Imagem: frontispício de Apelo à Justiça
Paulista
Um apelo à justiça paulista
Com este grave e solene título,
recebemos um opúsculo de cerca de 50 páginas, assinado pelos srs. drs. Estevão de Almeida e Spencer Vampré. São as Razões de apelação, para o
Tribunal de Justiça, da sentença que condenou, por crime de injúrias impressas, o segundo signatário, nos processos que lhe moveram os ofendidos,
srs. Pereira Ignacio & Cia. e Francisco Scarpa & Filho.
Tais processos se ligam à falência do Banco União de São Paulo, na qual o dr. Spencer Vampré,
como advogado de interessados na massa, quis alarmar o ânimo do magistrado que nela funcionou, fazendo pressão sobre as suas decisões por meio de
artigos escandalosos estampados nos editoriais de um jornal do Rio e reproduzidos nesta capital, em órgão de grande circulação, sob a direta e
ostensiva responsabilidade legal do referido advogado, que, depois de semelhante rasgo de independência e coragem profissional, clama contra o
juiz criminal que o condenou e implora ao tribunal que anule a sentença condenatória.
A questão da falência daquele banco já estava morta e achamos imprudente que o sr. Vampré venha
inopinadamente ressuscitá-la em público, por meio de uma profunda distribuição de suas Razões, redigidas em português escasso mas animadas de um
largo e ardente sopro panfletário.
Seria preferível que ele se limitasse a reeditar nos autos, a coberto de qualquer parcela de
responsabilidade criminal, as injúrias que já assacara pelo Estado aos querelantes e em virtude das quais fora merecidamente condenado; mas,
divulgá-las de novo, em folheto sensacional, com títulos e subtítulos garrafais, é expor-se a que, além das grades carcerárias que o esperam, os
injuriados surjam também pela imprensa a dar-lhe o devido troco, muito embora já tenham eles obtido da justiça paulista - cuja magnanimidade e
indulgência o sr. Vampré invoca em frases onde o medo transparece a cada passo - a necessária reparação e desafronta à sua honorabilidade
comercial, enxovalhada pelo réu, com recalcitrante contumácia.
E não somente as citadas firmas que nas Razões, ora publicadas, recebem novos ataques do sr.
Spencer Vampré: também os drs. Carlos e Sylvio de Campos são, ainda uma vez, agredidos com extrema violência, por aquele advogado. São dois nomes
conhecidos, estimados e respeitados no foro e na alta sociedade paulista.
O primeiro, além das elevadas posições políticas que tem exercido com grande brilho e
competência, é um dos jornalista mais acatados em nosso meio pela cativante delicadeza e tolerância com que se mantém nos debates que trava pelo
órgão que dirige; o segundo, na qualidade de Curador das Massas Falidas, quando chamado a pronunciar-se nos processos de quebra, age com a mesma
retidão, inteligência e desassombro de que deu sobejas provas ao tempo em que desempenhou as funções de promotor público desta capital; e daí a
gritaria que os seus atos provocam por parte daqueles que estavam acostumados a nutrir-se nas liquidações irregulares e mal fiscalizadas.
É a esses dois ilustres irmãos, prestigiados pela estima universal dos paulistas, que o sr.
Spencer Vampré tem o topete de nivelar a quadrilheiros organizados para assaltar, em proveito próprio, das respectivas famílias e de alguns
clientes abastados, a massa falida do Banco União de S. Paulo.
Já que se trouxe de novo à publicidade essa questão, que considerávamos
bem morta, vamos escalpelar detalhadamente as Razões do querelado, o que faremos a começar do próximo número.
I
As Razões de que nos ocupamos em nosso número anterior, são assinadas pelos srs. drs. Estevão de
Almeida, como advogado do querelado, dr. Spencer Vampré, e pelo próprio querelado. A qual deles, porém, se deverá a autoria de tão notável
trabalho, onde o saber jurídico e a lógica disputam entre si a glória de mais altamente provarem a inocência do réu e a justiça irrefutável de sua
causa?
A um simples correr d'olhos pelas páginas iniciais se verifica que o autor é o sr. Spencer
Vampré: ninguém, a não ser ele mesmo, seria capaz de mimosear sua pessoa com epítetos tão gentis e elogios tão descompassados, louvando e gabando,
em termos excessivos, o seu talento, o seu preparo, o seu caráter, como se essa tríplice revelação de sua individualidade constituísse uma
singularíssima exceção no nosso foro, onde abundam, para honra e brilho da profissão, advogados mais competentes, mais cultos e menos presunçosos.
Mas não são apenas essas referências que nos convencem de que o autor das panfletárias Razões é
o próprio querelado: é o tom geral de medo, o sentimento de terror que domina toda a redação do opúsculo, no qual se pretende, por meio de
súplicas e implorações angustiosas, mal disfarçadas sob as tênues aparências de uma altivez fingida, impressionar, a favor do réu, o espírito dos
membros da Egrégia Câmara Criminal, forçando-os a anular a sentença apelada.
O dr. Spencer Vampré, condenado à pena de prisão pelas injúrias de que se tornou responsável,
deseja que aquela Câmara desclassifique o delito, pelo qual respondeu perante o juiz singular, capitulando-o como calúnia, a fim de conseguir da
habitual benevolência do júri a absolvição que não logrou alcançar naquele juízo, em processo feito com toda a regularidade, com a asseguração
ampla de todos os meios legítimos de defesa que são facultados pela nossa legislação criminal, inclusive a prova dos fatos.
A esse propósito afirma ele, à página 18, que, processado sumariamente, ficou privado da defesa
completa do plenário, porquanto, há uma notável diferença entre a prova produzida no sumário e a prova produzida no plenário. Mas não passa da
afirmativa, pois que não se digna explicar em que consiste essa notável diferença que ninguém percebe.
A prova no crime de injúria pode ser tão cabal perante o juiz como a da calúnia perante o
tribunal do júri. Que espécie de prova documental ou testemunhal é essa que, podendo ser exibida no plenário, não o pode ser diante do julgador
singular? O próprio sr. SPencer Vampré refuta-se a si mesmo quando, à página 19, em contradição com o que disse à página anterior, declara, com a
arrogância que o caracteriza, que "conseguiu provar, DA MANEIRA MAIS CABAL, a verdade dos fatos contidos no artigo incriminado".
Ora, se ele conseguiu provar tão cabalmente perante o juiz os fatos injuriosos argüidos contra
os querelantes, porque apela para o plenário, a pretexto de que só no plenário poderá prová-los convenientemente? Se os provou DA MANEIRA MAIS
CABAL, como é que se queixa de que foi privado de uma defesa ampla, visto como as provas são mais restritas em audiência do que no plenário?
Vê-se daí, vê-se dessa grave contradição, que o dr. Vampré quer que o tribunal o mande a júri,
não porque precise provar fatos que assevera ter provado cabalmente perante o magistrado que presidiu e julgou o feito, mas porque confia nas suas
relações sociais para arrancar dos juízes populares o veredictum absolvitório que lhe negou a reta consciência do juiz togado.
A verdade é que, apesar de jactar-se de que fizera prova cabal dos fatos em questão, o julgador
condenou-o implacavelmente à pena de prisão celular, o que quer dizer que o magistrado não encontrou nas peças dos autos vestígios quaisquer de
semelhante prova.
A que propósito o juiz criminal, apesar da existência das provas cabais a que alude o dr.
Spencer Vampré, havia de pisar aos pés a integridade da sua toga, para condená-lo por um delito de que s.s. estava inocente? Vota-lhe acaso o
digno magistrado algum reprovável sentimento de ódio pessoal?
Nesse caso, argüisse-o de suspeito. Se, porém, tal não existia, só por venalidade o ilustre
magistrado teria condenado um réu inocente que, além do mais, é seu colega, e colega dos mais graduados, porque é professor, por concurso, da
nossa respeitável Faculdade de Direito. Não acreditamos que atravesse o espírito do querelado a malévola suposição de que o juiz da 3ª vara tenha
decidido contra o réu por essa razão indigna.
Se, pois, o juiz não é seu desafeto, e nem é passível da grave suspeita de venalidade, porque é
que condenou o querelado em jurídica e fundamentada sentença? É porque dos autos não consta prova alguma dos fatos imputados levianamente aos
querelantes.
Cônscio dessa verdade, o dr. Vampré, para escapar à cadeia pelo voto
dos juízes populares, pretende provar que o crime que cometeu é de calúnia e não de injúria, e sujeito, por isso, ao tribunal do júri. Examinemos
em seguida esta face da questão.
II
Das rápidas considerações que ontem fizemos, resulta, sem a menor possibilidade de refutação,
por mais sofística que seja - que o sr. dr. Spencer Vampré, afirmando que a imputação feita por ele aos querelantes foi difamatória e não
injuriosa, pelo que deve ser processado perante o júri e não perante o juízo singular, procura apenas forrar-se a uma possível confirmação, pelo
Tribunal Superior, da sentença que o condenou à pena de prisão celular.
De fato, não é para com mais amplitude e liberdade provar o delito que imputou aos honrados
comerciantes que, em justa represália e desafronta, o processaram, de acordo com a nossa lei penal, que ele, nas suas Razões, enfeixadas em
opúsculo, vastamente distribuído por esta capital, declarou, com o orgulho jactancioso, que é um dos traços predominantes e antipáticos de sua
personalidade pública - que, na audiência a que compareceu como réu, PROVOU CABALMENTE tudo quanto os jornalistas cariocas, por encomenda sua,
escreveram, verrinosamente, contra Pereira Ignacio e Francisco Scarpa.
Se, pois, estas honradas firmas do nosso alto comércio e da nossa indústria, permitiram-lhe, com
verdadeira magnanimidade, que fizesse a prova dos fatos, e se ele confessa, com absoluta espontaneidade, que fez cabalmente essa prova, não
compreenderíamos por que afirma depois, com manifesta e irreparável contradição, que só no plenário pode fazê-la convenientemente - se não
soubéssemos que é o medo exclusivo de ir parar à cadeia, em expiação de seu crime, que o faz assim agachar-se, acovardado e suplicante, aos pés da
Câmara Criminal, implorando-lhe misericórdia.
Mas onde estão os seus assomos de coragem, os seus pruridos de independência e de altiveza
individual e profissional, a sua prosápia incorrigível, a sua bravura, o seu destemor, o seu ímpeto valoroso de paladino imaculado e invencível
que só se bate pelas retas causas e pelos ideais egrégios?
Tudo isso se desfez tocado pelo senso da realidade; todas essas qualidades, criadas e mantidas
pelo vão delírio do seu orgulho descomunal, desapareceram subitamente, ao ser conhecida a respeitável sentença condenatória, transformando o
árdego e e bulhento advogado, que não põe freios à idéia e não tem continência na língua, em pedinte cabisbaixo, que, de rastros, confuso e
humilhado, entre a vergonha de pedir e o receio de não ser atendido, estende a mão trêmula, suplicando a graça de uma esmola.
E na faina em que se exaure de fugir ao cumprimento da penalidade imposta, não só se contradiz
formalmente, como já demonstramos, mas também lança mão, infantilmente, de argumentos ilógicos, desconexos, absurdos, e até insensatos, para
convencer a Câmara Criminal de que, neste negócio todo, ele é que é, espantosamente, uma vítima e que os negociantes injuriados em letra de forma,
pelas colunas dos grandes órgãos de publicidade, é que são uns algozes de coração empedrado e alma inacessível à penetração dos sentimentos
benévolos.
São eles meros perseguidores implacáveis, movidos de ódio infame, injustificado e tenaz contra
um advogado que, segundo ele mesmo pensa e proclama sem hesitações e sem rodeios, é profissional de rara sapiência, de cerebração forte, de
probidade inatacável, honra, glória e orgulho das nossas letras, do nosso foro e da nossa Faculdade - onde aquela figurilha exótica, com o seu
fatídico par de óculos universitários, com a sua rabona esfiapada, reluzente de sebosidades equívocas; e com a sua velha cartola doutoral -
contemporânea e êmula da vecchia zimarra do artista boêmio, imortalizada no romance, no teatro, na música e na tradição popular - julga que
pode ombrear-se com a grandeza capitolina dos ilustres varões que por lá passaram ou que ainda ministram às gerações que se sucedem edificantes
lições de verdadeira sabedoria.
É assim que pretende convencer aos respeitáveis ministros de que o seu crime é de calúnia e não
de injúria, como se se dirigisse a magistrados simplórios ou ignorantes. Acha ele que caluniou e não injuriou os querelantes, porque a calúnia
é a atribuição de um crime a alguém indicado em termos fora de dúvida.
Pondo de lado a deselegância da frase, indesculpável em quem se blasona de escritor correto e
brilhante, examinemos o fundamento de sua proposição. O artigo que deu lugar à queixa diz: "Mancomunados, segundo se afirma, com os
diretores do Banco União de São Paulo, e aproveitando a precária situação desse estabelecimento, organizaram o complô do qual deveria
resultar a apropriação, pelos quadrilheiros, da referida fábrica".
Ora, em todos esses vocábulos pesadamente desaforados, em todas essas expressões grosseiramente
injuriosas da reputação dos querelantes, não se vê a imputação de nenhum crime indicado em termos fora de dúvida. O que aí se vê, denunciando uma
índole covarde e não um caráter digno e brioso, é a vaga expressão segundo se afirma, isto é, o boato anônimo, o mexerico, o
diz-que-diz-que, que não pode gerar a convicção no espírito dos homens de bem.
O artigo não afirma que os querelantes se mancomunaram para a prática do delito argüido;
limita-se a registrar, de forma vaga, que, segundo se afirma, houve essa mancomunação.
Além disso, mais adiante se diz, textualmente, o "complô do qual deveria resultar a
apropriação". Ora, o verbo dever está no condicional, por conseguinte não houve termos precisos, categóricos, fora de dúvida, imputando de
modo peremptório, certo e concludente um fato criminoso a quem quer que seja. Da organização de um complô, que, segundo se afirma,
deveria resultar uma apropriação - é tudo quanto pode haver de menos positivo e de mais vago numa expressão da nossa língua.
Se, para que exista o crime de calúnia, é mister que "a imputação verse
sobre um fato preciso e determinado, especificado com suas circunstâncias de tempo e de lugar, feita com tal clareza que sobre ele possa ser
produzida a prova da verdade ou falsidade", é evidente que o dr. Spencer Vampré, nos artigos que inspirou ao jornal do Rio e que depois reproduziu
na imprensa daqui - não caluniou e sim injuriou os querelantes, que muito regularmente o processaram, vendo a sua causa amparada pela brilhante
sentença do digno juiz da 4ª Vara Criminal.
III
Mas não é só do texto citado nas Razões, e por nós reproduzido no editorial de ontem, que
se verifica não ter havido, por parte do querelado, a imputação de um fato criminoso aos querelantes, mas sim a imputação de fatos ofensivos do
seu decoro, da sua reputação e da sua honra.
Dos próprios títulos do artigo em questão ressalta nitidamente a veracidade da nossa afirmativa.
Lá se fala, em gordos tipos, destinados a fazer escândalo em torno do caso, de modo a impressionar o juiz da falência, intimidando-o com o clamor
de uma opinião provocada artificialmente pelos interessados - na "grossa bandalheira tramada na sombra, e que se acha em via de realização".
E no final do artigo, conclui-se pela convicção de que "o Governo e a Justiça de São Paulo não permitirão que se consuma a indecente negociata".
As frases compostas em grifo são concludentes: o dr. Vampré não imputa aos negociantes que o
processaram fato algum que a lei qualifique crime. Ele apenas afirma que há uma negociata em via de realização, e espera que o Governo e a Justiça
obstem a que ela se realize.
Se, portanto, não os acusa da prática de um ato criminoso, e sim de que eles tramam na sombra,
dramaticamente, a realização desse ato - segue-se que houve injúria e não calúnia, porque para que o fato seja determinado precisamente com todas
as circunstâncias de tempo e de lugar, é mister que se tenha consumado.
Ninguém pode precisar as circunstâncias de um delito que ainda não foi cometido; portanto, o que
o querelado podia, quando muito, era dizer que tinha a certeza de que os querelantes praticariam o crime previsto no artigo 170, §§
8 e 10 da Lei de Falências, mas isso, por falta dos elementos característicos da calúnia, é apenas injúria.
O Tribunal Civil e Criminal do Rio de Janeiro, em Acórdão de 23 de junho de 1898, decidiu que
"não há crime de calúnia quando se imputar a alguém a certeza de que praticaria dados fatos qualificados crimes, porque o elemento
primordial deste crime é a imputação de um fato determinado e positivo, previsto na lei penal".
Nem mesmo se trata de uma tentativa, porque, ainda que fosse verídico o fato imputado aos
ofendidos, e que tal fato tivesse tido começo de execução, seria preciso, para haver a figura jurídica da tentativa, que a execução não se
consumasse por circunstâncias independentes da vontade do criminoso.
Ora, o sr. dr. Spencer Vampré apenas avançou, com a leviandade própria de seu temperamento
desabrido, que os querelantes estavam em via de realização de um fato que a lei qualifica crime; não provou, no artigo em debate, que tal crime
tivesse sido consumado, ou, tendo tido começo de execução, deixasse de ser praticado por circunstâncias alheias à vontade dos criminosos, como
tais apontados por ele à vigilância do Governo e à severidade da Justiça de S. Paulo.
Desde, pois, que não houve a falsa imputação de um crime, e nem sequer de uma tentativa,
segue-se que o juiz criminal julgou muito bem o feito, condenando o sr. dr. Vampré por delito de injúrias, visto como para o característico da
calúnia faltava, como sobejamente provamos, o elemento primordial que é a imputação precisa de um fato positivo e determinado.
Prosseguindo na sua precária argumentação, que não raro se torna absurda, como a nossa análise o
irá demonstrando paulatinamente, clama o dr. Vampré contra a injustiça praticada pelo juiz da 4ª Vara Criminal, que o condenou, por dois delitos
distintos, quando, na sua opinião, o crime por que responde teria sido praticado pelo mesmo fato e com uma só intenção, o que constitui um só
delito continuado.
E cita a propósito um Acórdão do Tribunal Civil e Penal do Rio de Janeiro, o qual, ao contrário
do que supõe, não tem a menor paridade com o seu caso, segundo veremos em seguida.
Francisco Scarpa & Filho e Pereira Ignacio & Cia., ofendidos na sua reputação e na sua honra,
por um editorial da Época, do Rio, de cuja reprodução em S. Paulo assumiu a inteira responsabilidade legal o dr. Spencer Vampré, moveram
contra este a competente ação criminal. Trata-se de dois delitos distintos e não de um só delito continuado.
Se o dr. Vampré tivesse injuriado o mesmo indivíduo em temo e lugar diferentes e sucessivamente,
praticaria um só delito continuado pela unidade da intenção e seu fim. É esse o caso do Acórdão do Tribunal do Rio, por ele citado. A firma Pupo
de Moraes & Cia. processou certo indivíduo por causa de uma série de artigos em que ele se referia, ora àquela firma, ora às pessoas que a
compõem. Não contente com isso, um dos sócios competentes da mesma firma, José Martins Polo, deu queixa-crime contra o querelado por causa dos
mesmos artigos. Isso importaria, efetivamente, em ser o acusado processado e punido duas vezes pelo mesmo fato; o Tribunal por isso, absolveu-o.
Tal, porém, não é o caso atual. Aqui, são duas firmas comerciais
diversas que, injuriadas em um mesmo artigo, movem contra o injuriador a ação a que cada uma delas tem direito em face da lei. Absurdo seria que,
por terem Francisco Scarpa & Filho procurado desafrontar-se da injúria que lhes foi assacada, ficassem Pereira Ignacio & Cia. inibidos de proceder
também em defesa de sua honorabilidade comercial gravemente e publicamente enxovalhada pelo dr. Spencer Vampré.
IV
A nossa vitoriosa argumentação tem demonstrado, sem a menor sombra de dúvida, que o dr.
Spencer Vampré difamou e não injuriou os honrados querelantes, reproduzindo e encampando as graves ofensas do editorial da Época.
Se eles, por erro profissional dos respectivos patronos, dessem queixa contra o irascível
advogado, pelo delito previsto e punido no artigo 315 do Código Penal, arriscavam-se a ver perdidos seus esforços e malograda a reparação que
visavam, pois a anulação do feito seria fatal.
Mas, para que se não dissesse que pedindo a capitulação do crime naquele artigo, eles o que
queriam era forrar-se habilmente à prova dos fatos, os dignos comerciantes permitiram-na liberalmente, e com tal amplitude e franqueza foi ela
produzida na audiência do juiz da 3ª Vara Criminal, que o próprio querelado se jacta de tê-la feito "da maneira mais cabal".
Se, pois, essa prova foi tão cabal como nas suas Razões afirma, porque - repetimo-lo - quer o
dr. Vampré que a instância superior anule o processo com o fundamento de que o crime que cometeu é de calúnia e não de injúria, é da competência
do Tribunal do Júri e não das atribuições privativas do Juízo singular?
Diz ele que é para poder defender-se mais eficazmente e poder produzir mais convenientemente a
prova de sua imputação. Mas se a prova, perante o juiz, já foi cabal, conforme assevera, porque é que só no Plenário pode ele defender-se
completamente do crime pelo qual responde?
A verdade é esta - e é bom repisarmo-la ainda uma vez - o dr. Spencer Vampré quer ir a júri para
obter da proverbial benevolência dos jurados paulistanos a absolvição que dificilmente lhe poderá ser concedida pela reta decisão dos juízes
togados.
No artigo editorial da Época, que já analisamos circunstanciadamente, não há indicação
alguma de fato criminoso atribuído precisamente a alguém: só agora, acobertado pela irresponsabilidade da defesa, o querelado afirma, clara e
positivamente, nos autos, aquilo que insinuou, vaga, imprecisa e covardemente, nas publicações da imprensa. O seu delito é, pois, de injúria e
como tal foi ele condenado e esperamos que a sua condenação seja confirmada pela câmara que tem de conhecer da apelação que lhe foi imposta.
De todos os recursos lança mão o querelado para refugir à responsabilidade do crime cometido.
Entende ele, por exemplo, que na sua conduta fora dos autos não houve dolo, mas animus defendendi. O seu intuito não foi caluniar ou
injuriar e sim despertar a atenção da Justiça para o conluio tramado contra os interesses dos credores da massa. Ora, o sr. dr. Spencer Vampré era
advogado de alguns deles e como tal funcionava no processo de falência, podendo, pois, usar, como de fato usou, aliás infrutiferamente, de todos
os recursos legais perante o juiz processante, reclamando contra os abusos e as irregularidades que, segundo a sua opinião, estavam sendo
praticadas no correr do feito, com menoscabo dos direitos de seus constituintes.
Vendo, porém, que o dr. juiz da 1ª Vara Comercial não achava procedentes suas reclamações e as
indeferia, com altas razões fundadas na lei e na jurisprudência, lembrou-se de promover na imprensa jornalística uma forte campanha de escândalo,
não apenas "para levantar o torpor do juiz", como assevera - o que já constitui uma insinuação atrevida e desairosa aos créditos do magistrado
impoluto -, mas, na verdade, para amedrontá-lo e ver se, pelas imposições do terror, conseguia, em prol de seus clientes, o que não pôde obter com
os fracos recursos de sua inábil dialética, antes própria de um leguleio pouco letrado do que de um jurista famoso, laureolado pelo seu diploma,
pelas suas obras e pelo seu concurso para professor oficial.
É aqui azado salientarmos o topete de que tem ele dado desastradamente reiteradas provas.
Condenado pelo juiz criminal à pena de prisão por crime de injúrias, declara que se defendeu da maneira mais cabal e que o juiz condenou-o porque
não leu os autos - lançando assim malévolas suspeitas sobre a integridade moral do julgador.
Repelido pelo juiz comercial, por cuja vara correu a falência do banco, em todas as suas
tentativas de tumultuar o processo, tirando proveito disso, confessa que foi preciso lançar mão do jornalismo escandaloso para despertar o torpor
daquele magistrado - que é, aliás, uma das glórias mais límpidas de nossa judicatura pela sua integridade nunca posta em dúvida, pelo seu saber, e
pela sua orientação esclarecido e calmo.
Alega o dr. Vampré que agiu, não para injuriar ou caluniar propositalmente os querelantes, mas
para defender os interesses cujo patrocínio seus clientes lhe tinham confiado. E prova a sua alegação com o testemunho do dr. Vicente Ráo, seu
confrade de diretoria e de oratória nas sessões magnas do Instituto dos Advogados; e o do dr. Pedro Soares de Araujo, membrudo latagão de fortes
músculos e inteligência débil, seu colega de escritório, seu amigo e seu comparsa, a boquiabrir-se de espanto e embasbacada admiração pelo
esplêndido talento, pelo robusto preparo e pelas épicas virtudes do dr. Spencer Vampré - tipo modelar, irrepreensível protótipo, arquétipo
perfeito da mais completa sabedoria e da mais íntegra moralidade de costumes privados e públicos, providencialmente surgido no grêmio da sociedade
paulista para estímulo constante e eterno exemplo das gerações presentes e futuras!
Não! O querelado, inspirando o editorial d'A Época, e reproduzindo-o no Estado,
sob sua direta responsabilidade pessoal, não visou apenas defender os direitos de seus constituintes ou os interesses de sua banca forense - banca
fatídica e fatal, onde só entram causas perdidas ou em tais se transformam as boas causas que para lá se encaminham por acaso - como se verá mais
tarde elo estudo especial que faremos da incurável jetattura que acompanha o dr. Spencer Vampré como advogado, e leva a um remate infeliz
as questões patrocinadas por ele.
Não! inspirando aquele editorial e reproduzindo-o na imprensa paulista, o seu escopo não foi
defender nobremente direitos de terceiros; mas aterrorizar pela injúria grosseira, pelo espalhafato e pelo escândalo, o juiz do feito, o curador
das Massas Falidas, os diretores do banco e os querelantes, a fim de conseguir para o seu escritório deserto um inglório triunfo obtido à custa de
respeitáveis interesses alheios, e que lhe granjeasse alguns incautos fregueses.
A sua condenação, portanto, foi um ato imparcial de justiça e fundada
nas mais imperativas prescrições do nosso Direito Positivo.
V
No triste desespero em que se debate por sua culpa exclusiva - lança mão o dr. Spencer Vampré de
argumentos verdadeiramente pueris, por si sós bastantes para demonstrar o quanto se tornou difícil a sua defesa e como a sua causa é realmente má.
Se a Justiça o amparasse, se razões jurídicas ou morais militassem a seu favor neste pleito, é certo que os argumentos lógicos, os raciocínios
claros e as demonstrações eloqüentes afluiriam ao bico de sua pena, independente da maior ou menor habilidade com que ela fosse manejada.
Um dos seus esforços mais gigantescos, porém inanes, tende a provar que não existe
responsabilidade na reprodução de artigo alheio, embora seja sabido - e ele o repete - que quem reproduz injúria por sua vez injuria. Acha que,
tendo mandado republicar no Estado o editorial da Época, sem lhe acrescentar coisa alguma de seu, aumentando-lhe apenas a
publicidade, absolutamente não infringiu a lei penal. E acrescenta que nas seções livres de nossa imprensa, as reproduções costumam fazer-se sem
nenhuma responsabilidade - o que contestamos formalmente.
Todos os nossos jornais exigem a responsabilidade prévia das transcrições feitas na seção paga,
embora aconteça muitas vezes que, por deferência para com determinada pessoa e confiança na sua honorabilidade, prescinda-se dessa prática no ato
de aceitar o artigo. No momento, porém, em que o jornal é chamado a exibir o original para a propositura de uma ação-crime, manda-se procurar a
pessoa em questão para assumir a respectiva responsabilidade. Foi isso, provavelmente, o que sucedeu com o dr. Vampré.
A prova, afirma desvairadamente o querelado, de que os querelantes, movendo-lhe o processo em
que foi condenado, não visavam desagravar sua honra ofendida, mas intimidá-lo, é que eles não ofereceram queixa contra o verdadeiro autor do
artigo, o redator ou colaborador da Época.
Esquece-se acaso o dr. Vampré que o responsável pela publicação original no órgão carioca é o
deputado federal Vicente Piragibe e que as imunidades parlamentares inseparáveis de suas funções constituiriam um formidável embaraço à ação dos
querelantes? Foi só por iso que eles também não agiram contra aquela folha ao mesmo tempo que contra o dr. Vampré.
Além disso, eles sabiam que se a pena que retraçou as injúrias estava lá, o cérebro que as
inspirou estava aqui; que se o autor material que deu expressão literária às infâmias pertencia à redação carioca, o autor intelectual que as
recebeu residida nesta capital; que o braço agira no RIo mas a principal cabeça responsável elaborara em S. Paulo o tremendo libelo.
A Época, preocupada com os variados problemas que agitam a sociedade política da capital
brasileira, não teria notado o que se passa no foro comercial de S. Paulo, se não houvesse interessados que apelassem para a sua intervenção no
caso de que nos ocupamos.
O que cumpria, portanto, aos querelantes, em defesa de sua reputação e de sua probidade, era
punir o perverso inspirador das ofensas gravíssimas com que tinham sido miseravelmente enxovalhados. Em uma palavra: o que lhes importava,
sobretudo, era dar ao dr. Spencer Vampré uma lição magistral, que fosse ao mesmo tempo uma completa reparação pelas injúrias por cuja transcrição
e maior divulgação se responsabilizara aquele advogado.
É pasmosa a filáucia com que o querelado assevera que, pela transcrição do artigo injurioso, não
é passível de penalidade alguma, porquanto o nosso Código só pune o autor, o dono da tipografia, o editor e o distribuidor. Isso seria burlar
inteiramente a responsabilidade pelos delitos de imprensa. Para refugir a tal responsabilidade, seria bastante, por exemplo, que o indivíduo A,
querendo ofender a reputação de seu amigo B, encomendasse ao jornalista C, ministrando-lhe dados e pormenores, um artigo escachante
num qualquer jornaleco de restrita circulação. Para aumentar a publicidade desse artigo - como no caso em questão fez e confessa o dr. Spencer
Vampré - mandaria reproduzi-lo num jornal mais lido, assumindo, perante a redação respectiva, a responsabilidade devidamente assinada.
Chamado a juízo, A declinaria covardemente da responsabilidade que assumira, alegando
que, diante da letra da lei penal só é punível o autor do artigo, e que esse autor não era ele. Não se pode conceber escapatória mais cínica, nem
interpretação mais imoral da insofismável disposição do Código.
Felizmente, a nossa jurisprudência firmou inabalavelmente opinião contrária a essa: quem
reproduz injúria, por sua vez injuria, como confessa o querelado e é geralmente sabido; e quem, reproduzindo uma injúria, nomeia o seu autor
original, nada faz senão "nomear o seu sócio malefício". Reproduzindo no Estado o artigo injurioso da Época, o dr. Spencer
Vampré constituiu-se, pois, autor direto da injúria reproduzida; sendo, portanto, passível de penalidade segundo as disposições do artigo 22 do
Código.
Na obsessão de ver no seu crime um delito continuado - e já pulverizamos anteriormente a sua
frágil argumentação a respeito - pensa ele que, nas duas publicações, a da Época e a do Estado, não há dois delitos, mas dois crimes
sucessivos, ligados por uma só intenção. É o inverso da hipótese que ele invocou a seu favor, à página 11 das Razões.
Lá, dizia ele que, cometido contra duas personalidades distintas, mas com uma só intenção, o
crime constitui um delito continuado, e não comporta, pois, a imposição de duas penalidades diversas. Aqui, ainda se trata de delito continuado,
apesar de que os autores são dois, agindo em lugares diferentes, um no foro de S. Paulo e outro no Distrito Federal.
De maneira que, pela sua lógica disparatada, um jornalista escreve em Pernambuco certa verrina
contra um cidadão residente em S. Paulo, a propósito de um acontecimento qualquer ocorrido aqui. Tempos depois, um outro cidadão, interessado
nesse acontecimento, transcreve, por sua conta e risco, em jornal de S. Paulo, o artigo do órgão pernambucano. Chama a isso o dr. Vampré delito
continuado.
Entretanto, a figura desse delito dá-se, na douta opinião de João Monteiro, "se o criminoso
reiterou a prática de delitos violadores do mesmo direito protegido pela mesma prescrição da lei penal, sem que tais atos, por maior que seja a
respectiva série, constituam outros tantos crimes".
Ora, no caso presente não houve série sucessiva de injúrias; o redator da Época publicou
um artigo e nisso ficou; o dr. Vampré reproduziu tal artigo e parou aí. Nenhum deles reiterou a prática do delito. Mas se houve um só delito
contínuo, pelo qual ambos são co-responsáveis, segue-se que também houve entendimento prévio entre o querelado e a redação da Época, e a
tal ponto, que o mesmo querelado entende que, reproduzindo o artigo em S. Paulo, nada mais fez que reiterar a prática de um ato delituoso
anterior.
É evidente que foi o dr. Vampré o autor do artigo, a cuja
responsabilidade procura agora fugir. Bem agiram, pois, os srs Pereira Ignacio & Cia. e Francisco Scarpa & Filho em chamá-lo severamente a contas.
VI
Passa, de seguida, o dr. Spencer Vampré a narrar, a seu modo, a verdade dos fatos; e começam í
os seus ferozes ataques à probidade pessoal e profissional dos dignos e ilustres irmãos Carlos e Sylvio de Campos - aquele, diretor do Banco
União, e este, Curador Fiscal das Massas Falidas, funcionando, em razão e por dever do cargo, no processo da falência do citado banco.
Não há dúvida que a verdade dos fatos, expressamente autorizada pelo querelante, exclui a
existência da injúria ou da calúnia, segundo doutrina, em frase sentenciosa, o querelado. Mas é preciso que a verdade fique devidamente provada, o
que absolutamente não se deu no caso atual, como veremos pouco a pouco.
O dr. Spencer Vampré alveja de preferência, nas suas criminosas agressões, ao dr. Sylvio de
Campos. Compreende-se bem essa predileção. O distinto representante do Ministério Público, em sua qualidade de Curador das Massas Falidas, é
sempre um enérgico opositor aos interesses ilegítimos dos que pensam fazer das falências no foro de S. Paulo uma indústria lucrosa.
É natural que contra ele convirjam os ódios dos que vêem malogradas as suas tentativas
indecorosas de realizar esplêndidos negócios à custa da boa fé dos credores das massas.
À Banca do querelado, pouco freqüentada por clientela abonada e respeitável, e ordinariamente
infeliz no remate judicial das causas que lhe são entregues, convinha afastar do seu posto de honra, averbando-o de suspeito, o íntegro dr. Sylvio
de Campos, a cuja competência, de que tem dado tantas provas reais, e a cuja honorabilidade, por todos reconhecida, estava confiada a guarda dos
magnos interesses de todos os credores do Banco.
Muito convinha ao dr. Vampré esse afastamento, que redundaria em grande notoriedade para o seu
nome de advogado e em reclame estrondosa para o seu escritório que vegeta ingloriamente à margem do movimentado e brilhante foro paulistano.
Dos autos se colige que, argüindo de suspeição o Curador Fiscal, o dr. Spencer Vampré não
advogava sequer os interesses dos credores de que era procurador - os srs. Richard Winchello & Cia., e Cunha, Irmão & Cia., porquanto estas firmas
logo que tiveram conhecimento de tão condenável atitude, cassaram-lhe as procurações que lhe tinham dado e passaram novas procurações a outros
advogados.
O querelado agiu, pois, nesta emergência, movido apenas por meros sentimentos de natureza
pessoal que só podemos explicar pela necessidade de fazer barulho em torno de seu esquecido escritório forense, apelando para ele a atenção
especial do comércio, da imprensa e do público em geral.
Mas, por quê argüiu ele de suspeito ao dr. Sylvio de Campos? Porque o Curador Fiscal: 1º) é
irmão e sócio de escritório do dr. Carlos de Campos, diretor-presidente do Banco União; 2º) é grandemente interessado na falência do mesmo Banco
do qual ele próprio, sua digna mãe e seus irmãos são acionistas; 3º) é amigo da firma Pereira Ignacio & Cia. e de Francisco Scarpa,
banqueteando-se publicamente com este, quando ainda se achava em andamento o processo da referida falência. Examinemos, tão rapidamente quanto nos
for possível, esses artigos.
Em que se baseou o querelado para argüir de suspeito o Curador Fiscal? Em dispositivo de lei que
não se adjetiva com o caso em discussão. Procurando turbar propositalmente a verdade, o sr. Spencer Vampré quis aplicar a um processo comercial de
falência disposições legais relativas simplesmente a casos próprios do processo criminal.
Efetivamente, a lei só impede de servir, por motivo de suspeição, os funcionários do Ministério
Público com juiz ou escrivão que seja seu pai ou filho, sogro ou genro, irmão ou cunhado durante o cunhadio, tio e sobrinho e tio co-irmão.
Ora, o dr. Sylvio de Campos não se encontrava em nenhum destes casos em relação ao juiz e ao
escrivão que funcionaram no feito, e, portanto, não havia motivo algum legal para afastá-lo do exercício de suas funções naquele momento. E tanto
isso é verdade que o honrado magistrado que presidiu o processo, acolheu e achou procedente as razões em que se fundou o Curador Fiscal para
recusar a suspeição argüida contra ele.
Realmente, os interesses gerais estão bem defendidos, observando-se apenas os motivos de
suspeição determinados no artigo 40 do Dec. de 23 de setembro de 1904, e que citamos acima. Só mesmo nas circunstâncias ali previstas, poder-se-ia
dar de suspeito o representante do Ministério Público. Uma vez, porém, que o juiz não é parente seu, em qualquer dos graus assinalados na lei, a
suspeição deixa de existir, porque o magistrado dispõe francamente da mais ampla liberdade para impedir que o Curador das Massas intervenha,
protegendo irregularmente interesses lesivos dos direitos alheios.
Se, pelo fato de ser irmão de um dos diretores do banco, o dr. Sylvio de Campos tentasse, em
prejuízo dos credores legítimos, favorecer inconfessáveis interesses patrocinados por aquele, claro é que o íntegro juiz - que com ele não tem
parentesco algum - oporia as suas decisões a quaisquer tentativas feitas em semelhante sentido.
Entretanto, tal não se deu. Não só o dr. juiz da 1ª Vara Comercial nada viu de censurável na
conduta do dr. Sylvio de Campos, no decorrer do processo, como teve ocasião de indeferir, dentro da lei e de acordo com as mais escrupulosas
prescrições da moral jurídica, todos os recursos de que lançaram mão sucessivamente os que se esforçaram debalde por afastar de suas funções o
honrado Curador das Massas Falidas.
A não ser que o dr. Spencer Vampré pense que o dr. Miguel de Godoy estava também mancomunado com
os quadrilheiros concertados para assaltar a massa do banco falido - temos que concluir pela absoluta, pela inatacável correção com que se houve
em todas as fases do processo o dr. Sylvio de Campos, apesar de ser seu irmão diretor do referido banco.
Devemos notar de passagem que o dr. Carlos de Campos nem mesmo funcionou no feito, porque o
representante legal do banco perante o juiz e perante os credores não era ele, mas sim o diretor-gerente, a quem cumpria prestar todos os
esclarecimentos e informações que se fizessem mister.
Não podendo amparar a suspeição argüida no decreto citado, de 23 de setembro de 1904, cujo
artigo 40 é peremptório e não admite interpretações latitudinárias e sofísticas, o dr. Spencer Vampré foi socorrer-se, como já dissemos, de
disposições aplicáveis somente ao processo criminal, estabelecendo tumultuariamente uma confusão entre as duas fases distintas em que a macha de
qualquer falência se divide.
No caso do Banco União, tratava-se, então, e tratou-se até final, do processo comercial da
falência, e as suspeições que lhe são relativas estão taxadas em lei; nada tinha a ver com esse caso o artigo 75, n. 1º, do Código do Processo
Criminal, pois não se tratava absolutamente de processo-crime.
Semelhante artigo proíbe, de fato, a denúncia de um irmão contra um irmão, mas isso já é no
terreno da ação-crime, e não na fase propriamente comercial da falência.
Se, à proporção que o feito corresse, o dr. Sylvio de Campos viesse a verificar que a falência
caminharia para a fase criminal, está claro que se daria de suspeito para não denunciar seu próprio irmão. E para assim proceder nem preciso seria
que lhe viessem pôr diante dos olhos um artigo do Código do Processo, feito apenas para servir de orientação às inteligências acanhadas e aos
corações estreitos: a nobreza natural de seus sentimentos fraternos, e não o dispositivo da lei, é que o faria retirar-se do pleito, para não
oferecer denúncia contra seu irmão.
Só as almas pouco sensíveis, ou dominadas pelos mais grosseiros
instintos, é que procederiam de modo contrário, se tal lhes fosse permitido; como, no caso presente, o dr. Spencer Vampré, que, apesar de dizer,
aliás falsamente, que é aparentado com os drs. Carlos e Sylvio de Campos, não hesitou em romper os delicados laços das amoráveis relações de
família, para enxovalhar com os mais infamantes epítetos aqueles dois preclaros moços que tanto nobilitam e honram a cultura paulista, pelo seu
talento, pelo seu preparo e pela notória respeitabilidade de seu caráter privado e público.
VII
O primeiro articulado do famoso libelo que o dr. Spencer Vampré ofereceu, na imprensa do Rio e
reproduziu na de S. Paulo, contra a honorabilidade do dr. Sylvio de Campos, como Curador Fiscal das Massas Falidas, ficou inteiramente reduzido a
pó pela triunfante argumentação do nosso artigo anterior.
De fato, sob o tríplice ponto de vista da moral comum, da ética jurídica e das determinações
categóricas de nosso Direito Positivo - a conduta daquele zeloso representante do Ministério Público foi absolutamente irrepreensível e, como tal,
sustentada, em vários e fundamentados despachos, pelo integérrimo juiz da 1ª Vara Comercial, a quem coube presidir, com a sua costumeira lisura, o
processo da falência do Banco União.
Nem os princípios elementares da moral comum, nem os mais rigorosos ditames da ética jurídica,
nem disposição alguma da lei relativa à matéria - exigiam que ele aceitasse a suspeição de que fora argüido, sem nenhum motivo razoável, aceitável
ou plausível.
Fraca prova de sua integridade profissional daria ele, se se julgasse realmente suspeito para
funcionar na causa, unicamente porque seu irmão era um dos diretores do instituto falido, muito embora não lhe competisse intervir no feito, visto
como, de acordo com as prescrições da lei, quem devia funcionar como representante do banco era o seu diretor-gerente.
Confundiu-se propositalmente, como provamos, o processo comercial da falência com o seu processo
criminal. Ora, a quebra do Banco União, enquanto não saísse do primeiro processo,não determinaria incompatibilidades que só existem entre o
representante do Ministério Público e o juiz.
Só na fase criminal, conforme já o expusemos limpidamente, é que o curador seria incompatível
para funcionar porque a lei lhe veda o direito de denunciar seu irmão. Houve de fato, nos autos, denúncia de irregularidades que se diziam
praticadas em detrimento dos interesses dos credores. Mas ninguém provou os fatos denunciados e o processo criminal da falência foi mandado
arquivar por falta de base, tendo a justiça agido livre, desembaraçada e sobranceiramente.
O dr. Spencer Vampré, escorraçado de todos os lados como um audaz cachorrete, não se deu por
vencido e continuou a argüir ao Curador das Massas, de suspeito no processo comercial, pelas razões que resumimos nos três articulados a cuja
análise estamos procedendo, mas por falta de base para fundamentar sua argüição arbitrária e insubsistente, foi apoiar-se num artigo do Código
do Processo Criminal que só é aplicável nas ações-crimes.
Por esse motivo, o digno juiz da 1ª Vara Comercial teve que indeferir todas as petições
tendentes a confundir num só os dois aspectos que caracterizam diversamente a marcha dos processos de falência em nossa organização judiciária.
Fora dos autos, nas levianas cavaqueiras das ruas, no burburinho das rodas forenses, onde se
agasalham os mais estúpidos boatos, e nas colunas do jornalismo industrial, é que o sr. dr. Spencer Vampré prosseguiu afirmando a existência do
tal complô organizado para a prática de um ato criminoso, cuja prova nunca fez.
Abandonado literalmente de todos os recursos legais, porque todas as suas tentativas falharam
estrondosamente, persistiu ele em manter-se imutável na sua opinião, já revelada no escândalo jornalístico que provocou e que era perfeitamente
escusado em quem se achava tão cheio de razões.
É que ele sabia perfeitamente que nada ocorrera de anormal no processo e que lhe seria
absolutamente impossível, por falta de elementos, obter qualquer sucesso em sua fase criminal.
Pois se agora mesmo, quando trata de defender-se energicamente para evitar a cadeia, que bem
merece, e que o espera, pela condenável atitude que assumiu no pleito - ele não conseguiu exibir uma única prova da criminalidade atribuída
perversamente ao Curador Fiscal, ao chamado presidente do banco e aos querelantes - pode alguém acreditar que as provas indispensáveis pudessem
ser feitas nos autos da falência? O que dizem no processo por injúria as suas testemunhas, não foi decerto diverso do que disseram no processo
criminal da falência.
O dr. Vicente Ráo acha que o Curador das Massas Falidas é um funcionário digno, embora, pelos
motivos alegados para a sua suspeição, julgue que dificilmente, ou talvez de forma alguma, os direitos dos credores possam ser respeitados.
É, como se vê, um depoimento contraditório. Se o dr. Sylvio de Campos é um funcionário digno,
porque, então, supõe o dr. Vicente Ráo que possa ele cometer a indignidade de lesar, em proveito seu e de sua família, os respeitáveis interesses
dos demais credores?
O dr. Siqueira Campos Filho nada afirma de ciência própria, altivamente, decididamente, com a
consciência de quem fala a verdade. Limita-se a afirmar que se dizia abertamente a coisa, que o fato de o dr. SYlvio não se declarar
suspeito faz SUPOR que ele era interessado particularmente em favorecer a seu irmão; que era corrente que a massa daria para o pagamento
integral de todos os credores etc.
O dr. Carvalho Borges nada refere sobre a aludida mancomunação, limitando-se a dizer que
apresentou contra o Curador Fiscal artigos de suspeição, os quais, apesar de não encontrarem apoio em lei expressa, deviam por analogia ser
aceitos; mas o juiz do feito, cuja competência e cuja integridade a ninguém é lícito pôr em dúvida, não foi do mesmo luminoso parecer da
testemunha, e recusou a suspeição, o que forçou o sr. dr. Vampré a recorrer a um órgão carioca, conhecido pela facilidade com que empreita
campanhas de difamação bem remuneradas pecuniariamente.
O dr. Pedro Soares de Araujo, companheiro do querelado, de cujos azares forenses participa
logicamente, pois boa parte de responsabilidade lhe cabe nas soluções desastrosas que têm tido as causas entregues ao patrocínio de tão fatídico
escritório - nada fala sobre a tal fantástica mancomunação e apenas expõe o seu juízo pessoal quanto à suspeição do dr. Sylvio de Campos para
servir na falência de um instituto de que é presidente seu irmão.
Mas isso é apenas uma opinião - e opinião refutada vantajosamente pelo Curador das Massas e
repelida pelo magistrado que presidiu o importante processo.
O dr. Francisco Morato, a cujo parecer temos que nos referir depois especialmente, também não
faz a menor alusão ao complô criminoso, organizado para o assalto aos bens do falido; somente repete a opinião que emitira no citado Parecer,
sustentando que o dr. Sylvio de Campos era suspeito para funcionar na causa.
Ora, são estas testemunhas que o dr. Vampré apresentou em sua defesa na queixa-crime, em que foi
condenado. Elas não provaram nenhuma das suas afirmativas, relativamente ao projetado assalto à massa do banco, e por isso foi-lhe merecidamente
aplicada a penalidade imposta pelo Código aos agressores da reputação alheia.
Elas mesmas é que o dr. Spencer Vampré teria de apresentar no processo da falência, para provar
a sua temerária denúncia de que uma quadrilha de assaltantes tinha sido organizada com o fim de adquirir, a preço vil, o rico patrimônio do banco.
Haveria acaso algum juiz tão desarmado de critério que, apreciando os depoimentos de tais
testemunhas, concluísse pela criminalidade de quem quer que seja no processo?
Examinamos agora o segundo articulado do libelo: o dr. Sylvio de Campos
é grandemente interessado na falência do banco, do qual ele próprio, sua digna mãe e seu irmão são acionistas.
VIII
O articulado de que o dr. Sylvio de Campos, por ter grandes interesses pessoais e domésticos
ligados à falência do Banco União, visto como ele próprio, sua veneranda mãe e seus dignos irmãos são possuidores de vultoso número de ações
daquele instituto - não precisa que o destruamos - o dr. Francisco Morato, presidente da Ordem dos Advogados desta capital, para cujo parecer
apelou confiadamente o querelado, incumbiu-se de fulminá-lo com a lógica de sua argumentação inflexível e serena.
É pasmoso que se lançasse mão desse Parecer como arma de combate contra a integridade do Curador
das Massas Falidas. O dr. Francisco Morato, respondendo à consulta que lhe foi feita, acha que a circunstância de ser aquele funcionário
interessado, pelos motivos expostos, no espólio do Banco, longe de prejudicar a sua ação, parece antes servir-lhe de estímulo a que melhor cumpra
os deveres de seu cargo em relação à falência de que se trata. É uma razão de peso, cuja procedência, não terá escapado certamente ao critério dos
que têm acompanhado este debate.
Para o presidente do Instituto dos Advogados só há um motivo sério de suspeição: é o fato de ser
presidente do banco um irmão do curador, o dr. Carlos de Campos. A suspeição aí é fora de dúvida, porque o art. 75, n. 1, do Código do Processo
Criminal, proíbe a denúncia de irmão contra irmão; e o dr. Sylvio de Campos poderia, pelo desenrolar dos acontecimentos, encontrar-se acaso nessa
dolorosa contingência. Apreciemos esse argumento máximo do Parecer.
Em primeiro lugar - o dr. Carlos de Campos não era presidente do Banco União, quando se tornou
patente a sua insolvabilidade. Na diretoria, s. exa. desempenhava o papel de consultor jurídico. Tendo, nas vésperas da quebra, o presidente
efetivo, em razão de doença que o impossibilitou do trabalho ativo por algum tempo, passado, em caráter temporário, o exercício do cargo ao dr.
Carlos de Campos, este é que requereu a falência, apesar de que nunca tivera nenhuma ingerência, a não ser consultiva, na administração do banco.
sua ação na presidência interina limitou-se a requerer a falência, não tendo s. exa. tomado
parte alguma no respectivo processo, onde quem representou o falido, de conformidade com a lei, foi o seu diretor-gerente.
O dr. Morato entende que a suspeição resulta apenas da posição que ocupava no banco o dr. Carlos
de Campos. Mas, nós já provamos, e parece-nos que de modo irrefutável, que a suspeição invocada só se daria no caso de passar o processo para a
sua fase criminal, e que o artigo 75 por ele invocado, só se aplica a tal caso.
Ora, o dr. Spencer Vampré, no seu prurido de espalhafato e de reclame, arrastou interessados a
conduzirem à fase criminal o processo de falência. Presentes os autos ao dr. Sylvio de Campos, este, com o pundonor e o brio que são ornamentos
essenciais de seu elevado caráter, deu-se imediatamente de suspeito. O juiz nomeou-o para substituí-lo o dr. José Augusto de Queiroz o qual,
examinando os fundamentos da denúncia, opinou pelo arquivamento do processo, por falta de base, de provas, de elementos quaisquer que pudessem
servir à ação da Justiça.
O magistrado julgador, conformando-se com o parecer do curador ad hoc, mandou que se
arquivasse toda aquela papelada inútil, onde, mais do que o amor do bem público e dos interesses alheios, transparecia o despeito dos advogados
sem clientela e sem nome emparceirados com os trampolineiros que se habituaram a locupletar-se com o espólio das massas outrora mal fiscalizadas.
Isto prova que o tal complô só existiu na cabeça desatinada do dr. Vampré, que quer agora, com
uma covardia digna de comemoração especial, fugir à responsabilidade criminal pelas agressões injuriosas com que malbaratou a reputação de
negociantes honrados e de colegas honestos, benquistos e bafejados pelas simpatias e pela consideração geral em que são tidos no meio paulistano.
O terceiro articulado, pela sua infantilidade, não merece que percamos longo tempo em apreciá-lo
detalhadamente. Pelo fato de ser amigo pessoal do sr. Francisco Scarpa e com ele banquetear-se publicamente - entende o nosso famigerado
jurisconsulto de repica-ponto, que o dr. Sylvio de Campos era suspeito para funcionar no processo.
É mais um motivo de suspeição de que não cogita a lei e que nem mesmo o dr. Francisco Morato,
por mais que folheasse as páginas do Código do Processo Criminal, por mais que compulsasse Avisos Ministeriais cobertos da poeira dos arquivos -
conseguiu descobrir para gáudio e proveito real dos descontentes.
De maneira que um representante do Ministério Público, um juiz, um ministro do Tribunal, têm que
viver vida monástica, em perpétua reclusão, sem relações exteriores com a vida social, porque, do contrário, seriam logo suspeitados, pelos
puritanos do nosso foro, de lesarem a justiça, em benefício particular dos seus amigos.
Entretanto, nós vemos todos os dias, para honra de nossa caluniada magistratura, os juízes de
todas as categorias decidirem contra os poderosos, contra o próprio Governo do Estado, ou da União, cuja graça e cuja apregoada onipotência
poderiam ofuscá-los, cegando-lhes a consciência e levando-os a decisões arbitrárias, injurídicas ou imorais.
Vemo-los defendendo o direito de pobres funcionários públicos, de colocação hierárquica
subalterna, contra a prepotência de administrações porventura arrogantes e despóticas. Por que supor que eles, que assim resistem, sem esforço, ao
possível desejo de ser agradáveis aos grandes, seriam incapazes de resistir às solicitações impertinentes de amigos pouco discretos?
E note-se que aquela frase "com o qual se banqueteia publicamente" indica, com evidente
perversidade, que o Curador das Massas Falidas leva a banquetear-se habitualmente com Francisco Scarpa, quando a festa, a que se refere a
fotografia junta aos autos, é um episódio singular nas relações existentes entre os dois estimados cavalheiros.
Reduzido às suas verdadeiras e minúsculas proporções o libelo do dr.
Spencer Vampré, encerraremos amanhã esta série de considerações.
IX
Quando o dr. Spencer Vampré, ainda jovem e com a alma tumultuando dos arrebatados ideais,
próprios da idade, veio para S. Paulo iniciar-se nos estudos superiores, trajava espantosamente uma sobrecasaca monumental, tecida de panos das
mais heterogêneas qualidades e dos mais variados matizes.
Sobre esses retalhos diversos cosidos em épocas várias, conforme o império das circunstâncias,
resplandeciam, como constelações, as manchas gordurosas cobertas do pó dos séculos.
A tão curioso vestuário juntava o dr. Vampré, como remate da mais suprema elegância, uma velha
cartola arrepiada, modelo arcaico desaparecido de há muito na voragem dos tempos transcorridos.
O seu aspecto, em que a preocupação do chic contrastava singularmente com os fiapos
sobrecasacais e a vetustez respeitável da cartola velha - atraía sobre a sua personalidade a atenção universal do nosso povo. As damas sorriam-se,
maliciosas e sarcásticas, ao verem-no passar, empertigado e teso, na sua pretensiosa galanice de janota mal enroupado; os homens olhavam-no com
admiração mesclada de piedosa benevolência; as crianças, tomadas de súbito pavor, fugiam para dentro das habitações, como quem foge ao diabo em
pessoa; as velhas octogenárias, encanecidas nas superstições religiosas, ao depararem-no, persignavam-se, faziam-lhe figas e acendiam velas bentas
nos oratórios domésticos, esconjurando-o, entre padre-nossos e ave-marias fervorosamente rezados; os garotos assobiavam-no e, ocultos no ângulo de
alguma esquina deserta, alvejavam com pedradas irreverentes aquela cartola...
Mas, apesar de sua toilette, ou antes, exatamente por causa dela, segundo se colige
imparcialmente dos fatos, o dr. Vampré conseguiu vencer com relativa facilidade os obstáculos que, de ordinário, se opõem à marcha, sempre
vagarosa, dos que não têm, para se impor ao público, nem notoriedade mental, nem função pública de relevância, nem posição vantajosa de fortuna.
Não obstante, sob a proteção misteriosa de sua cartola amarrotada e de sua rabona em frangalhos,
o modesto estudante, cheio de robusta e orgulhosa confiança em si mesmo, foi galgando aos poucos os degraus ascensionais que o guindariam à
cátedra de professor na Faculdade Paulista.
Fez-se tradutor juramentado, e muito embora se diga que as suas traduções confirmavam o
prolóquio italiano - traduttore tradittore -, arranjou clientela, recursos para estudar e formou-se em Direito.
A sorte continuou a bafejá-lo com a sua protetora simpatia e ele se viu, como numa mutação de
mágica, transformado em cidadão importante, em escritor jurídico, em homem de letras, em advogado, em eleitor, em sólida coluna da ordem social em
nosso meio.
O orgulho dominou-o, tresvairando-o; apossou-se dele o terrível delírio das grandezas. Pensou
que estava formidavelmente a cavaleiro sobre a sociedade paulista e que, moderno D. Quixote, abrasado, não de generosas utopias, como o herói
cervantino, mas de idéias utilitaristas e destruidoras -, transcendera gloriosamente em méritos provados a todos os seus concidadãos. Quem tinha
maior talento que ele? tão enciclopédico preparo? mais austeridade moral? princípios mais firmes e convicções mais retas? Ninguém.
Nisto, um garoto, que, pulando os mais cômicos trejeitos, absorvia-se na contemplação da sua
figura, gritou-lhe, de repente:
- Olha a cartola!
E desatou a correr.
Outro garoto, que se aproximava, atraído por aquele aspecto de bufarinheiro andrajoso, não se
conteve e atirou-lhe aos ouvidos, em plena praça pública, esta exclamação explosiva:
- Olha a rabona!
E celeremente escapuliu-se.
O dr. Vampré só então caiu em si. Tirou a cartola, e examinou-a, assombrado; olhou a sobrecasaca
ensebada e nauseosa, e ficou pasmo, diante de tanta porcaria acumulada no correr das idades. O hábito de longos anos não lhe tinha permitido
observar o quanto aquele vestuário e aquele chapéu de pelo estavam fora de seu tempo e das prescrições mais elementares da higiene. Sentindo-se
ridículo e humilhado, resolveu vestir-se à feição da época.
O orgulho perdeu-o. Com a mais negra ingratidão, despiu-se dos seus andrajos e da sua cartola -
os velhos e leais confidentes de seus pesares e de suas glórias, os dedicados companheiros de suas jornadas através do foro, das letras e do
professorado. E ei-lo que, do dia para a noite, com escândalo e geral surpresa, exsurge, de arrebate, em plena rua Quinze, envergando um fraque
todo liró, com um monstruoso girassol à lapela, e trazendo à cabeça um chapéu de coco, fabricado pelo Borsalino.
Data daí a sua decadência, a queda de suas aspirações, o malogro de sua carreira, a urucubaca
que o persegue. Toda a injustiça, como uma bala que volta de ricochete, recai sobre quem a pratica. A ingratidão, que cometera contra a sua
rabona e contra a sua cartola, tinha que estourar sobre a sua cabeça e refletir-se fatalmente sobre os seus destinos.
O azar fez-se então companheiro inseparável de sua vida. Um cliente é perseguido pela polícia e
preso, dentro do próprio escritório do dr. Vampré, no momento em que lhe passava procuração para defendê-lo. Fora de si, o advogado reage contra a
autoridade, é levado à Polícia Central, esbraveja, faz escândalo, toma atitudes épicas de mártir. Instaura processo contra a autoridade que,
segundo sua opinião, abusara do poder do cargo, e o juiz criminal nega-lhe razão, julgando improcedente a queixa. Em compensação, vai a júri o seu
constituinte e é condenado.
Mais tarde, duas firmas credoras do Banco União conferem-lhe mandato para defender seus
interesses na falência daquele estabelecimento. Ele, abusando do mandato, vai além dos poderes outorgados, pelo que os clientes cassam-lhe nos
autos as procurações que lhe tinham passado e dão novas procurações a outros advogados mais circunspectos.
Argüi de suspeição o curador que funcionava na referida falência - e o juiz da 1ª Vara Comercial
recusa a suspeição argüida. Apresenta denúncia contra determinadas pessoas por supostos crimes cometidos contra os interesses legítimos dos
credores do mesmo banco - e o juiz, ouvido o curador nomeado ad-hoc, manda arquivar o processo por absoluta carência de base.
Duas honradas firmas comerciais desta Praça, injuriadas por ele em artigo de jornal, chamam-no à
responsabilidade - e é ele condenado, nos dois processos, à pena de prisão celular.
Entra para professor da Universidade de S. Paulo, e esse benemérito estabelecimento, que estava
prestando à instrução superior do nosso Estado os melhores serviços, começa a padecer toda a sorte de reveses e parece ameaçado, infelizmente, de
fechar as portas.
Um casal em divergência procura o seu escritório para incumbi-lo de promover o respectivo
divórcio, amigavelmente. Surge de repente, dos fundos do sertão uberanense, como num lance teatral inesperado, um irmão vingativo, mata o
indigitado amante da irmã acusada, fere um irmão do dr. Vampré, alvorota os habitantes do prédio, reduz a cacos, furiosamente, o mobiliário do
escritório, e vai parar à cadeia.
Cremos não ser preciso alongar mais o rol dos desastres que têm acontecido ao dr. Spencer
Vampré, depois da nefanda ingratidão com que procedeu em relação à sobrecasaca e à cartola dos seus saudosos tempos de tradutor juramentado.
Julgamo-nos, por isso, habilitados a dar-lhe um salutar conselho. Emende a sua grave falta,
repare a sua feia injustiça, arrependa-se de sua dura ingratidão. Desça ao porão de sua casa, abra a canastra de couro tauxiado onde recolheu
aquelas grotescas relíquias, cujas nódoas o bolor encobre providencialmente; envergue-as de novo, mande à fava o seu fraque liró e o seu Borsalino
elegante, volte a chamar a atenção pública para as antigas peças do seu vestuário de outros tempos e verá que a prosperidade torna outra vez a
sorrir-lhe, como uma fada benfazeja e bondadosa...
Aceite o nosso conselho; ao contrário, a fatalidade que o acompanha afugentará, para sempre, de
sua Banca mal-assombrada, os poucos incautos clientes que por acaso ainda lhe restem.
Temos dito.
Imagem: Apelo à Justiça Paulista,
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