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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Matadouro - Biblioteca NM
Histórias do Matadouro Municipal (2-i)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEscrito apenas dois anos após a entrada em funcionamento do Matadouro Municipal de Santos, este raro livro reúne uma série de editoriais publicados pelo autor, o jornalista Alberto Sousa, no jornal santista A Tribuna, em outubro de 1917. A obra foi publicada em 1918, com impressão na Typographia Piratininga, da capital paulista.

O exemplar foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela biblioteca pública que leva o nome desse jornalista, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 50 a 54):

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O Matadouro Modelo de Santos

Alberto Sousa

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IX - O Vademecum de Salomão Carnaúba

Não tendo o sr. Corrêa Lima registrado, até agora, o seu diploma de bacharel em DIreito, na Secretaria do Tribunal de Justiça - como determina imperativamente a lei, não podemos dar-lhe o tratamento peculiar àquele título, sobretudo quando fortes suspeitas existem de que ele não é formado em Ciências Jurídicas ou outra qualquer disciplina.

E como não se habilitou a exercer a profissão entre nós, por meio de uma provisão de advogado ou solicitador - Corrêa Lima, zeloso defensor da ordem legal em Santos e S. Paulo, está completamente fora dela.

É assim que, enquanto não registrar a carta que o investiu no grau acadêmico, deixaremos de chamar-lhe como era nosso gentil intuito, o bacharel Carnaúba, para lhe chamarmos, simples e sinceramente - o charlatão Carnaúba.

Esperemos, entretanto, que os magistrados desta Comarca obriguem-no a exibir seu título de habilitação profissional, devidamente legalizado, ou lhe não permitam o ingresso no Pretório da Justiça, onde ele não passa de um intruso, destituído de mérito e besuntado de charlatanice.

As provas do seu charlatanismo superabundam no Recurso que vamos examinar - precioso vademecum de despropósitos jurídicos, de falsidades históricas e de erros gramaticais indefensáveis.

Abre a notável peça, afirmando que a concessão feita a Alberto Reissman é nula: 1º) por ser contrária à Constituição Federal e à do Estado; 2º) porque ofende direitos de outros municípios; 3º) porque a lei que autorizou o prefeito a abrir concorrência para o arrendamento não deu-lhe a ampla liberdade com que ele agiu.

Quanto ao primeiro fundamento, já demonstramos, farta e vitoriosamente, que o ato da nossa Municipalidade não ofendeu nenhum dispositivo, expresso ou implícito, da Constituição da República ou da Constituição do Estado. Julgamo-nos, pois, dispensados da tarefa de reeditar os nossos argumentos, que ainda devem estar bem vivos no espírito de nossos leitores.

A substância do terceiro também já foi por nós rebatida com grandes vantagens sobre os nossos débeis adversários, mas, quanto à sua forma, lembraremos ao charlatão Carnaúba que a negativa, naquele caso, atrai o pronome pessoal objetivo e que escrever não deu-lhe, em vez de não lhe deu, é revelar que nunca estudou português, o que constitui uma lacuna muito grave em profissão como a sua, que se exerce por intermédio da palavra falada e da palavra escrita. Este erro indesculpável repete-se em várias páginas do seu desopilante vademecum.

Do tríplice fundamento, pois, em que se baseou o Recurso, apenas nos resta analisar o segundo: a concessão ofende direitos de outros municípios.

Não podemos compreender como é que uma lei decretada para vigorar no Município de Santos ofenda direitos de outros municípios. Que direitos têm os outros municípios dentro das fronteiras do Município de Santos?

Dir-nos-á Carnaúba, com aplauso caloroso do poeta Duarte, que são os direitos que têm os outros municípios, de montar matadouros em Santos, abatendo gado para o consumo local; ou de mandar de lá para cá, já abatidas e beneficiadas, as reses necessárias a esse consumo.

Não se pode conceber maior disparate. Pois se a Municipalidade Santista, impedindo que a nossa população seja abastecida de carne abatida fora do seu Matadouro Modelo, ofende direitos de outros municípios que se proponham a isso, perguntaremos nós se tais municípios não ofendem, por sua vez, os direitos do Município de Santos?

E com essa pergunta teremos colocado a questão nos seus verdadeiros termos: a matança e beneficiamento de reses destinadas ao consumo local é um serviço público da competência da Câmara; portanto, quem quer que pretenda fazer-lhe concorrência ofende os seus incontestáveis direitos à exclusividade legal de semelhante serviço. Dando provimento ao Recurso interposto pela COmpanhia de Armazéns Gerais, de um ato da nossa Câmara Municipal, em 1908, o Senado Estadual reconheceu, num dos Considerandos do Parecer aprovado com a Resolução revocatória n. 14, que o serviço público não muda de natureza só porque é explorado por terceiro.

É o que se verifica exatamente no caso em debate. Apelando para o método analógico, que tão bons resultados dá, imaginemos, por exemplo, que um munícipe de Atibaia, vendo indeferida a petição em que requereu à nossa Municipalidade licença para montar aqui um matadouro e abater carne destinada ao consumo local - recorresse para o Senado, alegando que o despacho da Câmara Santista ofendera os direitos daquele município!

Que direito tem o município de Atibaia, que direito têm os munícipes atibaienses, de vir estabelecer em Santos um serviço público de exclusiva competência da nossa Câmara? Pensará Corrêa que está arengando para tabaréus estúpidos e jangadeiros boçais? Nós ofenderíamos os direitos daquele município se decretássemos a construção de obras e a execução de serviços municipais em seu território ou impuséssemos tributos aos seus habitantes. Mas se, ao contrário disso, é Atibaia que pretende, contra a nossa vontade, estabelecer em nossa terra um serviço público que nos pertence - como é que nós é que ofendemos os direitos do município de Atibaia?!

Confesse, amigo Carnaúba, que as tenazes da nossa lógica estão esmagando dolorosamente o seu pedantismo e o seu orgulho. Você, nos delírios de sua presunção descomunal, nunca pensou que passaria por este mau quarto de hora e já está dando ao diabo a idéia que teve de se meter a sebo.

Você mediu a força mental dos municipalistas pelo estalão dos amigos e correligionários que fez ao desembarcar em Santos, quando veio do Norte, tangido pela seca que vai transformando em cadáveres os seus heróicos patrícios. Bem vê que se enganou redondamente e que os néscios, os párvulos, os insensatos, são os que o acompanham nos seus dislates; é com eles que se entende este expressivo trecho do Recurso - trecho que transcrevo na íntegra, para vergonha e confusão de seu infeliz autor:

"Para quem fala o sr. prefeito municipal? Para uma população composta de homens tolos, ou para uma sociedade culta? S. s. parodiou com muita infelicidade um célebre tirano romano, quando um dos seus atos de despotismo mereceu reprovação de seus íntimos e exclamou: Stultorum infinitus est numeras - o número dos tolos é infinito!"

Agora somos nós que perguntamos ao Carnaúba: para quem fizeste a citação daquele latim mal copiado das páginas cor-de-rosa do Petit Larousse? Para uma população composta de homens tolos, ou para uma sociedade culta?

Quem é o tirano a quem tu te referes e cujo nome não dás? Não é ninguém. Nunca existiu, a não ser nos incomensuráveis refolhos de tua ignorância farfalhenta. Aquelas palavras são do velho rei Salomão, no versículo 15 do Livro do Eclesiástico; o que prova que o teu precário latim, citado de citações, corre parelha com o teu português de fancaria; e que contavas passar como latinista emérito aos olhos do povo de Santos, embasbacado diante de teu assombroso saber clássico, de tuas letras eruditíssimas.

Contudo, já um dos interlocutores do Coloquio de los dos perros (N.E.: O diálogo dos cachorros, uma das Novelas Exemplares de Miguel de Cervantes Saavedra, publicada em 1613 pelo mesmo autor de D. Quixote de la Mancha) que conhecia os latinistas de seu país e de seu tempo, dizia - e vai em castelhano para não perder o delicioso sabor do estilo cervantesco: peca el que dice latines delante de quien los ignora, como el que los dice ignorando-los.

E como é preciso que na memória eterna do povo santista,os teus vergonhosos feitos não mais sejam olvidados, anteporemos ao nome com que te batizamos ontem o bíblico prenome com que te crismamos hoje. Além de Carnaúba, serás Salomão - Salomão Carnaúba! Por um escárnio punidor e por uma vingadora ironia, os novos nomes com que te alcunhamos, são, n tua pessoa, a antítese completa da sabedoria histórica do monarca hebreu e da utilidade completa da generosa palmeira cearense. Ao contrário deles, és ignorante e mau.

Mas, por onde andará a estas horas o nosso querido poeta Duarte, que não acode em socorro de seu colega em apuros?

Ó Duarte! Ó jandaia maviosa! Desprende as asas amarelas, solta o vôo e vem! Pousa sobre o cocuruto do teu inconsolável amigo e desfere um canto melódico e sublime, que lhe atenue as mágoas que o dilaceram, no momento em que o desmascaramos na praça pública, como o charlatão mais petulante que tem arribado ultimamente às nossas praias!

Imagem: trecho do livro O Matadouro Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 51)