, atualmente, 81 anos de idade e, não obstante constituir tal número carga de tempo
respeitável, revela energia e disposição para o trabalho que escandalizaria muito funcionário público; exerce hoje, "tão
bem como há cinqüenta anos" – é o que diz e
evidencia – uma profissão ingrata, que o obriga, freqüentemente, a penosas excursões em terrenos difíceis e traiçoeiros, sob as temperaturas mais
hostis.
O sr. Tangary, mesmo agora, tem trabalhado
dentro e fora dos limites do município; andou há pouco pela Serra do Mar, por S. Sebastião e entretém-se, neste preciso momento, a medir larga
área de terreno, lá pelos lados da Bertioga. Um topógrafo, sem dúvida, é uma espécie de batedor do
progresso: cumpre-lhe preparar e demarcar as áreas que, arrancadas ao anonimato, hão de visar altas predestinações, constituindo-se nos embriões
de bairros progressistas ou dinâmicos centros de comércio ou indústria.
O sr. Tangary, porém, modestamente,
afirmou-nos que, medindo o solo santista, centímetro por centímetro, há tantos anos, nunca teria suposto que a febre de valorização imobiliária
atingisse o nível atual. E, passando a responder às perguntas que lhe formulamos, terminou, com o sabor de espontânea narrativa, compondo retrato
bem interessante da cidade do começo do século, e que aí vai.
Jaguatiricas nas "matas" do Macuco
– "Em 1908
– contou-nos o sr. Tangary – certas áreas de Santos
guardavam aspecto selvagem. Afora o casario da cidade velha – a parte colada à faixa do cais – o mais era composto por grandes extensões de
terreno coberto por mato denso, crivado de panelões de água. Na Avenida Conselheiro Nébias, entre as ruas
Predial (hoje Mal. Pêgo Júnior) e Júlio de Mesquita, arrastava-se o Rio dos Soldados, atravessado por simplória ponte de
madeira.
"No lugar em que deparamos agora o
Coliseu Santista, existia um barracão de madeira, onde assisti a uma ópera, regida pelo famoso
Pietro Mascagni, autor da Cavaleria Rusticana. Pegado ao barracão, um terreno em que se realizavam touradas. Os
morros, com exceção do Monte Serrate, mostravam-se limpos de casario. Nas zonas do Marapé e
do José Menino deparávamos um matagal sem fim; na do Marapé, além da Rua Carvalho de Mendonça,
que mal ultrapassava a Avenida Ana Costa, nenhuma via pública que merecesse citação. Já existiam os canais 1 e 2, com
um deles ainda em obras. A Av. Ana Costa, quase nua de casas, servida pelo bondinho de burros, era ladeada por duas valas.
"No Marapé, lotes de terreno eram
humildemente postos a venda por 500$000, sem que aparecessem compradores. No Macuco, o terreno tinha valor ainda menor.
Lembro-me que João Antunes comprou nesse bairro um lote, medindo 20 metros de frente por 4.000 de fundos (morria no estuário), por 16 contos,
negociando-o tempos depois por 20. Negócio comentado, na época. Quase não havia questões por causa de demarcação de terrenos; não sobravam estes
por aí, à venda, por preços vis?
"As avenidas Ana Costa e Conselheiro
Nébias, a partir das ruas Lucas Fortunato e Luiza Macuco e em direção à praia, quase não contavam com ruas transversais que as ligassem entre si.
Recordo-me apenas da Rua Industrial e da do Sol (esta denominada hoje Barão de Paranapiacaba). Como ancestral da Rua Osvaldo Cruz e das avenidas
Epitácio Pessoa e Rei Alberto, o Caminho da Barra, que nascia à altura da Avenida Conselheiro Rodrigues Alves, próximo
à Encruzilhada. Porcos e gatos do mato não eram raros nas matas do Macuco. De uma feita vi jaguatiricas
empoleiradas nos ramos de uma grande árvore; não pude abatê-las porque não dispunha de arma de fogo".
Loteado o Marapé a 20$000 por mês
– Como perguntássemos se havia visionários que procurassem terrenos na zona da praia, o sr. Tangary levantou os ombros:
"O
desinteresse por aquela zona era geral. Eu mesmo lhe subestimei o valor, quando do início de um loteamento na Rua Marechal Floriano Peixoto. O
preço pedido aos compradores era de 500 réis por metro quadrado e lá estive para estudar o negócio; infelizmente, para mim, choveu muito naquele
dia e o lugar ficou tão alagado que não tive outro recurso senão dormir na casa de um italiano que morava nas proximidades, o Chico Bono. Isto me
tirou o entusiasmo pela operação.
"Note-se
que o Gonzaga era deserto e que a nossa conhecida Rua Marcílio Dias era apelidada Rua do Encanamento. Mas o
mercado de imóveis não era frouxo somente por aqueles lados; em plena Rua do Rosário (hoje João
Pessoa), uma casa mal alcançava de 8 a 10 contos de réis. Por isso, quando se soube que pessoas da capital tinham comprado quase todo o bairro
do Marapé, muita gente ficou aparvalhada. Para que compravam tanta terra sem valor?
"Afinal, a história era mesmo
verdadeira; as terras do bairro e mesmo outras contíguas ao Marapé foram arrematadas em hasta pública por 300 contos de réis. Logo a seguir à
arrematação, surgiu a Empresa Condomínio Campo Grande para cristalizar polpudas transações imobiliárias. Pode-se imaginar a extensão dos terrenos
adquiridos no bairro sabendo-se que, feitos os arruamentos, a área destinada à venda pela Empresa comportou 95 quarteirões! A Empresa fez a venda
dos terrenos a particulares, já ao preço de 1:500$000 (por lote de 10 x 50 m), em prestações mensais puxadas, de 20$000…"
O
sr. João Thomaz Tangary à A Tribuna: "Fui eu quem demarcou os terrenos comprados pela Empresa condomínio Campo Grande por 300 contos. A
área depois loteada compreendeu 95 quarteirões"
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O balneário flutuante
– Seria a agrimensura a única paixão do nosso entrevistado? Não, não era:
"Sou
também desenhista e projetista. Dediquei-me, durante algum tempo, a trabalhar em ornamentação de fachada de prédios. Em 1914, admirado que Santos
não tirasse partido do maravilhoso patrimônio representado pelas praias, que em qualquer outra parte do mundo teriam sido oficialmente exploradas,
ideei a construção de um balneário, de que cheguei a tirar patente.
"O
desenho foi depositado na forma exigida pela lei e o presidente da República, Wenceslau Braz, concedeu-me o
privilégio para a exploração do invento, por quinze anos. O balneário, a que denominei Batelão Guanabara, compunha-se de enormes cascos
flutuantes, ligados entre si de maneira a formar, num cercado retangular, a melhor das piscinas, de águas calmas, em qualquer tempo. Restaurantes,
cômodos para banhistas, bares, tudo isto ficaria localizado ao longo dos flutuadores. Ademais, o batelão poderia ser propelido a motor, em longos
passeios pela baía, o que seria espetáculo de sensação para os banhistas que o utilizassem.
"Em
30 de de janeiro passado, a A Tribuna, referindo acontecimentos de 1914, citou o meu projeto, que não pude concretizar por falta de
capitais. E noto, entristecido – considero-me brasileiro e santista de coração – que apesar da cidade ter crescido desmesuradamente, e de serem as
praias ponto de convergência de milhares de forasteiros, até hoje ninguém se abalançou a dotá-las de modernos balneários. É inexplicável,
imperdoável, esta falta de iniciativa. Um balneário, construído pelo município ou por empresa particular, constituiria invejável fonte de
rendimentos, compensando qualquer soma de capital que nele fosse invertido".
Encarecimento de 17 mil por cento
– Já ao findar a entrevista, à indagação se era o mais idoso dos topógrafos em exercício nesta cidade, o sr. Tangary anuiu, convicto:
"Devo
ser o decano dos agrimensores do Estado. Trabalho há mais de 50 anos na profissão (já era topógrafo antes de vir para Santos) e não me consta que
haja alguém que, aos 81 anos de idade, ainda se enfie por vales e montes, em trabalhos de levantamento de terrenos. A profissão é espinhosa, mas
nem por isso arrefeceu minha disposição para o trabalho. Friso, apenas, que medindo áreas desertas, que amanhã tornarão ricos seus proprietários,
e acompanhando, através dos anos e das sucessivas medições a valorização dos terrenos, nada lucrei com a minha atividade.
"Trabalho
ainda, porque preciso trabalhar. Minha profissão é bela, porém não remunerada como devia. Se em 1908 cobrávamos de 50 a 200 réis por m² de terreno
medido, hoje pagam-nos apenas Cr$ 1,00 pelo mesmo serviço. O aumento de honorários foi inexpressivo, diante do encarecimento espantoso do material
de trabalho. Um teodolito (instrumento de precisão, indispensável nas medições) custava 450$000 em 1908; hoje, pedem por ele Cr$ 50.000,00; no ano
passado vi um exposto, com o preço afixado de Cr$ 78.000,00. Comparados o preço atual com o de 1908, verifica-se um encarecimento de mais de
17.000 por cento! E as despesas que temos que enfrentar, com a locomoção?
"Não fico triste por esse motivo. O
essencial é gozar boa saúde; meu organismo – dizem-me os que me conhecem – é o de quem tem vinte anos menos. Realmente, subo e desço morros com
facilidade; não raro caminho até 20 quilômetros a pé. Adoro minha profissão e seu exercício constitui para mim meu melhor salário. Amanhã, por
exemplo, estarei em Monte Cabrão, próximo a Bertioga, às voltas com cálculos. Felizmente, dou-me às mil maravilhas
neste clima de Santos, tão caluniado por algumas pessoas, e pretendo ainda passar muitos anos medindo terrenos, cujo valor, malgrado tudo quanto
se diga, continuarão a subir vertiginosamente".
Reprodução do cabeçalho da Carta-Patente expedida ao "arquiteto" João Thomaz Tangary e que diz respeito ao balneário ideado por esse senhor. O
privilégio para a exploração da invenção – já caduco – foi concedido pelo presidente da República, Wenceslau Braz Pereira Gomes, trazendo ainda a
assinatura do famoso Pandiá Calógeras, o grande brasileiro que então era ministro da Guerra
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