Anexo: A Resolução do Senado
Construção de Matadouro e
de Frigoríficos - Arrendamento
do serviço de matança de gado
PARECER N. 63, DE 1917
As municipalidades podem conceder
privilégio - para realização de obras e de serviços que exigem emprego de capitais avultados, e transferir, com vantagens para si, a execução de
serviço que exploram.
José Soares Santiago e outros, eleitores e munícipes de Santos, recorrem do ato da respectiva
Municipalidade, que outorgou a Alberto Reissman privilégio, vantagens e direitos decorrentes de um contrato para matança de gado e construção de
um Matadouro naquela cidade, alegando eles, como fundamento de seu recurso:
1º) que semelhante ato é contrário à Constituição Federal e à do Estado;
2º) que ofende direitos de outros municípios.
Desenvolvendo as suas alegações, dizem os recorrentes:
a) que a lei municipal n. 579, de 28 de junho de 1916, tratando da concorrência para os serviços
e contratos referidos, não dera ao prefeito a amplitude com que este agiu, sendo, por isso, nulo o contrato lavrado, nos termos da doutrina
esposada pelo Senado e inserta no parecer n. 86, de 19 de dezembro de 1916;
b) que, para se caracterizar um verdadeiro monopólio - basta a leitura da letra E da cláusula
29ª, que estatui, entre os favores ao contratante, a obrigação de a Municipalidade, por 30 anos - criar leis e expedir regulamentos que
dificultem a entrada de gado abatido fora do Matadouro, destinado ao consumo local.
c) que tal obrigação fere o art. 72, parágrafo 24, da Constituição Federal, e, ainda, o
dispositivo do art. 41, parágrafo 2º, do dec. n. 1.539, de 28 de novembro de 1907, estadual, tendo, portanto, o prefeito excedido da órbita legal;
d) que, se prevalecer aquela cláusula, a população santista não poderá aproveitar-se dos preços
vantajosos pelos quais lhe serão fornecidas carnes verdes pelos municípios de S. Paulo e de Barretos, por exemplo; e isto porque A.
Reissmann foi dada pelo prefeito a faculdade de proibir essa indústria comercial;
e) que embora o contrato referido seja da natureza daqueles que são indicados pelo art. 31, n.
7, do dec. n. 1.533, cit., todavia não se justifica o monopólio; pois aquela disposição deve estar de acordo com o art. 13 do mesmo decreto, que
finaliza determinando às municipalidades que observem a Constituição Federal e a do Estado, ou outras leis da União;
f) que o prefeito também desacatou o parágrafo 30 do art. 72 da Constituição da República,
porque alterou, por sua alta recreação, a taxa orçamentária para matança de gado, quando o preceito constitucional citado proíbe imposto de
qualquer natureza sem uma lei que o autorize;
g) que, na apresentação das propostas, ficou patente um embuste, adotado pela Prefeitura:
porquanto, entre os proponentes, um deles é pessoa desconhecida, o segundo é o contratante e o outro é um irmão do prefeito, sem fortuna, vivendo
do seu ordenado;
h) que a transação contratual realizada pelo prefeito, tratando-se de serviço de alta monta que
reclama imposto, pelo menos, de 1.500 contos, obedeceu ao maior sigilo em suas linhas gerais, sem ter o público, pois, conhecimento das bases
reguladoras, ao contrário do que afirma o mesmo prefeito, na sua exposição, n. 627; porque o edital n. 50, a respeito, não faz a descrição dos
serviços postos em concorrência, mesmo em linhas gerais;
i) que, nesse edital, o que se mostra é que "as bases contendo as condições que regulamentam a
concorrência" seriam fornecidas a qualquer interessado, na Diretoria Geral da Prefeitura, mediante o pagamento da taxa de 20$000;
j) que, embora a cidade santista reclame benefícios das grandes cidades, devem estes ser feitos
dentro da órbita da lei e da moralidade administrativa e "não da maneira condenável com que foi feita a transação contratual do Matadouro" de
Santos, transação que, além de tudo, vai dar ao contratante Reissmann, sem motivo justo, assombrosa soma de rendimentos, conforme tabela
demonstrativa que oferecem;
k) que a este contratante, pela forma que obteve as cláusulas do contrato, fácil será ficar
dono, em qualquer tempo, do Mercado, na venda a varejo da carne verde, afastando assim pobres pais de família, há anos entregues a tal ramo
honesto de comércio, para obter lucros verdadeiramente espantosos;
l) que o contrato ainda mostra como o prefeito desprezou o Direito, interesse e ordem de seus
munícipes, em outros pontos, tais como o referente à tabela do contratante para a venda dos subprodutos de que trata a cláusula 26ª; o relativo ao
Matadouro, visto como, ao contrário do edital, se depreende do contrato que vai ser reconstruído o atual e não feito um inteiramente novo,
conforme as cláusulas 2ª e 4ª, mal disfarçadas; e, enfim, outros, demonstrando tudo que aquele prefeito se afastou da lei n. 579;
m) que, pelo cotejo entre a proposta aceita, as bases reguladoras e o contrato em questão,
descobrem-se gravíssimas omissões em favor do contratante, tais como a bonificação em dinheiro que, conforme as referidas bases reguladoras, devia
ser dada por ele - não consta do contrato. Em vez disso, pelas cláusulas 18ª e 19ª, Reissmann depositou a quantia de 100:000$000 como prova de sua
idoneidade, mas para ser retirada depois de seis meses;
n) que o edital n. 50 e as bases da concorrência, de acordo com a lei n. 579, não fazem
referência, nem autorizam o prefeito a incorporar o Mercado no arrendamento e reconstrução do Matadouro. Entretanto, foi outorgada ao contratante,
de conformidade com a sua proposta, a construção de câmaras frigoríficas, anexas ao Mercado, para explorar, exclusivamente para si, peixe,
legumes e frutas; o que quer dizer que, pela concessão, foram criadas indústrias novas; e finalmente,
o) que se nota no contrato a falta de uma multa ao contratante, para o caso de rescisão, não
sendo suficientes as pequenas penas estipuladas para simples falta, em uma ou outra obrigação acessória.
Outras considerações ainda, em benefício do seu recurso, fazem os recorrentes, que o instruíram
com os seguintes papéis:
1) Tabela demonstrativa dos lucros calculados para o Matadouro no decurso do contrato;
2) certidão da Prefeitura Municipal de Santos, relativa à renda desse Matadouro e do Mercado, no
exercício transato, e ao depósito em dinheiro feito pelo contratante;
3) idem da escritura lavrada entre a recorrida e o contratante, para os serviços a que se refere
o Recurso;
4) exemplares dos jornais em que estão publicados diversos atos aludidos pelos reclamantes, e
5) títulos eleitorais de alguns e procurações dos recorrentes ao signatário do Recurso.
A Municipalidade de Santos não quis aguardar a requisição das informações necessárias.
Prevalecendo-se da oportunidade da remessa dos respectivos papéis, com estes, por intermédio do
seu presidente, enviou esclarecimentos a respeito, dos quais consta, em resumo:
a) que a recorrida "abriu concorrência para a construção de um Matadouro Modelo e frigoríficos e
o arrendamento do serviço municipal de matança de gado para o abastecimento da cidade"; e contratou esses serviços com quem ofereceu maiores
vantagens, nos termos da Lei Municipal n. 579, de 28 de junho de 1916, estando certa de ter assim resolvido o problema de substituir o antiquado
Matadouro, que não tem os requisitos exigidos pela higiene, situação da cidade e seu clima;
b) que o erário municipal, pelos grandes compromissos que o gravam, não podia oferecer sobras
para o Poder Público encarar e resolver diretamente tal assunto - "com a largueza de vistas que a sua importância impunha"; que, por isso,
procurou a recorrida criar, no Município, sem maior gravame para o Tesouro Municipal, a indústria dos matadouros frigoríficos, já que o Estado se
tornou grande produtor de gado. Mas, outorgando os respectivos serviços, o contrato conservou para a Municipalidade a renda líquida que até agora
desfruta da exploração do Matadouro, e estabeleceu a reversão para o patrimônio municipal de todas as construções que vão ser realizadas;
c) que o recurso interposto "nada mais representa do que uma represália" por interessados no
caso do Matadouro de S. Vicente, cujo contrato foi anulado, por decisão senatorial, e cujo contratante teve por advogado o mesmo signatário do
recurso de que se trata, convindo notar ainda que os seus constituintes, neste, "são pessoas completamente alheias às classes diretamente
interessadas no comércio de carnes verdes";
d) que nenhum embuste houve na apresentação das propostas, nem desconhecidos são os proponentes,
entre os quais não se encontra irmão algum do prefeito;
e) que, com a disposição da letra E da cláusula 29ª, contratual, nenhuma ofensa é feita ao
parágrafo 24 do art. 72, da Constituição Federal; pois não se compreende como podem violar esse preceito uma lei que ainda não foi votada e um
regulamento que ainda não foi expedido; só depois disto feito é que se pode verificar se foram respeitados os princípios constitucionais, para
uso ou não de Recurso;
f) que o Poder Executivo Municipal, com essa cláusula, "respeitou a disposição contida, sob. n.
8, nas condições gerais da proposta aceita", agiu de conformidade com as leis do Município (lei n. 395, de 27 de junho de 1910), e praticou um ato
da mais elementar equidade, pois é justo que seja o contratante rodeado de garantias na exploração, com pesados encargos, de um serviço público
que exige emprego de grande capital e que ficará incorporado ao patrimônio municipal;
g) que não houve alteração nas taxas de matança, sem autorização legal, porquanto dispôs
expressamente sobre o caso a Lei Municipal n. 585, de 31 de outubro de 1916, no seu art. 8º, tít. 8º, cap. 1º;
h) que a Lei Municipal n. 579 e o edital n. 50 foram amplamente publicados, tendo sido aquela
muito discutida, na sua formação;
i) que não pode haver confusão, como pretendem os recorrentes, entre os contratos dos Matadouros
de S. Vicente e de Santos, pois nesta cidade "o serviço de matança nada tem que ver com o fornecimento de carne à população"..., e a matança
continuará a ser livre, como tem sido, para todos os marchantes que apresentarem o seu gado, satisfazendo o pagamento das taxas e cumprirem os
regulamentos em vigor;
j) que a taxa atual, para a matança, é de 8$0000 por cabeça de bovino, mas, após a conclusão do
Matadouro Modelo, será elevada a 15$000, dos quais 4$000 pertencerão à Municipalidade e 11$000 ao contratante, o qual presentemente não desfruta
renda alguma, porque o custo real do serviço de matança é de cerca de 4$300, pagando à Municipalidade 3$700 por cabeça;
k) que, quando estiver funcionando o Matadouro Modelo, o saldo presumível a favor do
contratante, por bovino, será de 6$700, com o qual amortizará, em 28 anos, o capital empregado nas novas construções, que ficarão para o
Município; e, se a amortização e juros irão absorver quase essa quantia, por cabeça, "verifica-se que é na criação e desenvolvimento da indústria
de exportação que o contratante obterá os proventos principais do seu trabalho"; e, em conclusão,
l) que, em relação à cláusula 7ª, esta não envolve privilégio algum de serviço público, porque o
frigorífico anexo ao Mercado, e de que trata o art. 1º da Lei n. 579, de 28 de junho de 1916, é apenas "uma seção destinada aos demais produtos
existentes nesse próprio municipal, e o seu uso será livre para todos os que pagarem as taxas estabelecidas nas tabelas que serão aprovadas pela
Prefeitura".
Em virtude da volta dos papéis, a recorrida, por determinação do Governo, a quem tinham sido
dirigidos, em época do interregno das sessões do Congresso, renovou suas considerações, frisando diversos pontos das anteriores e referindo que,
no Município, antes do contrato de que se recorre e sem que houvesse reclamação, "a lei n. 379
(N.E.: SIC. anteriormente aparece referida como lei 395, da mesma data),
de 27 de junho de 1910, estabelecia medidas relativas à venda de carnes resfriadas, de gado vacum, suíno, lanígero e caprino".
Com isto, diz a recorrida, o preceito da Lei Magna, da República, e repetido pelos recorrentes,
não deixou de ser cumprido, pois o "livre exercício" se conseguirá, como é livre o comércio, livre a expansão industrial, dentro da lei,
observadas, porém, as disposições regulamentares.
Estão juntos, acompanhando essas respostas, diversos jornais e cópias de documentos e de
ofícios, encontrando-se: 1) lei n. 579, de 28 de junho de 1915; 2) edital de concorrência; 3) propostas apresentadas; 4) contrato lavrado; 5)
folheto contendo as bases e condições da concorrência; 6) artigo 8º, título 8º, cap. 1º, da Lei n. 585; e 7) álbum com fotografias e plantas
relativas ao Matadouro atual e às obras contratadas.
Também acompanham o Recurso e constituindo o segundo volume, os seguintes papéis:
a) Petição dos recorrentes, fazendo outras considerações, como elementos elucidativos, e
capeando diversos exemplares de jornais e um folheto contendo as leis municipais ns. 547 e 548, de 1914;
b) telegrama enviado por marchantes e açougueiros da cidade, de Santos, representando sobre a
conveniência de ser provido o Recurso de que se trata;
c) ofício do presidente da Câmara recorrida, pedindo junta, às suas informações, de 2 jornais e
de um exemplar impresso da Lei n. 585, de 31 de outubro de 1916, a qual regula a coleta e arrecadação dos impostos e outras rendas municipais; e
ainda
d) outra petição dos recorrentes, apresentando novas alegações, um jornal e uma certidão da
escritura do empréstimo contraído pelo recorrido.
O que tudo bem visto e examinado, ponderadas as razões apresentadas e,
- considerando que a recorrida, celebrando com Alberto Reissmann o contrato, de que se trata (a
4 de dezembro de 1916), para a construção de um Matadouro Modelo e exploração do serviço de matança de gado e indústrias próprias dos
estabelecimentos de tal natureza, pelo espaço de 30 anos, tudo de acordo com as cláusulas constantes do referido contrato, agiu dentro dos limites
de suas legítimas atribuições; pois que às municipalidades paulistas é lícito, nos termos da legislação vigente, conceder privilégio, até por
trinta anos, para a fatura de estradas, ou para a realização de obras e de serviços que demandam do emprego de capitais avultados;
- considerando que à celebração do aludido contrato procedeu a chamada dos concorrentes, tendo a
recorrida escolhido a proposta que lhe pareceu mais conveniente e vantajosa;
- considerando que o monopólio industrial ou comercial, no caso, não há; porquanto a Câmara de
Santos outra coisa não fez senão transferir para terceiro a execução de um serviço que por ela própria já era executado; e isso com vantagem do
aperfeiçoamento do mesmo serviço e da reversão das obras feitas pela contratante à Municipalidade no fim do prazo do contrato, a ninguém sendo
vedado o abatimento de gado no novo Matadouro, e, ao invés, a todos sendo facultado fazê-lo mediante uma taxa, parte da qual reverte aos cofres
municipais;
- considerando, quanto à alegação dos proventos do Matadouro para o contratante, sem vantagens
compensadoras para o Município - que, para resolver sobre isso, falece competência ao Senado, ao qual não incumbe tutelar ou velar pelos negócios
de peculiar interesse das municipalidades, cuja autonomia, neste particular, lhes é plenamente assegurada pelo artigo 68 da Constituição Federal;
- considerando, quanto à alegação dos recorrentes relativa à letra E da cláusula 29ª do contrato
recorrido, que, consistindo a obrigação aí estipulada em uma simples promessa ad futurum, só quando esta se fizer efetiva,
caracterizando-se em atos ou resoluções municipais que incidam na censura de inconstitucionalidade, ou de contravirem a alguma lei federal ou
estadual, é que então poderá o Senado, sob provocação de quem seja parte legítima para recorrer, se pronunciar sobre a validade ou invalidade de
tais atos e resoluções;
A Comissão de Recursos Municipais é de parecer que não deve ser provido o Recurso examinado; e,
assim pensando, oferece à sábia deliberação do Senado o seguinte projeto de
RESOLUÇÃO N. 22, DE 1917
O Senado do Estado de S. Paulo resolve negar provimento ao recurso interposto por José Soares
Santiago e outros, contra o ato pelo qual a Câmara Municipal de Santos concedeu privilégio, por 30 anos, a Alberto Reissmann, para a construção e
exploração de um Matadouro Modelo, naquela cidade, por ser o mesmo Recurso carecedor de fundamento legal.
Sala das Comissões, 23 de outubro de 1917 - A. de Gusmão, Herculano de Freitas.
Imagem: trecho do livro O Matadouro
Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 80) |