"Baía de Santos: patrimônio da União"
Vista da serra, a baía de Santos, ampliada entre o acidentado caminho do Guarujá ao linear praiano ao sul, dispõe-se cenário ambíguo: emaranhado
entrecortado de manguezais, precário afrontamento ao Oceano e destemido acolhimento aos anônimos e heróicos navegantes. O vivente é sempre navegante entre o céu inacessível e o mar de abissal mistério.
Pela sua História e Cultura, a baía de Santos já deveria faz muito ser patrimônio imaterial da União: além do frevo, do acarajé, do Santo Daime já entronizados e de outros sítios eco-culturais reconhecidos que
outro acidente telúrico e atmosfera de emocionalidades foi mais presente na memória coletiva de nossa gente que a entrada ao Novo Mundo por essa barra e estuário?
Sem prejuízo de seu progresso, essa costa merece distinção simbólica da nacionalidade. Daqui partiram expedições desdenhando o corte de Tordesilhas, abrigamos primitivo ideal civilizatório,
missões litorâneas fundaram o Rio e São Paulo até recebimento de milhões de imigrantes que ainda moldam o Quinto Império tropicalista. Há uma mística de navios iluminados, um bafejo cosmopolita:
Não é à toa nossa vocação libertária, mesmo com recaídas conservadoras. Esse é porto de letras, cais de artistas: Manet, Rimsky-Korsakov, Puccini, Niijinsky passaram por aqui; Mellville, autor de Moby Dick singrou essas vagas: e poucos
livros são tão fundamentais: só o Mar é capaz de desnudar o Homem em sua grandeza e miséria.
Se Sarah Bernhardt atuou no Guarany, fomos cantados em prosa por Guy de Maupassant e Jorge Luiz Borges em 2 contos paradigmáticos: Horla
e Aleph. O conto é gênero supremo: esses citados são arquetípicos na sua maestria. Neruda poetizou Santos em 2 poemas que quase fotografam liricamente nosso noroeste, suor da estiva e bafejo de maresia.
Carregamos o estigma das cidades-estado: portos libertinos, atracadouros exóticos, cruzamento de múltiplas percepções; algo que misture Gênova, Trieste, Hamburgo, Barcelona, a foz do Mississipi,
a sensualidade de Tânger ou Xangai.
Depois de meu fascínio pelo cônsul britânico Richard Burton, acabei descobrindo um personagem que o sucedeu quase meio século depois em Santos: Roger Casament, irlandês que servia à Rainha
Vitória, correspondente de James Joyce e que inspirou Conrad em Coração nas Trevas.
Nesse inverno seco, mirando onde os cargueiros se desvencilham da praticagem, elevo-me dissipando toda névoa mental do zênite lunar à alvorada que se precipita langorosamente. Essa faixa em arco
entre a Ilha das Palmas e Itaipu desfazem o véu de Maya: estendo a visão do âmago ao litoral ampliado e desdobro-a ao horizonte que se infinitiza.
Em Paris, Lévi-Strauss, mais influente intelectual vivo do século XX chega aos 100 anos: no clássico da antropologia Tristes Trópicos, num capítulo dedicado à essa entrada marítima ele diz
sobre nós, sobre Santos: "... o lugar continua ser de uma secreta beleza... o interior de Santos, planície inundada parece a Terra emergindo no princípio da criação".
Essa baía, espelho de tanta poesia e novelo kármico bem permite que diga o que Cícero Dias disse do seu Recife: "Eu vi o Mundo... ele começa em Santos."
Lembremos ao Brasil: essa barra é já um pouco de cada num instante que não foi pouco. Nas madrugadas o sentimento atlântico nos pega em cheio...
Flávio Viegas Amoreira
flavioamoreira@uol.com.br |