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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Matadouro - Biblioteca NM
Histórias do Matadouro Municipal (2-n)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEncadernado junto com o opúsculo O Matadouro Modelo de Santos, do jornalista Alberto Sousa, encontra-se outro opúsculo, relativo à falência do Banco União de São Paulo, em texto formado com a reunião de editoriais do vespertino A Nação, refutando as razões de Spencer Vampré. A obra também foi publicada em 1918, com impressão na Typographia Piratininga, da capital paulista.

O exemplar foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Municipal Alberto Sousa, da cidade de Santos, por meio da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 1 a 49).

Para situar o leitor, vale recordar que o Banco União controlava a Cia. Votorantim na época dos fatos que levariam à falência dessa instituição bancária, e que foram a grande greve de junho-julho de 1917 nas fábricas da Votorantim em Sorocaba/SP (levando-a a ser arrendada a dois capitalistas), o grande incêndio ocorrido nos depósitos de algodão dessa fábrica em 25 de fevereiro de 1917 e as dificuldades oriundas da 1ª Guerra Mundial (impedindo o recebimento por via marítima dos tecidos crus importados da Inglaterra para serem estampados na fábrica de chitas). A greve, o incêndio e a guerra iniciaram a derrocada do Banco União. A Votorantim voltaria a funcionar em 1918.

Já Spencer Vampré foi advogado, professor e diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, jornalista, escritor e jurista brasileiro. Nascido em Limeira em 24 de abril de 1888, faleceu em 13 de julho de 1964, e seu nome foi gravado como homenagem de sua cidade natal no Fórum do Poder Judiciário Estadual. Após os fatos narrados nesta obra, ainda seria deputado estadual, membro da Academia Paulista de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, tendo escrito as Memórias para a História da Academia de São Paulo:

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Apelo à Justiça Paulista

A falência do Banco União de S. Paulo

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Imagem: frontispício de Apelo à Justiça Paulista

 

Um apelo à justiça paulista

Com este grave e solene título, recebemos um opúsculo de cerca de 50 páginas, assinado pelos srs. drs. Estevão de Almeida e Spencer Vampré. São as Razões de apelação, para o Tribunal de Justiça, da sentença que condenou, por crime de injúrias impressas, o segundo signatário, nos processos que lhe moveram os ofendidos, srs. Pereira Ignacio & Cia. e Francisco Scarpa & Filho.

Tais processos se ligam à falência do Banco União de São Paulo, na qual o dr. Spencer Vampré, como advogado de interessados na massa, quis alarmar o ânimo do magistrado que nela funcionou, fazendo pressão sobre as suas decisões por meio de artigos escandalosos estampados nos editoriais de um jornal do Rio e reproduzidos nesta capital, em órgão de grande circulação, sob a direta e ostensiva responsabilidade legal do referido advogado, que, depois de semelhante rasgo de independência e coragem profissional, clama contra o juiz criminal que o condenou e implora ao tribunal que anule a sentença condenatória.

A questão da falência daquele banco já estava morta e achamos imprudente que o sr. Vampré venha inopinadamente ressuscitá-la em público, por meio de uma profunda distribuição de suas Razões, redigidas em português escasso mas animadas de um largo e ardente sopro panfletário.

Seria preferível que ele se limitasse a reeditar nos autos, a coberto de qualquer parcela de responsabilidade criminal, as injúrias que já assacara pelo Estado aos querelantes e em virtude das quais fora merecidamente condenado; mas, divulgá-las de novo, em folheto sensacional, com títulos e subtítulos garrafais, é expor-se a que, além das grades carcerárias que o esperam, os injuriados surjam também pela imprensa a dar-lhe o devido troco, muito embora já tenham eles obtido da justiça paulista - cuja magnanimidade e indulgência o sr. Vampré invoca em frases onde o medo transparece a cada passo - a necessária reparação e desafronta à sua honorabilidade comercial, enxovalhada pelo réu, com recalcitrante contumácia.

E não somente as citadas firmas que nas Razões, ora publicadas, recebem novos ataques do sr. Spencer Vampré: também os drs. Carlos e Sylvio de Campos são, ainda uma vez, agredidos com extrema violência, por aquele advogado. São dois nomes conhecidos, estimados e respeitados no foro e na alta sociedade paulista.

O primeiro, além das elevadas posições políticas que tem exercido com grande brilho e competência, é um dos jornalista mais acatados em nosso meio pela cativante delicadeza e tolerância com que se mantém nos debates que trava pelo órgão que dirige; o segundo, na qualidade de Curador das Massas Falidas, quando chamado a pronunciar-se nos processos de quebra, age com a mesma retidão, inteligência e desassombro de que deu sobejas provas ao tempo em que desempenhou as funções de promotor público desta capital; e daí a gritaria que os seus atos provocam por parte daqueles que estavam acostumados a nutrir-se nas liquidações irregulares e mal fiscalizadas.

É a esses dois ilustres irmãos, prestigiados pela estima universal dos paulistas, que o sr. Spencer Vampré tem o topete de nivelar a quadrilheiros organizados para assaltar, em proveito próprio, das respectivas famílias e de alguns clientes abastados, a massa falida do Banco União de S. Paulo.

Já que se trouxe de novo à publicidade essa questão, que considerávamos bem morta, vamos escalpelar detalhadamente as Razões do querelado, o que faremos a começar do próximo número.


I

As Razões de que nos ocupamos em nosso número anterior, são assinadas pelos srs. drs. Estevão de Almeida, como advogado do querelado, dr. Spencer Vampré, e pelo próprio querelado. A qual deles, porém, se deverá a autoria de tão notável trabalho, onde o saber jurídico e a lógica disputam entre si a glória de mais altamente provarem a inocência do réu e a justiça irrefutável de sua causa?

A um simples correr d'olhos pelas páginas iniciais se verifica que o autor é o sr. Spencer Vampré: ninguém, a não ser ele mesmo, seria capaz de mimosear sua pessoa com epítetos tão gentis e elogios tão descompassados, louvando e gabando, em termos excessivos, o seu talento, o seu preparo, o seu caráter, como se essa tríplice revelação de sua individualidade constituísse uma singularíssima exceção no nosso foro, onde abundam, para honra e brilho da profissão, advogados mais competentes, mais cultos e menos presunçosos.

Mas não são apenas essas referências que nos convencem de que o autor das panfletárias Razões é o próprio querelado: é o tom geral de medo, o sentimento de terror que domina toda a redação do opúsculo, no qual se pretende, por meio de súplicas e implorações angustiosas, mal disfarçadas sob as tênues aparências de uma altivez fingida, impressionar, a favor do réu, o espírito dos membros da Egrégia Câmara Criminal, forçando-os a anular a sentença apelada.

O dr. Spencer Vampré, condenado à pena de prisão pelas injúrias de que se tornou responsável, deseja que aquela Câmara desclassifique o delito, pelo qual respondeu perante o juiz singular, capitulando-o como calúnia, a fim de conseguir da habitual benevolência do júri a absolvição que não logrou alcançar naquele juízo, em processo feito com toda a regularidade, com a asseguração ampla de todos os meios legítimos de defesa que são facultados pela nossa legislação criminal, inclusive a prova dos fatos.

A esse propósito afirma ele, à página 18, que, processado sumariamente, ficou privado da defesa completa do plenário, porquanto, há uma notável diferença entre a prova produzida no sumário e a prova produzida no plenário. Mas não passa da afirmativa, pois que não se digna explicar em que consiste essa notável diferença que ninguém percebe.

A prova no crime de injúria pode ser tão cabal perante o juiz como a da calúnia perante o tribunal do júri. Que espécie de prova documental ou testemunhal é essa que, podendo ser exibida no plenário, não o pode ser diante do julgador singular? O próprio sr. SPencer Vampré refuta-se a si mesmo quando, à página 19, em contradição com o que disse à página anterior, declara, com a arrogância que o caracteriza, que "conseguiu provar, DA MANEIRA MAIS CABAL, a verdade dos fatos contidos no artigo incriminado".

Ora, se ele conseguiu provar tão cabalmente perante o juiz os fatos injuriosos argüidos contra os querelantes, porque apela para o plenário, a pretexto de que só no plenário poderá prová-los convenientemente? Se os provou DA MANEIRA MAIS CABAL, como é que se queixa de que foi privado de uma defesa ampla, visto como as provas são mais restritas em audiência do que no plenário?

Vê-se daí, vê-se dessa grave contradição, que o dr. Vampré quer que o tribunal o mande a júri, não porque precise provar fatos que assevera ter provado cabalmente perante o magistrado que presidiu e julgou o feito, mas porque confia nas suas relações sociais para arrancar dos juízes populares o veredictum absolvitório que lhe negou a reta consciência do juiz togado.

A verdade é que, apesar de jactar-se de que fizera prova cabal dos fatos em questão, o julgador condenou-o implacavelmente à pena de prisão celular, o que quer dizer que o magistrado não encontrou nas peças dos autos vestígios quaisquer de semelhante prova.

A que propósito o juiz criminal, apesar da existência das provas cabais a que alude o dr. Spencer Vampré, havia de pisar aos pés a integridade da sua toga, para condená-lo por um delito de que s.s. estava inocente? Vota-lhe acaso o digno magistrado algum reprovável sentimento de ódio pessoal?

Nesse caso, argüisse-o de suspeito. Se, porém, tal não existia, só por venalidade o ilustre magistrado teria condenado um réu inocente que, além do mais, é seu colega, e colega dos mais graduados, porque é professor, por concurso, da nossa respeitável Faculdade de Direito. Não acreditamos que atravesse o espírito do querelado a malévola suposição de que o juiz da 3ª vara tenha decidido contra o réu por essa razão indigna.

Se, pois, o juiz não é seu desafeto, e nem é passível da grave suspeita de venalidade, porque é que condenou o querelado em jurídica e fundamentada sentença? É porque dos autos não consta prova alguma dos fatos imputados levianamente aos querelantes.

Cônscio dessa verdade, o dr. Vampré, para escapar à cadeia pelo voto dos juízes populares, pretende provar que o crime que cometeu é de calúnia e não de injúria, e sujeito, por isso, ao tribunal do júri. Examinemos em seguida esta face da questão.


II

Das rápidas considerações que ontem fizemos, resulta, sem a menor possibilidade de refutação, por mais sofística que seja - que o sr. dr. Spencer Vampré, afirmando que a imputação feita por ele aos querelantes foi difamatória e não injuriosa, pelo que deve ser processado perante o júri e não perante o juízo singular, procura apenas forrar-se a uma possível confirmação, pelo Tribunal Superior, da sentença que o condenou à pena de prisão celular.

De fato, não é para com mais amplitude e liberdade provar o delito que imputou aos honrados comerciantes que, em justa represália e desafronta, o processaram, de acordo com a nossa lei penal, que ele, nas suas Razões, enfeixadas em opúsculo, vastamente distribuído por esta capital, declarou, com o orgulho jactancioso, que é um dos traços predominantes e antipáticos de sua personalidade pública - que, na audiência a que compareceu como réu, PROVOU CABALMENTE tudo quanto os jornalistas cariocas, por encomenda sua, escreveram, verrinosamente, contra Pereira Ignacio e Francisco Scarpa.

Se, pois, estas honradas firmas do nosso alto comércio e da nossa indústria, permitiram-lhe, com verdadeira magnanimidade, que fizesse a prova dos fatos, e se ele confessa, com absoluta espontaneidade, que fez cabalmente essa prova, não compreenderíamos por que afirma depois, com manifesta e irreparável contradição, que só no plenário pode fazê-la convenientemente - se não soubéssemos que é o medo exclusivo de ir parar à cadeia, em expiação de seu crime, que o faz assim agachar-se, acovardado e suplicante, aos pés da Câmara Criminal, implorando-lhe misericórdia.

Mas onde estão os seus assomos de coragem, os seus pruridos de independência e de altiveza individual e profissional, a sua prosápia incorrigível, a sua bravura, o seu destemor, o seu ímpeto valoroso de paladino imaculado e invencível que só se bate pelas retas causas e pelos ideais egrégios?

Tudo isso se desfez tocado pelo senso da realidade; todas essas qualidades, criadas e mantidas pelo vão delírio do seu orgulho descomunal, desapareceram subitamente, ao ser conhecida a respeitável sentença condenatória, transformando o árdego e e bulhento advogado, que não põe freios à idéia e não tem continência na língua, em pedinte cabisbaixo, que, de rastros, confuso e humilhado, entre a vergonha de pedir e o receio de não ser atendido, estende a mão trêmula, suplicando a graça de uma esmola.

E na faina em que se exaure de fugir ao cumprimento da penalidade imposta, não só se contradiz formalmente, como já demonstramos, mas também lança mão, infantilmente, de argumentos ilógicos, desconexos, absurdos, e até insensatos, para convencer a Câmara Criminal de que, neste negócio todo, ele é que é, espantosamente, uma vítima e que os negociantes injuriados em letra de forma, pelas colunas dos grandes órgãos de publicidade, é que são uns algozes de coração empedrado e alma inacessível à penetração dos sentimentos benévolos.

São eles meros perseguidores implacáveis, movidos de ódio infame, injustificado e tenaz contra um advogado que, segundo ele mesmo pensa e proclama sem hesitações e sem rodeios, é profissional de rara sapiência, de cerebração forte, de probidade inatacável, honra, glória e orgulho das nossas letras, do nosso foro e da nossa Faculdade - onde aquela figurilha exótica, com o seu fatídico par de óculos universitários, com a sua rabona esfiapada, reluzente de sebosidades equívocas; e com a sua velha cartola doutoral - contemporânea e êmula da vecchia zimarra do artista boêmio, imortalizada no romance, no teatro, na música e na tradição popular - julga que pode ombrear-se com a grandeza capitolina dos ilustres varões que por lá passaram ou que ainda ministram às gerações que se sucedem edificantes lições de verdadeira sabedoria.

É assim que pretende convencer aos respeitáveis ministros de que o seu crime é de calúnia e não de injúria, como se se dirigisse a magistrados simplórios ou ignorantes. Acha ele que caluniou e não injuriou os querelantes, porque a calúnia é a atribuição de um crime a alguém indicado em termos fora de dúvida.

Pondo de lado a deselegância da frase, indesculpável em quem se blasona de escritor correto e brilhante, examinemos o fundamento de sua proposição. O artigo que deu lugar à queixa diz: "Mancomunados, segundo se afirma, com os diretores do Banco União de São Paulo, e aproveitando a precária situação desse estabelecimento, organizaram o complô do qual deveria resultar a apropriação, pelos quadrilheiros, da referida fábrica".

Ora, em todos esses vocábulos pesadamente desaforados, em todas essas expressões grosseiramente injuriosas da reputação dos querelantes, não se vê a imputação de nenhum crime indicado em termos fora de dúvida. O que aí se vê, denunciando uma índole covarde e não um caráter digno e brioso, é a vaga expressão segundo se afirma, isto é, o boato anônimo, o mexerico, o diz-que-diz-que, que não pode gerar a convicção no espírito dos homens de bem.

O artigo não afirma que os querelantes se mancomunaram para a prática do delito argüido; limita-se a registrar, de forma vaga, que, segundo se afirma, houve essa mancomunação.

Além disso, mais adiante se diz, textualmente, o "complô do qual deveria resultar a apropriação". Ora, o verbo dever está no condicional, por conseguinte não houve termos precisos, categóricos, fora de dúvida, imputando de modo peremptório, certo e concludente um fato criminoso a quem quer que seja. Da organização de um complô, que, segundo se afirma, deveria resultar uma apropriação - é tudo quanto pode haver de menos positivo e de mais vago numa expressão da nossa língua.

Se, para que exista o crime de calúnia, é mister que "a imputação verse sobre um fato preciso e determinado, especificado com suas circunstâncias de tempo e de lugar, feita com tal clareza que sobre ele possa ser produzida a prova da verdade ou falsidade", é evidente que o dr. Spencer Vampré, nos artigos que inspirou ao jornal do Rio e que depois reproduziu na imprensa daqui - não caluniou e sim injuriou os querelantes, que muito regularmente o processaram, vendo a sua causa amparada pela brilhante sentença do digno juiz da 4ª Vara Criminal.


III

Mas não é só do texto citado nas Razões, e por nós reproduzido no editorial de ontem, que se verifica não ter havido, por parte do querelado, a imputação de um fato criminoso aos querelantes, mas sim a imputação de fatos ofensivos do seu decoro, da sua reputação e da sua honra.

Dos próprios títulos do artigo em questão ressalta nitidamente a veracidade da nossa afirmativa. Lá se fala, em gordos tipos, destinados a fazer escândalo em torno do caso, de modo a impressionar o juiz da falência, intimidando-o com o clamor de uma opinião provocada artificialmente pelos interessados - na "grossa bandalheira tramada na sombra, e que se acha em via de realização". E no final do artigo, conclui-se pela convicção de que "o Governo e a Justiça de São Paulo não permitirão que se consuma a indecente negociata".

As frases compostas em grifo são concludentes: o dr. Vampré não imputa aos negociantes que o processaram fato algum que a lei qualifique crime. Ele apenas afirma que há uma negociata em via de realização, e espera que o Governo e a Justiça obstem a que ela se realize.

Se, portanto, não os acusa da prática de um ato criminoso, e sim de que eles tramam na sombra, dramaticamente, a realização desse ato - segue-se que houve injúria e não calúnia, porque para que o fato seja determinado precisamente com todas as circunstâncias de tempo e de lugar, é mister que se tenha consumado.

Ninguém pode precisar as circunstâncias de um delito que ainda não foi cometido; portanto, o que o querelado podia, quando muito, era dizer que tinha a certeza de que os querelantes praticariam o crime previsto no artigo 170, §§ 8 e 10 da Lei de Falências, mas isso, por falta dos elementos característicos da calúnia, é apenas injúria.

O Tribunal Civil e Criminal do Rio de Janeiro, em Acórdão de 23 de junho de 1898, decidiu que "não há crime de calúnia quando se imputar a alguém a certeza de que praticaria dados fatos qualificados crimes, porque o elemento primordial deste crime é a imputação de um fato determinado e positivo, previsto na lei penal".

Nem mesmo se trata de uma tentativa, porque, ainda que fosse verídico o fato imputado aos ofendidos, e que tal fato tivesse tido começo de execução, seria preciso, para haver a figura jurídica da tentativa, que a execução não se consumasse por circunstâncias independentes da vontade do criminoso.

Ora, o sr. dr. Spencer Vampré apenas avançou, com a leviandade própria de seu temperamento desabrido, que os querelantes estavam em via de realização de um fato que a lei qualifica crime; não provou, no artigo em debate, que tal crime tivesse sido consumado, ou, tendo tido começo de execução, deixasse de ser praticado por circunstâncias alheias à vontade dos criminosos, como tais apontados por ele à vigilância do Governo e à severidade da Justiça de S. Paulo.

Desde, pois, que não houve a falsa imputação de um crime, e nem sequer de uma tentativa, segue-se que o juiz criminal julgou muito bem o feito, condenando o sr. dr. Vampré por delito de injúrias, visto como para o característico da calúnia faltava, como sobejamente provamos, o elemento primordial que é a imputação precisa de um fato positivo e determinado.

Prosseguindo na sua precária argumentação, que não raro se torna absurda, como a nossa análise o irá demonstrando paulatinamente, clama o dr. Vampré contra a injustiça praticada pelo juiz da 4ª Vara Criminal, que o condenou, por dois delitos distintos, quando, na sua opinião, o crime por que responde teria sido praticado pelo mesmo fato e com uma só intenção, o que constitui um só delito continuado.

E cita a propósito um Acórdão do Tribunal Civil e Penal do Rio de Janeiro, o qual, ao contrário do que supõe, não tem a menor paridade com o seu caso, segundo veremos em seguida.

Francisco Scarpa & Filho e Pereira Ignacio & Cia., ofendidos na sua reputação e na sua honra, por um editorial da Época, do Rio, de cuja reprodução em S. Paulo assumiu a inteira responsabilidade legal o dr. Spencer Vampré, moveram contra este a competente ação criminal. Trata-se de dois delitos distintos e não de um só delito continuado.

Se o dr. Vampré tivesse injuriado o mesmo indivíduo em temo e lugar diferentes e sucessivamente, praticaria um só delito continuado pela unidade da intenção e seu fim. É esse o caso do Acórdão do Tribunal do Rio, por ele citado. A firma Pupo de Moraes & Cia. processou certo indivíduo por causa de uma série de artigos em que ele se referia, ora àquela firma, ora às pessoas que a compõem. Não contente com isso, um dos sócios competentes da mesma firma, José Martins Polo, deu queixa-crime contra o querelado por causa dos mesmos artigos. Isso importaria, efetivamente, em ser o acusado processado e punido duas vezes pelo mesmo fato; o Tribunal por isso, absolveu-o.

Tal, porém, não é o caso atual. Aqui, são duas firmas comerciais diversas que, injuriadas em um mesmo artigo, movem contra o injuriador a ação a que cada uma delas tem direito em face da lei. Absurdo seria que, por terem Francisco Scarpa & Filho procurado desafrontar-se da injúria que lhes foi assacada, ficassem Pereira Ignacio & Cia. inibidos de proceder também em defesa de sua honorabilidade comercial gravemente e publicamente enxovalhada pelo dr. Spencer Vampré.


IV

A nossa vitoriosa argumentação  tem demonstrado, sem a menor sombra de dúvida, que o dr. Spencer Vampré difamou e não injuriou os honrados querelantes, reproduzindo e encampando as graves ofensas do editorial da Época.

Se eles, por erro profissional dos respectivos patronos, dessem queixa contra o irascível advogado, pelo delito previsto e punido no artigo 315 do Código Penal, arriscavam-se a ver perdidos seus esforços e malograda a reparação que visavam, pois a anulação do feito seria fatal.

Mas, para que se não dissesse que pedindo a capitulação do crime naquele artigo, eles o que queriam era forrar-se habilmente à prova dos fatos, os dignos comerciantes permitiram-na liberalmente, e com tal amplitude e franqueza foi ela produzida na audiência do juiz da 3ª Vara Criminal, que o próprio querelado se jacta de tê-la feito "da maneira mais cabal".

Se, pois, essa prova foi tão cabal como nas suas Razões afirma, porque - repetimo-lo - quer o dr. Vampré que a instância superior anule o processo com o fundamento de que o crime que cometeu é de calúnia e não de injúria, é da competência do Tribunal do Júri e não das atribuições privativas do Juízo singular?

Diz ele que é para poder defender-se mais eficazmente e poder produzir mais convenientemente a prova de sua imputação. Mas se a prova, perante o juiz, já foi cabal, conforme assevera, porque é que só no Plenário pode ele defender-se completamente do crime pelo qual responde?

A verdade é esta - e é bom repisarmo-la ainda uma vez - o dr. Spencer Vampré quer ir a júri para obter da proverbial benevolência dos jurados paulistanos a absolvição que dificilmente lhe poderá ser concedida pela reta decisão dos juízes togados.

No artigo editorial da Época, que já analisamos circunstanciadamente, não há indicação alguma de fato criminoso atribuído precisamente a alguém: só agora, acobertado pela irresponsabilidade da defesa, o querelado afirma, clara e positivamente, nos autos, aquilo que insinuou, vaga, imprecisa e covardemente, nas publicações da imprensa. O seu delito é, pois, de injúria e como tal foi ele condenado e esperamos que a sua condenação seja confirmada pela câmara que tem de conhecer da apelação que lhe foi imposta.

De todos os recursos lança mão o querelado para refugir à responsabilidade do crime cometido. Entende ele, por exemplo, que na sua conduta fora dos autos não houve dolo, mas animus defendendi. O seu intuito não foi caluniar ou injuriar e sim despertar a atenção da Justiça para o conluio tramado contra os interesses dos credores da massa. Ora, o sr. dr. Spencer Vampré era advogado de alguns deles e como tal funcionava no processo de falência, podendo, pois, usar, como de fato usou, aliás infrutiferamente, de todos os recursos legais perante o juiz processante, reclamando contra os abusos e as irregularidades que, segundo a sua opinião, estavam sendo praticadas no correr do feito, com menoscabo dos direitos de seus constituintes.

Vendo, porém, que o dr. juiz da 1ª Vara Comercial não achava procedentes suas reclamações e as indeferia, com altas razões fundadas na lei e na jurisprudência, lembrou-se de promover na imprensa jornalística uma forte campanha de escândalo, não apenas "para levantar o torpor do juiz", como assevera - o que já constitui uma insinuação atrevida e desairosa aos créditos do magistrado impoluto -, mas, na verdade, para amedrontá-lo e ver se, pelas imposições do terror, conseguia, em prol de seus clientes, o que não pôde obter com os fracos recursos de sua inábil dialética, antes própria de um leguleio pouco letrado do que de um jurista famoso, laureolado pelo seu diploma, pelas suas obras e pelo seu concurso para professor oficial.

É aqui azado salientarmos o topete de que tem ele dado desastradamente reiteradas provas. Condenado pelo juiz criminal à pena de prisão por crime de injúrias, declara que se defendeu da maneira mais cabal e que o juiz condenou-o porque não leu os autos - lançando assim malévolas suspeitas sobre a integridade moral do julgador.

Repelido pelo juiz comercial, por cuja vara correu a falência do banco, em todas as suas tentativas de tumultuar o processo, tirando proveito disso, confessa que foi preciso lançar mão do jornalismo escandaloso para despertar o torpor daquele magistrado - que é, aliás, uma das glórias mais límpidas de nossa judicatura pela sua integridade nunca posta em dúvida, pelo seu saber, e pela sua orientação esclarecido e calmo.

Alega o dr. Vampré que agiu, não para injuriar ou caluniar propositalmente os querelantes, mas para defender os interesses cujo patrocínio seus clientes lhe tinham confiado. E prova a sua alegação com o testemunho do dr. Vicente Ráo, seu confrade de diretoria e de oratória nas sessões magnas do Instituto dos Advogados; e o do dr. Pedro Soares de Araujo, membrudo latagão de fortes músculos e inteligência débil, seu colega de escritório, seu amigo e seu comparsa, a boquiabrir-se de espanto e embasbacada admiração pelo esplêndido talento, pelo robusto preparo e pelas épicas virtudes do dr. Spencer Vampré - tipo modelar, irrepreensível protótipo, arquétipo perfeito da mais completa sabedoria e da mais íntegra moralidade de costumes privados e públicos, providencialmente surgido no grêmio da sociedade paulista para estímulo constante e eterno exemplo das gerações presentes e futuras!

Não! O querelado, inspirando o editorial d'A Época, e reproduzindo-o no Estado, sob sua direta responsabilidade pessoal, não visou apenas defender os direitos de seus constituintes ou os interesses de sua banca forense - banca fatídica e fatal, onde só entram causas perdidas ou em tais se transformam as boas causas que para lá se encaminham por acaso - como se verá mais tarde elo estudo especial que faremos da incurável jetattura que acompanha o dr. Spencer Vampré como advogado, e leva a um remate infeliz as questões patrocinadas por ele.

Não! inspirando aquele editorial e reproduzindo-o na imprensa paulista, o seu escopo não foi defender nobremente direitos de terceiros; mas aterrorizar pela injúria grosseira, pelo espalhafato e pelo escândalo, o juiz do feito, o curador das Massas Falidas, os diretores do banco e os querelantes, a fim de conseguir para o seu escritório deserto um inglório triunfo obtido à custa de respeitáveis interesses alheios, e que lhe granjeasse alguns incautos fregueses.

A sua condenação, portanto, foi um ato imparcial de justiça e fundada nas mais imperativas prescrições do nosso Direito Positivo.


V

No triste desespero em que se debate por sua culpa exclusiva - lança mão o dr. Spencer Vampré de argumentos verdadeiramente pueris, por si sós bastantes para demonstrar o quanto se tornou difícil a sua defesa e como a sua causa é realmente má. Se a Justiça o amparasse, se razões jurídicas ou morais militassem a seu favor neste pleito, é certo que os argumentos lógicos, os raciocínios claros e as demonstrações eloqüentes afluiriam ao bico de sua pena, independente da maior ou menor habilidade com que ela fosse manejada.

Um dos seus esforços mais gigantescos, porém inanes, tende a provar que não existe responsabilidade na reprodução de artigo alheio, embora seja sabido - e ele o repete - que quem reproduz injúria por sua vez injuria. Acha que, tendo mandado republicar no Estado o editorial da Época, sem lhe acrescentar coisa alguma de seu, aumentando-lhe apenas a publicidade, absolutamente não infringiu a lei penal. E acrescenta que nas seções livres de nossa imprensa, as reproduções costumam fazer-se sem nenhuma responsabilidade - o que contestamos formalmente.

Todos os nossos jornais exigem a responsabilidade prévia das transcrições feitas na seção paga, embora aconteça muitas vezes que, por deferência para com determinada pessoa e confiança na sua honorabilidade, prescinda-se dessa prática no ato de aceitar o artigo. No momento, porém, em que o jornal é chamado a exibir o original para a propositura de uma ação-crime, manda-se procurar a pessoa em questão para assumir a respectiva responsabilidade. Foi isso, provavelmente, o que sucedeu com o dr. Vampré.

A prova, afirma desvairadamente o querelado, de que os querelantes, movendo-lhe o processo em que foi condenado, não visavam desagravar sua honra ofendida, mas intimidá-lo, é que eles não ofereceram queixa contra o verdadeiro autor do artigo, o redator ou colaborador da Época.

Esquece-se acaso o dr. Vampré que o responsável pela publicação original no órgão carioca é o deputado federal Vicente Piragibe e que as imunidades parlamentares inseparáveis de suas funções constituiriam um formidável embaraço à ação dos querelantes? Foi só por iso que eles também não agiram contra aquela folha ao mesmo tempo que contra o dr. Vampré.

Além disso, eles sabiam que se a pena que retraçou as injúrias estava lá, o cérebro que as inspirou estava aqui; que se o autor material que deu expressão literária às infâmias pertencia à redação carioca, o autor intelectual que as recebeu residida nesta capital; que o braço agira no RIo mas a principal cabeça responsável elaborara em S. Paulo o tremendo libelo.

A Época, preocupada com os variados problemas que agitam a sociedade política da capital brasileira, não teria notado o que se passa no foro comercial de S. Paulo, se não houvesse interessados que apelassem para a sua intervenção no caso de que nos ocupamos.

O que cumpria, portanto, aos querelantes, em defesa de sua reputação e de sua probidade, era punir o perverso inspirador das ofensas gravíssimas com que tinham sido miseravelmente enxovalhados. Em uma palavra: o que lhes importava, sobretudo, era dar ao dr. Spencer Vampré uma lição magistral, que fosse ao mesmo tempo uma completa reparação pelas injúrias por cuja transcrição e maior divulgação se responsabilizara aquele advogado.

É pasmosa a filáucia com que o querelado assevera que, pela transcrição do artigo injurioso, não é passível de penalidade alguma, porquanto o nosso Código só pune o autor, o dono da tipografia, o editor e o distribuidor. Isso seria burlar inteiramente a responsabilidade pelos delitos de imprensa. Para refugir a tal responsabilidade, seria bastante, por exemplo, que o indivíduo A, querendo ofender a reputação de seu amigo B, encomendasse ao jornalista C, ministrando-lhe dados e pormenores, um artigo escachante num qualquer jornaleco de restrita circulação. Para aumentar a publicidade desse artigo - como no caso em questão fez e confessa o dr. Spencer Vampré - mandaria reproduzi-lo num jornal mais lido, assumindo, perante a redação respectiva, a responsabilidade devidamente assinada.

Chamado a juízo, A declinaria covardemente da responsabilidade que assumira, alegando que, diante da letra da lei penal só é punível o autor do artigo, e que esse autor não era ele. Não se pode conceber escapatória mais cínica, nem interpretação mais imoral da insofismável disposição do Código.

Felizmente, a nossa jurisprudência firmou inabalavelmente opinião contrária a essa: quem reproduz injúria, por sua vez injuria, como confessa o querelado e é geralmente sabido; e quem, reproduzindo uma injúria, nomeia o seu autor original, nada faz senão "nomear o seu sócio malefício".  Reproduzindo no Estado o artigo injurioso da Época, o dr. Spencer Vampré constituiu-se, pois, autor direto da injúria reproduzida; sendo, portanto, passível de penalidade segundo as disposições do artigo 22 do Código.

Na obsessão de ver no seu crime um delito continuado - e já pulverizamos anteriormente a sua frágil argumentação a respeito - pensa ele que, nas duas publicações, a da Época e a do Estado, não há dois delitos, mas dois crimes sucessivos, ligados por uma só intenção. É o inverso da hipótese que ele invocou a seu favor, à página 11 das Razões.

Lá, dizia ele que, cometido contra duas personalidades distintas, mas com uma só intenção, o crime constitui um delito continuado, e não comporta, pois, a imposição de duas penalidades diversas. Aqui, ainda se trata de delito continuado, apesar de que os autores são dois, agindo em lugares diferentes, um no foro de S. Paulo e outro no Distrito Federal.

De maneira que, pela sua lógica disparatada, um jornalista escreve em Pernambuco certa verrina contra um cidadão residente em S. Paulo, a propósito de um acontecimento qualquer ocorrido aqui. Tempos depois, um outro cidadão, interessado nesse acontecimento, transcreve, por sua conta e risco, em jornal de S. Paulo, o artigo do órgão pernambucano. Chama a isso o dr. Vampré delito continuado.

Entretanto, a figura desse delito dá-se, na douta opinião de João Monteiro, "se o criminoso reiterou a prática de delitos violadores do mesmo direito protegido pela mesma prescrição da lei penal, sem que tais atos, por maior que seja a respectiva série, constituam outros tantos crimes".

Ora, no caso presente não houve série sucessiva de injúrias; o redator da Época publicou um artigo e nisso ficou; o dr. Vampré reproduziu tal artigo e parou aí. Nenhum deles reiterou a prática do delito. Mas se houve um só delito contínuo, pelo qual ambos são co-responsáveis, segue-se que também houve entendimento prévio entre o querelado e a redação da Época, e a tal ponto, que o mesmo querelado entende que, reproduzindo o artigo em S. Paulo, nada mais fez que reiterar a prática de um ato delituoso anterior.

É evidente que foi o dr. Vampré o autor do artigo, a cuja responsabilidade procura agora fugir. Bem agiram, pois, os srs Pereira Ignacio & Cia. e Francisco Scarpa & Filho em chamá-lo severamente a contas.


VI

Passa, de seguida, o dr. Spencer Vampré a narrar, a seu modo, a verdade dos fatos; e começam í os seus ferozes ataques à probidade pessoal e profissional dos dignos e ilustres irmãos Carlos e Sylvio de Campos - aquele, diretor do Banco União, e este, Curador Fiscal das Massas Falidas, funcionando, em razão e por dever do cargo, no processo da falência do citado banco.

Não há dúvida que a verdade dos fatos, expressamente autorizada pelo querelante, exclui a existência da injúria ou da calúnia, segundo doutrina, em frase sentenciosa, o querelado. Mas é preciso que a verdade fique devidamente provada, o que absolutamente não se deu no caso atual, como veremos pouco a pouco.

O dr. Spencer Vampré alveja de preferência, nas suas criminosas agressões, ao dr. Sylvio de Campos. Compreende-se bem essa predileção. O distinto representante do Ministério Público, em sua qualidade de Curador das Massas Falidas, é sempre um enérgico opositor aos interesses ilegítimos dos que pensam fazer das falências no foro de S. Paulo uma indústria lucrosa.

É natural que contra ele convirjam os ódios dos que vêem malogradas as suas tentativas indecorosas de realizar esplêndidos negócios à custa da boa fé dos credores das massas.

À Banca do querelado, pouco freqüentada por clientela abonada e respeitável, e ordinariamente infeliz no remate judicial das causas que lhe são entregues, convinha afastar do seu posto de honra, averbando-o de suspeito, o íntegro dr. Sylvio de Campos, a cuja competência, de que tem dado tantas provas reais, e a cuja honorabilidade, por todos reconhecida, estava confiada a guarda dos magnos interesses de todos os credores do Banco.

Muito convinha ao dr. Vampré esse afastamento, que redundaria em grande notoriedade para o seu nome de advogado e em reclame estrondosa para o seu escritório que vegeta ingloriamente à margem do movimentado e brilhante foro paulistano.

Dos autos se colige que, argüindo de suspeição o Curador Fiscal, o dr. Spencer Vampré não advogava sequer os interesses dos credores de que era procurador - os srs. Richard Winchello & Cia., e Cunha, Irmão & Cia., porquanto estas firmas logo que tiveram conhecimento de tão condenável atitude, cassaram-lhe as procurações que lhe tinham dado e passaram novas procurações a outros advogados.

O querelado agiu, pois, nesta emergência, movido apenas por meros sentimentos de natureza pessoal que só podemos explicar pela necessidade de fazer barulho em torno de seu esquecido escritório forense, apelando para ele a atenção especial do comércio, da imprensa e do público em geral.

Mas, por quê argüiu ele de suspeito ao dr. Sylvio de Campos? Porque o Curador Fiscal: 1º) é irmão e sócio de escritório do dr. Carlos de Campos, diretor-presidente do Banco União; 2º) é grandemente interessado na falência do mesmo Banco do qual ele próprio, sua digna mãe e seus irmãos são acionistas; 3º) é amigo da firma Pereira Ignacio & Cia. e de Francisco Scarpa, banqueteando-se publicamente com este, quando ainda se achava em andamento o processo da referida falência. Examinemos, tão rapidamente quanto nos for possível, esses artigos.

Em que se baseou o querelado para argüir de suspeito o Curador Fiscal? Em dispositivo de lei que não se adjetiva com o caso em discussão. Procurando turbar propositalmente a verdade, o sr. Spencer Vampré quis aplicar a um processo comercial de falência disposições legais relativas simplesmente a casos próprios do processo criminal.

Efetivamente, a lei só impede de servir, por motivo de suspeição, os funcionários do Ministério Público com juiz ou escrivão que seja seu pai ou filho, sogro ou genro, irmão ou cunhado durante o cunhadio, tio e sobrinho e tio co-irmão.

Ora, o dr. Sylvio de Campos não se encontrava em nenhum destes casos em relação ao juiz e ao escrivão que funcionaram no feito, e, portanto, não havia motivo algum legal para afastá-lo do exercício de suas funções naquele momento. E tanto isso é verdade que o honrado magistrado que presidiu o processo, acolheu e achou procedente as razões em que se fundou o Curador Fiscal para recusar a suspeição argüida contra ele.

Realmente, os interesses gerais estão bem defendidos, observando-se apenas os motivos de suspeição determinados no artigo 40 do Dec. de 23 de setembro de 1904, e que citamos acima. Só mesmo nas circunstâncias ali previstas, poder-se-ia dar de suspeito o representante do Ministério Público. Uma vez, porém, que o juiz não é parente seu, em qualquer dos graus assinalados na lei, a suspeição deixa de existir, porque o magistrado dispõe francamente da mais ampla liberdade para impedir que o Curador das Massas intervenha, protegendo irregularmente interesses lesivos dos direitos alheios.

Se, pelo fato de ser irmão de um dos diretores do banco, o dr. Sylvio de Campos tentasse, em prejuízo dos credores legítimos, favorecer inconfessáveis interesses patrocinados por aquele, claro é que o íntegro juiz - que com ele não tem parentesco algum - oporia as suas decisões a quaisquer tentativas feitas em semelhante sentido.

Entretanto, tal não se deu. Não só o dr. juiz da 1ª Vara Comercial nada viu de censurável na conduta do dr. Sylvio de Campos, no decorrer do processo, como teve ocasião de indeferir, dentro da lei e de acordo com as mais escrupulosas prescrições da moral jurídica, todos os recursos de que lançaram mão sucessivamente os que se esforçaram debalde por afastar de suas funções o honrado Curador das Massas Falidas.

A não ser que o dr. Spencer Vampré pense que o dr. Miguel de Godoy estava também mancomunado com os quadrilheiros concertados para assaltar a massa do banco falido - temos que concluir pela absoluta, pela inatacável correção com que se houve em todas as fases do processo o dr. Sylvio de Campos, apesar de ser seu irmão diretor do referido banco.

Devemos notar de passagem que o dr. Carlos de Campos nem mesmo funcionou no feito, porque o representante legal do banco perante o juiz e perante os credores não era ele, mas sim o diretor-gerente, a quem cumpria prestar todos os esclarecimentos e informações que se fizessem mister.

Não podendo amparar a suspeição argüida no decreto citado, de 23 de setembro de 1904, cujo artigo 40 é peremptório e não admite interpretações latitudinárias e sofísticas, o dr. Spencer Vampré foi socorrer-se, como já dissemos, de disposições aplicáveis somente ao processo criminal, estabelecendo tumultuariamente uma confusão entre as duas fases distintas em que a macha de qualquer falência se divide.

No caso do Banco União, tratava-se, então, e tratou-se até final, do processo comercial da falência, e as suspeições que lhe são relativas estão taxadas em lei; nada tinha a ver com esse caso o artigo 75, n. 1º, do Código do Processo Criminal, pois não se tratava absolutamente de processo-crime.

Semelhante artigo proíbe, de fato, a denúncia de um irmão contra um irmão, mas isso já é no terreno da ação-crime, e não na fase propriamente comercial da falência.

Se, à proporção que o feito corresse, o dr. Sylvio de Campos viesse a verificar que a falência caminharia para a fase criminal, está claro que se daria de suspeito para não denunciar seu próprio irmão. E para assim proceder nem preciso seria que lhe viessem pôr diante dos olhos um artigo do Código do Processo, feito apenas para servir de orientação às inteligências acanhadas e aos corações estreitos: a nobreza natural de seus sentimentos fraternos, e não o dispositivo da lei, é que o faria retirar-se do pleito, para não oferecer denúncia contra seu irmão.

Só as almas pouco sensíveis, ou dominadas pelos mais grosseiros instintos, é que procederiam de modo contrário, se tal lhes fosse permitido; como, no caso presente, o dr. Spencer Vampré, que, apesar de dizer, aliás falsamente, que é aparentado com os drs. Carlos e Sylvio de Campos, não hesitou em romper os delicados laços das amoráveis relações de família, para enxovalhar com os mais infamantes epítetos aqueles dois preclaros moços que tanto nobilitam e honram a cultura paulista, pelo seu talento, pelo seu preparo e pela notória respeitabilidade de seu caráter privado e público.


VII

O primeiro articulado do famoso libelo que o dr. Spencer Vampré ofereceu, na imprensa do Rio e reproduziu na de S. Paulo, contra a honorabilidade do dr. Sylvio de Campos, como Curador Fiscal das Massas Falidas, ficou inteiramente reduzido a pó pela triunfante argumentação do nosso artigo anterior.

De fato, sob o tríplice ponto de vista da moral comum, da ética jurídica e das determinações categóricas de nosso Direito Positivo - a conduta daquele zeloso representante do Ministério Público foi absolutamente irrepreensível e, como tal, sustentada, em vários e fundamentados despachos, pelo integérrimo juiz da 1ª Vara Comercial, a quem coube presidir, com a sua costumeira lisura, o processo da falência do Banco União.

Nem os princípios elementares da moral comum, nem os mais rigorosos ditames da ética jurídica, nem disposição alguma da lei relativa à matéria - exigiam que ele aceitasse a suspeição de que fora argüido, sem nenhum motivo razoável, aceitável ou plausível.

Fraca prova de sua integridade profissional daria ele, se se julgasse realmente suspeito para funcionar na causa, unicamente porque seu irmão era um dos diretores do instituto falido, muito embora não lhe competisse intervir no feito, visto como, de acordo com as prescrições da lei, quem devia funcionar como representante do banco era o seu diretor-gerente.

Confundiu-se propositalmente, como provamos, o processo comercial da falência com o seu processo criminal. Ora, a quebra do Banco União, enquanto não saísse do primeiro processo,não determinaria incompatibilidades que só existem entre o representante do Ministério Público e o juiz.

Só na fase criminal, conforme já o expusemos limpidamente, é que o curador seria incompatível para funcionar porque a lei lhe veda o direito de denunciar seu irmão. Houve de fato, nos autos, denúncia de irregularidades que se diziam praticadas em detrimento dos interesses dos credores. Mas ninguém provou os fatos denunciados e o processo criminal da falência foi mandado arquivar por falta de base, tendo a justiça agido livre, desembaraçada e sobranceiramente.

O dr. Spencer Vampré, escorraçado de todos os lados como um audaz cachorrete, não se deu por vencido e continuou a argüir ao Curador das Massas, de suspeito no processo comercial, pelas razões que resumimos nos três articulados a cuja análise estamos procedendo, mas por falta de base para fundamentar sua argüição arbitrária e insubsistente, foi apoiar-se num artigo do Código do Processo Criminal que só é aplicável nas ações-crimes.

Por esse motivo, o digno juiz da 1ª Vara Comercial teve que indeferir todas as petições tendentes a confundir num só os dois aspectos que caracterizam diversamente a marcha dos processos de falência em nossa organização judiciária.

Fora dos autos, nas levianas cavaqueiras das ruas, no burburinho das rodas forenses, onde se agasalham os mais estúpidos boatos, e nas colunas do jornalismo industrial, é que o sr. dr. Spencer Vampré prosseguiu afirmando a existência do tal complô organizado para a prática de um ato criminoso, cuja prova nunca fez.

Abandonado literalmente de todos os recursos legais, porque todas as suas tentativas falharam estrondosamente, persistiu ele em manter-se imutável na sua opinião, já revelada no escândalo jornalístico que provocou e que era perfeitamente escusado em quem se achava tão cheio de razões.

É que ele sabia perfeitamente que nada ocorrera de anormal no processo e que lhe seria absolutamente impossível, por falta de elementos, obter qualquer sucesso em sua fase criminal.

Pois se agora mesmo, quando trata de defender-se energicamente para evitar a cadeia, que bem merece, e que o espera, pela condenável atitude que assumiu no pleito - ele não conseguiu exibir uma única prova da criminalidade atribuída perversamente ao Curador Fiscal, ao chamado presidente do banco e aos querelantes - pode alguém acreditar que as provas indispensáveis pudessem ser feitas nos autos da falência? O que dizem no processo por injúria as suas testemunhas, não foi decerto diverso do que disseram no processo criminal da falência.

O dr. Vicente Ráo acha que o Curador das Massas Falidas é um funcionário digno, embora, pelos motivos alegados para a sua suspeição, julgue que dificilmente, ou talvez de forma alguma, os direitos dos credores possam ser respeitados.

É, como se vê, um depoimento contraditório. Se o dr. Sylvio de Campos é um funcionário digno, porque, então, supõe o dr. Vicente Ráo que possa ele cometer a indignidade de lesar, em proveito seu e de sua família, os respeitáveis interesses dos demais credores?

O dr. Siqueira Campos Filho nada afirma de ciência própria, altivamente, decididamente, com a consciência de quem fala a verdade. Limita-se a afirmar que se dizia abertamente a coisa, que o fato de o dr. SYlvio não se declarar suspeito faz SUPOR que ele era interessado particularmente em favorecer a seu irmão; que era corrente que a massa daria para o pagamento integral de todos os credores etc.

O dr. Carvalho Borges nada refere sobre a aludida mancomunação, limitando-se a dizer que apresentou contra o Curador Fiscal artigos de suspeição, os quais, apesar de não encontrarem apoio em lei expressa, deviam por analogia ser aceitos; mas o juiz do feito, cuja competência e cuja integridade a ninguém é lícito pôr em dúvida, não foi do mesmo luminoso parecer da testemunha, e recusou a suspeição, o que forçou o sr. dr. Vampré a recorrer a um órgão carioca, conhecido pela facilidade com que empreita campanhas de difamação bem remuneradas pecuniariamente.

O dr. Pedro Soares de Araujo, companheiro do querelado, de cujos azares forenses participa logicamente, pois boa parte de responsabilidade lhe cabe nas soluções desastrosas que têm tido as causas entregues ao patrocínio de tão fatídico escritório - nada fala sobre a tal fantástica mancomunação e apenas expõe o seu juízo pessoal quanto à suspeição do dr. Sylvio de Campos para servir na falência de um instituto de que é presidente seu irmão.

Mas isso é apenas uma opinião - e opinião refutada vantajosamente pelo Curador das Massas e repelida pelo magistrado que presidiu o importante processo.

O dr. Francisco Morato, a cujo parecer temos que nos referir depois especialmente, também não faz a menor alusão ao complô criminoso, organizado para o assalto aos bens do falido; somente repete a opinião que emitira no citado Parecer, sustentando que o dr. Sylvio de Campos era suspeito para funcionar na causa.

Ora, são estas testemunhas que o dr. Vampré apresentou em sua defesa na queixa-crime, em que foi condenado. Elas não provaram nenhuma das suas afirmativas, relativamente ao projetado assalto à massa do banco, e por isso foi-lhe merecidamente aplicada a penalidade imposta pelo Código aos agressores da reputação alheia.

Elas mesmas é que o dr. Spencer Vampré teria de apresentar no processo da falência, para provar a sua temerária denúncia de que uma quadrilha de assaltantes tinha sido organizada com o fim de adquirir, a preço vil, o rico patrimônio do banco.

Haveria acaso algum juiz tão desarmado de critério que, apreciando os depoimentos de tais testemunhas, concluísse pela criminalidade de quem quer que seja no processo?

Examinamos agora o segundo articulado do libelo: o dr. Sylvio de Campos é grandemente interessado na falência do banco, do qual ele próprio, sua digna mãe e seu irmão são acionistas.


VIII

O articulado de que o dr. Sylvio de Campos, por ter grandes interesses pessoais e domésticos ligados à falência do Banco União, visto como ele próprio, sua veneranda mãe e seus dignos irmãos são possuidores de vultoso número de ações daquele instituto - não precisa que o destruamos - o dr. Francisco Morato, presidente da Ordem dos Advogados desta capital, para cujo parecer apelou confiadamente o querelado, incumbiu-se de fulminá-lo com a lógica de sua argumentação inflexível e serena.

É pasmoso que se lançasse mão desse Parecer como arma de combate contra a integridade do Curador das Massas Falidas. O dr. Francisco Morato, respondendo à consulta que lhe foi feita, acha que a circunstância de ser aquele funcionário interessado, pelos motivos expostos, no espólio do Banco, longe de prejudicar a sua ação, parece antes servir-lhe de estímulo a que melhor cumpra os deveres de seu cargo em relação à falência de que se trata. É uma razão de peso, cuja procedência, não terá escapado certamente ao critério dos que têm acompanhado este debate.

Para o presidente do Instituto dos Advogados só há um motivo sério de suspeição: é o fato de ser presidente do banco um irmão do curador, o dr. Carlos de Campos. A suspeição aí é fora de dúvida, porque o art. 75, n. 1, do Código do Processo Criminal, proíbe a denúncia de irmão contra irmão; e o dr. Sylvio de Campos poderia, pelo desenrolar dos acontecimentos, encontrar-se acaso nessa dolorosa contingência. Apreciemos esse argumento máximo do Parecer.

Em primeiro lugar - o dr. Carlos de Campos não era presidente do Banco União, quando se tornou patente a sua insolvabilidade. Na diretoria, s. exa. desempenhava o papel de consultor jurídico. Tendo, nas vésperas da quebra, o presidente efetivo, em razão de doença que o impossibilitou do trabalho ativo por algum tempo, passado, em caráter temporário, o exercício do cargo ao dr. Carlos de Campos, este é que requereu a falência, apesar de que nunca tivera nenhuma ingerência, a não ser consultiva, na administração do banco.

 sua ação na presidência interina limitou-se a requerer a falência, não tendo s. exa. tomado parte alguma no respectivo processo, onde quem representou o falido, de conformidade com a lei, foi o seu diretor-gerente.

O dr. Morato entende que a suspeição resulta apenas da posição que ocupava no banco o dr. Carlos de Campos. Mas, nós já provamos, e parece-nos que de modo irrefutável, que a suspeição invocada só se daria no caso de passar o processo para a sua fase criminal, e que o artigo 75 por ele invocado, só se aplica a tal caso.

Ora, o dr. Spencer Vampré, no seu prurido de espalhafato e de reclame, arrastou interessados a conduzirem à fase criminal o processo de falência. Presentes os autos ao dr. Sylvio de Campos, este, com o pundonor e o brio que são ornamentos essenciais de seu elevado caráter, deu-se imediatamente de suspeito. O juiz nomeou-o para substituí-lo o dr. José Augusto de Queiroz o qual, examinando os fundamentos da denúncia, opinou pelo arquivamento do processo, por falta de base, de provas, de elementos quaisquer que pudessem servir à ação da Justiça.

O magistrado julgador, conformando-se com o parecer do curador ad hoc, mandou que se arquivasse toda aquela papelada inútil, onde, mais do que o amor do bem público e dos interesses alheios, transparecia o despeito dos advogados sem clientela e sem nome emparceirados com os trampolineiros que se habituaram a locupletar-se com o espólio das massas outrora mal fiscalizadas.

Isto prova que o tal complô só existiu na cabeça desatinada do dr. Vampré, que quer agora, com uma covardia digna de comemoração especial, fugir à responsabilidade criminal pelas agressões injuriosas com que malbaratou a reputação de negociantes honrados e de colegas honestos, benquistos e bafejados pelas simpatias e pela consideração geral em que são tidos no meio paulistano.

O terceiro articulado, pela sua infantilidade, não merece que percamos longo tempo em apreciá-lo detalhadamente. Pelo fato de ser amigo pessoal do sr. Francisco Scarpa e com ele banquetear-se publicamente - entende o nosso famigerado jurisconsulto de repica-ponto, que o dr. Sylvio de Campos era suspeito para funcionar no processo.

É mais um motivo de suspeição de que não cogita a lei e que nem mesmo o dr. Francisco Morato, por mais que folheasse as páginas do Código do Processo Criminal, por mais que compulsasse Avisos Ministeriais cobertos da poeira dos arquivos - conseguiu descobrir para gáudio e proveito real dos descontentes.

De maneira que um representante do Ministério Público, um juiz, um ministro do Tribunal, têm que viver vida monástica, em perpétua reclusão, sem relações exteriores com a vida social, porque, do contrário, seriam logo suspeitados, pelos puritanos do nosso foro, de lesarem a justiça, em benefício particular dos seus amigos.

Entretanto, nós vemos todos os dias, para honra de nossa caluniada magistratura, os juízes de todas as categorias decidirem contra os poderosos, contra o próprio Governo do Estado, ou da União, cuja graça e cuja apregoada onipotência poderiam ofuscá-los, cegando-lhes a consciência e levando-os a decisões arbitrárias, injurídicas ou imorais.

Vemo-los defendendo o direito de pobres funcionários públicos, de colocação hierárquica subalterna, contra a prepotência de administrações porventura arrogantes e despóticas. Por que supor que eles, que assim resistem, sem esforço, ao possível desejo de ser agradáveis aos grandes, seriam incapazes de resistir às solicitações impertinentes de amigos pouco discretos?

E note-se que aquela frase "com o qual se banqueteia publicamente" indica, com evidente perversidade, que o Curador das Massas Falidas leva a banquetear-se habitualmente com Francisco Scarpa, quando a festa, a que se refere a fotografia junta aos autos, é um episódio singular nas relações existentes entre os dois estimados cavalheiros.

Reduzido às suas verdadeiras e minúsculas proporções o libelo do dr. Spencer Vampré, encerraremos amanhã esta série de considerações.


IX

Quando o dr. Spencer Vampré, ainda jovem e com a alma tumultuando dos arrebatados ideais, próprios da idade, veio para S. Paulo iniciar-se nos estudos superiores, trajava espantosamente uma sobrecasaca monumental, tecida de panos das mais heterogêneas qualidades e dos mais variados matizes.

Sobre esses retalhos diversos cosidos em épocas várias, conforme o império das circunstâncias, resplandeciam, como constelações, as manchas gordurosas cobertas do pó dos séculos.

A tão curioso vestuário juntava o dr. Vampré, como remate da mais suprema elegância, uma velha cartola arrepiada, modelo arcaico desaparecido de há muito na voragem dos tempos transcorridos.

O seu aspecto, em que a preocupação do chic contrastava singularmente com os fiapos sobrecasacais e a vetustez respeitável da cartola velha - atraía sobre a sua personalidade a atenção universal do nosso povo. As damas sorriam-se, maliciosas e sarcásticas, ao verem-no passar, empertigado e teso, na sua pretensiosa galanice de janota mal enroupado; os homens olhavam-no com admiração mesclada de piedosa benevolência; as crianças, tomadas de súbito pavor, fugiam para dentro das habitações, como quem foge ao diabo em pessoa; as velhas octogenárias, encanecidas nas superstições religiosas, ao depararem-no, persignavam-se, faziam-lhe figas e acendiam velas bentas nos oratórios domésticos, esconjurando-o, entre padre-nossos e ave-marias fervorosamente rezados; os garotos assobiavam-no e, ocultos no ângulo de alguma esquina deserta, alvejavam com pedradas irreverentes aquela cartola...

Mas, apesar de sua toilette, ou antes, exatamente por causa dela, segundo se colige imparcialmente dos fatos, o dr. Vampré conseguiu vencer com relativa facilidade os obstáculos que, de ordinário, se opõem à marcha, sempre vagarosa, dos que não têm, para se impor ao público, nem notoriedade mental, nem função pública de relevância, nem posição vantajosa de fortuna.

Não obstante, sob a proteção misteriosa de sua cartola amarrotada e de sua rabona em frangalhos, o modesto estudante, cheio de robusta e orgulhosa confiança em si mesmo, foi galgando aos poucos os degraus ascensionais que o guindariam à cátedra de professor na Faculdade Paulista.

Fez-se tradutor juramentado, e muito embora se diga que as suas traduções confirmavam o prolóquio italiano - traduttore tradittore -, arranjou clientela, recursos para estudar e formou-se em Direito.

A sorte continuou a bafejá-lo com a sua protetora simpatia e ele se viu, como numa mutação de mágica, transformado em cidadão importante, em escritor jurídico, em homem de letras, em advogado, em eleitor, em sólida coluna da ordem social em nosso meio.

O orgulho dominou-o, tresvairando-o; apossou-se dele o terrível delírio das grandezas. Pensou que estava formidavelmente a cavaleiro sobre a sociedade paulista e que, moderno D. Quixote, abrasado, não de generosas utopias, como o herói cervantino, mas de idéias utilitaristas e destruidoras -, transcendera gloriosamente em méritos provados a todos os seus concidadãos. Quem tinha maior talento que ele? tão enciclopédico preparo? mais austeridade moral? princípios mais firmes e convicções mais retas? Ninguém.

Nisto, um garoto, que, pulando os mais cômicos trejeitos, absorvia-se na contemplação da sua figura, gritou-lhe, de repente:

- Olha a cartola!

E desatou a correr.

Outro garoto, que se aproximava, atraído por aquele aspecto de bufarinheiro andrajoso, não se conteve e atirou-lhe aos ouvidos, em plena praça pública, esta exclamação explosiva:

- Olha a rabona!

E celeremente escapuliu-se.

O dr. Vampré só então caiu em si. Tirou a cartola, e examinou-a, assombrado; olhou a sobrecasaca ensebada e nauseosa, e ficou pasmo, diante de tanta porcaria acumulada no correr das idades. O hábito de longos anos não lhe tinha permitido observar o quanto aquele vestuário e aquele chapéu de pelo estavam fora de seu tempo e das prescrições mais elementares da higiene. Sentindo-se ridículo e humilhado, resolveu vestir-se à feição da época.

O orgulho perdeu-o. Com a mais negra ingratidão, despiu-se dos seus andrajos e da sua cartola - os velhos e leais confidentes de seus pesares e de suas glórias, os dedicados companheiros de suas jornadas através do foro, das letras e do professorado. E ei-lo que, do dia para a noite, com escândalo e geral surpresa, exsurge, de arrebate, em plena rua Quinze, envergando um fraque todo liró, com um monstruoso girassol à lapela, e trazendo à cabeça um chapéu de coco, fabricado pelo Borsalino.

Data daí a sua decadência, a queda de suas aspirações, o malogro de sua carreira, a urucubaca que o persegue. Toda a injustiça, como  uma bala que volta de ricochete, recai sobre quem a pratica. A ingratidão, que cometera contra a sua rabona e contra a sua cartola, tinha que estourar sobre a sua cabeça e refletir-se fatalmente sobre os seus destinos.

O azar fez-se então companheiro inseparável de sua vida. Um cliente é perseguido pela polícia e preso, dentro do próprio escritório do dr. Vampré, no momento em que lhe passava procuração para defendê-lo. Fora de si, o advogado reage contra a autoridade, é levado à Polícia Central, esbraveja, faz escândalo, toma atitudes épicas de mártir. Instaura processo contra a autoridade que, segundo sua opinião, abusara do poder do cargo, e o juiz criminal nega-lhe razão, julgando improcedente a queixa. Em compensação, vai a júri o seu constituinte e é condenado.

Mais tarde, duas firmas credoras do Banco União conferem-lhe mandato para defender seus interesses na falência daquele estabelecimento. Ele, abusando do mandato, vai além dos poderes outorgados, pelo que os clientes cassam-lhe nos autos as procurações que lhe tinham passado e dão novas procurações a outros advogados mais circunspectos.

Argüi de suspeição o curador que funcionava na referida falência - e o juiz da 1ª Vara Comercial recusa a suspeição argüida. Apresenta denúncia contra determinadas pessoas por supostos crimes cometidos contra os interesses legítimos dos credores do mesmo banco - e o juiz, ouvido o curador nomeado ad-hoc, manda arquivar o processo por absoluta carência de base.

Duas honradas firmas comerciais desta Praça, injuriadas por ele em artigo de jornal, chamam-no à responsabilidade - e é ele condenado, nos dois processos, à pena de prisão celular.

Entra para professor da Universidade de S. Paulo, e esse benemérito estabelecimento, que estava prestando à instrução superior do nosso Estado os melhores serviços, começa a padecer toda a sorte de reveses e parece ameaçado, infelizmente, de fechar as portas.

Um casal em divergência procura o seu escritório para incumbi-lo de promover o respectivo divórcio, amigavelmente. Surge de repente, dos fundos do sertão uberanense, como num lance teatral inesperado, um irmão vingativo, mata o indigitado amante da irmã acusada, fere um irmão do dr. Vampré, alvorota os habitantes do prédio, reduz a cacos, furiosamente, o mobiliário do escritório, e vai parar à cadeia.

Cremos não ser preciso alongar mais o rol dos desastres que têm acontecido ao dr. Spencer Vampré, depois da nefanda ingratidão com que procedeu em relação à sobrecasaca e à cartola dos seus saudosos tempos de tradutor juramentado.

Julgamo-nos, por isso, habilitados a dar-lhe um salutar conselho. Emende a sua grave falta, repare a sua feia injustiça, arrependa-se de sua dura ingratidão. Desça ao porão de sua casa, abra a canastra de couro tauxiado onde recolheu aquelas grotescas relíquias, cujas nódoas o bolor encobre providencialmente; envergue-as de novo, mande à fava o seu fraque liró e o seu Borsalino elegante, volte a chamar a atenção pública para as antigas peças do seu vestuário de outros tempos e verá que a prosperidade torna outra vez a sorrir-lhe, como uma fada benfazeja e bondadosa...

Aceite o nosso conselho; ao contrário, a fatalidade que o acompanha afugentará, para sempre, de sua Banca mal-assombrada, os poucos incautos clientes que por acaso ainda lhe restem.

Temos dito.

Imagem: Apelo à Justiça Paulista, página 49