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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Matadouro - Biblioteca NM
Histórias do Matadouro Municipal (2-h)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEscrito apenas dois anos após a entrada em funcionamento do Matadouro Municipal de Santos, este raro livro reúne uma série de editoriais publicados pelo autor, o jornalista Alberto Sousa, no jornal santista A Tribuna, em outubro de 1917. A obra foi publicada em 1918, com impressão na Typographia Piratininga, da capital paulista.

O exemplar foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela biblioteca pública que leva o nome desse jornalista, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 46 a 49):

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O Matadouro Modelo de Santos

Alberto Sousa

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VIII - Traços biográficos do bacharel Carnaúba

Abunda no território do Ceará uma palmácea, prodigiosa pela sua utilidade complexa: é a carnaúba. O tronco fornece à atividade do homem fibras fortes que servem para cabos, cordas e indústrias congêneres; as raízes, decoctadas e postas em infusão, empregam-se no tratamento da sífilis e das moléstias da pele; do palmito que, quando novo, constitui um delicioso prato, faz-se, depois de velho, excelente vinho, vinagre, açúcar e uma goma nutritiva, semelhante ao sagu; da madeira fabricam-se instrumentos de música, tubos, bombas, vários utensílios domésticos de uso habitual; a substância amarga e tenra do interior das hastes e das folhas substitui perfeitamente a cortiça; a polpa do fruto é de um sabor delicado, e a sua amêndoa, bastante oleosa e emulsiva, depois de torrada e pilada, pode servir-se às mesas como um sucedâneo do café.

O tronco fornece ainda uma farinha análoga à maisena e um líquido branco igual ao do coco da Bahia; com a folha das palmas secas cobrem-se as casas e fazem-se chapéus, cestas, samburás e outros artefatos; finalmente, as folhas produzem um filamento de que se extrai uma cera amarela, empregada no fabrico de velas.

É, como se vê, uma palmeira de utilidade indiscutível e incomparável: uma árvore pau para toda a obra.

Mas o cantor de Iracema (N.E.: Iracema, lenda do Ceará é romance de José de Alencar, publicado em 1865) parece que, no seu orgulho patriótico, não se contentou com a multiplicidade de misteres a que a carnaúba serve generosamente; e acrescentou-lhe aos atributos naturais um ornamento poético: as jandaias cantando entre as ramagens sempre verdes de suas palmas sempre viçosas.

O advogado Corrêa Lima é uma espécie de carnaúba do reino animal, pela heterogeneidade e variedade das funções que tem exercido, quer na sua terra natal, quer fora dela. Foi oficial do exército, foi deputado à Assembléia cearense, rábula pouco feliz nas comarcas sertanejas do seu estado, chefe político, jornalista sem idéias nem gramática, e comandante das tropas revolucionárias num dos muitos movimentos subversivos havidos no Ceará depois da implantação da República.

Hoje, aqui em Santos, é simultaneamente jornalista, advogado, instigador de greves, arauto da oposição, e censor severo e caricato da Administração Pública; em uma palavra: pau para toda a obra, exatamente como a palmeira que viça nos adustos sertões do seu estado. E para a comparação ser acabada e perfeita, nem mesmo o acessório poético lhe falta: o Duarte é a jandaia de que o Corrêa Lima é a carnaúba.

É por essa razão que nos sentimos irresistivelmente inclinados a chamar-lhe d'ora em diante - o bacharel Carnaúba, sem outra qualquer designação supérflua. É uma alcunha que devia ser grata ao seu coração patriótico, porque lhe daria rebates de saudades do torrão natal.

Receamos, porém, que assim não seja, porquanto, ao contrário da gentil palmeira que resiste heroicamente às mais rigorosas secas estivais, segundo o testemunho dos naturalistas e dos viajantes - o bacharel Carnaúba, menos altruísta que a árvore generosa que, além de todos os seus grandes predicados e préstimos, ainda lhe deu um apelido de arromba - abandonou seus infortunados conterrâneos ao destino cruel que os flagela e dizima e veio para as férteis regiões do Sul desfrutar uma vida plácida e agradável, enquanto aqueles infelizes lutam e resistem às inclemências do clima e à esterilidade do solo.

Quem abandona a sua pátria em perigo - seja este de que natureza for: guerra, fome, seca, peste - é um traidor e um renegado, pois coloca egoisticamente as suas comodidades pessoais em oposição formal ao sofrimento coletivo de seus concidadãos.

O bacharel Carnaúba, só por semelhante conduta, mostra a sua inferioridade moral. Em vez de permanecer no seu país, lutando e sofrendo com os seus compatriotas, empregando a sua atividade em minorar a desgraça que pesa como  um anátema sobre a gloriosa terra de seu berço - achou preferível passar-se para as nossas bandas e constituir-se aqui o crítico e o árbitro dos nossos costumes, dos nossos homens e das nossas leis.

Nada conhece de nossa vida, não tem raízes que o prendam por nenhum laço de solidariedade a Santos ou a S. Paulo; é um intrometido, cujo pregão regenerador não foi escutado pelo povo cearense, e que quer vir ensinar-nos a respeitar as leis que vigem no Município e as que vigoram no estado.

Mas, nesse caso, o seu primeiro cuidado devia ser o de dar o exemplo do respeito às leis que os prevaricadores locais infringem e desacatam; e por isso, antes de exercer a sua profissão de advogado, cumpria-lhe registrar no Tribunal de Justiça a sua carta de bacharel em Direito, exigência a que não pode furtar-se por mais tempo sem agravar as suspeitas que em nosso foro se geraram de que tal carta não existe.

Cumprisse primeiramente o seu dever em relação às leis paulistas, prestando-lhes a obediência que todos lhe devem - principalmente os forasteiros audazes que vêm aqui velar pela moralidade da Administração e pela pureza dos nossos costumes públicos - e depois elaborasse a kirial de insultos e de tolices a que chamou Recurso e que vamos agora examinar devidamente.

Imagem: trecho do livro O Matadouro Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 47)