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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Jogo do bicho, nos jornais... e nos postes (2)

Houve um tempo em que os prognósticos eram publicados em jornal. Com a proibição, continuou sendo divulgado, agora de forma menos oficial...

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Corretores zoológicos, eufemismo tradicional para designar aquele grupo de pessoas que - mesmo na mais absoluta ilegalidade há décadas, embora todos saibam quem são e raramente sejam importunados - recolhem as apostas na dezena, na centena ou no milhar, descarregam as apostas nos bicheiros e depois divulgam os resultados da extração, pagando religiosamente aos vencedores - não por acaso, apostar no bicho é "fazer uma fezinha"...

Quando esse jogo completou 120 anos de sua criação no Brasil, o jornal santista A Tribuna registrou, na página 34 (última) da edição de 13 de outubro de 1990:

Até hoje o jogo desperta interesse entre os apostadores

Foto: Reinaldo Ferrigno, publicada com a matéria

 

Jogo do bicho completa 120 anos de existência

Lídia Maria de Melo

Perante a lei, o jogo do bicho é crime. Para a população, independente da camada social, é uma forma de fazer fé na sorte. Por isso, o hábito brasileiro de transformar sonhos, palpites, placas de carros batidos em apostas numéricas completa hoje 120 anos.

A prática é simples e extremamente organizada. Também envolve muitas pessoas: apostadores, cambistas, apanhas, banqueiros. Ninguém se nega a explicar a sistemática do jogo, conhecida de homens, mulheres e até crianças. O detalhamento, no entanto, exige uma condição: que não haja identificação de nomes e lugares. "A melhor coisa pro bicheiro é viver no anonimato", justifica um deles, que está no ramo há 18 anos.

Em Santos, deve haver de quatro a cinco banqueiros (donos de bancas de jogo, que pagam os prêmios). Cada um deles mantém sob sua coordenação inúmeros pontos de aposta, que são gerenciados pelos cambistas. Estes é que preenchem as apostas dos fregueses em duas folhas, separadas por papel carbono. Uma é recolhida pelo apanha e a outra fica com o apostador.

As apostas podem ser feitas em 25 grupos de bichos (veja quadro). Cada grupo, que corresponde a um animal, tem quatro dezenas. O interessado tem a chance de optar por várias modalidades de apostas. As mais conhecidas são: dezena, centena, milhar, duque de dezena, terno, duplo de grupo e terno de grupo. Não existe limite de dinheiro para as apostas.

O acerto na dezena, por exemplo, paga 60 vezes cada Cr$ 1,00 jogado. Assim, quem apostar Cr$ 50,00 na dezena 10 pode receber Cr$ 3 mil, caso dê esse número. Acertar na centena vale 600 vezes cada Cr$ 1,00. Na milhar, 3.000 vezes. No duque de dezena, 300 vezes para duas dezenas certas do primeiro ao quinto prêmio.

O terno dá 3.000 vezes para cada Cr$ 1,00 jogado, se houver acerto de três dezenas do primeiro ao quinto. O duplo de grupo paga 20 vezes cada Cr$ 1,00, para acertos de dois bichos do primeiro ao quinto. O terno de grupo paga 120 vezes cada Cr$ 1,00 no acerto de três bichos do primeiro ao quinto.

As apostas podem ser feitas todos os dias. De segunda a sexta-feira, elas são divididas em duas etapas: até as 14 horas e até as 18 horas. Os sorteios acontecem às 14h30 e às 18h30. Uma das rodadas das quartas-feiras acompanha a Loteria Federal, assim como a do sábado. O último horário da sexta-feira segue a Loteria Paulista. Aos domingos, só corre uma vez pelo sistema Para todos, no Rio de Janeiro, na presença de representantes de banqueiros de todo o País.

Os resultados do Para todos são afixados em postes de iluminação ou nos pontos de aposta até, no máximo, uma hora após o sorteio. O pagamento é quase imediato. "Ninguém fica sem receber. A propaganda do jogo do bicho é o pagamento", garante um cambista, que chega a receber 200 apostas por dia, totalizando um volume de dinheiro que ele se recusa a revelar.

Ele conta que um banqueiro pode recusar um jogo, quando percebe que não terá dinheiro para pagar o prêmio. Nesse caso, ele faz a descarga para outro banqueiro, podendo repassar toda a aposta ou apenas uma parte, para evitar prejuízo. O ganho do cambista nos jogos, segundo um que atua há 13 anos, é de 18% ou 25%, sobre o total arrecadado por dia. Ele mesmo desconta sua féria do volume recebido dos apostadores.

"É um comércio como outro qualquer. Um dos mais honestos. Não é porque eu faço isso não", afirma, dizendo que os banqueiros santistas são pessoas respeitadas na Cidade, sem nada que os desabone, a não ser o fato de o jogo não ser legalizado.

Charge de Bar, publicada com a matéria

 

Palpites nascem da intuição e dos sonhos

Apostar no jogo do bicho envolve uma certa dose de intuição e sensibilidade para interpretar a linguagem dos sonhos e dos números que surgem diante dos olhos. Hà pessoas que sonham com defuntos e jogam no elefante. Outras, com a sogra ou a mulher e vão firmes na cobra.

Outro dia, um senhor sonhou que o vizinho, morador na casa número 310, rolava no chão de tão bêbado que estava. Ele não teve dúvidas: apostou na centena. Quando pegou o resultado, ao final da tarde, percebeu que não entendera o sonho. Deu: 013. Segundo ele, a inversão do número se justificava, porque o vizinho rolava.

Placa de carro - Um cambista conta que no dia 25 de janeiro de 1985 um apostador jogou Cr$ 88 mil na milhar 0111, porque olhou para a numeração de uma loja. Ele ganhou Cr$ 105 milhões, que, na época, dava para comprar cinco apartamentos. Ontem, o mesmo apostador voltou para fazer uma fé na mesma milhar. A sorte não foi a mesma.

Um outro apostador disse que, certa vez, jogou de segunda a quinta-feira a placa de seu carro: 2.866. Na sexta-feira, sua mulher indicou-lhe outra numeração. Ele jogou e teve a maior decepção: a milhar de seu carro deu no primeiro prêmio.

Ontem, enquanto apostava Cr$ 50,00 na milhar 8.816, outro apostador justificava seu método: "Quando não sonho ou não tenho palpite, jogo na numeração da nota (dinheiro)".

Resultado - Correr atrás do resultado dos sorteios não é função apenas de adultos. Ontem à tarde, muitas crianças percorreram pontos de apostas em busca da numeração ou conferiram jogos em postes. "Deu o cachorro?", quis saber uma delas, a pedido da mãe.

O resultado fixado, às 15 horas, em vários postes, foi:

1º prêmio  -  7.418  -  grupo 5

2º prêmio  -  8.759  -  grupo 15

3º prêmio  -  4.328  -  grupo 7

4º prêmio  -  0.210  -  grupo 3

5º prêmio  -  1.258  -  grupo 15

Corte de número - Entre eles, não poderia constar o ano judeu 5.751, que está proibido até segunda ordem pelos banqueiros. Esse procedimento de vetar um certo número ocorre sempre que uma dezena, centena ou milhar entra em evidência, vira notícia. Isso porque normalmente as pessoas costumam recorrer a elas e as apostas numa mesma numeração aumentam e podem quebrar um bicheiro.

Um desastre de automóvel, por exemplo, costuma atrair curiosos. Alguns podem até ficar preocupados com os danos ou as possíveis vítimas. Muitos, porém, não terão sossego enquanto não anotarem a placa para apostar. Diante disso, para se prevenir, hoje, os banqueiros devem vetar o número 120.

Grupos do jogo do bicho

  Dezenas
  1 Avestruz 01 02 03 04
  2 Águia 05 06 07 08
  3 Burro 09 10 11 12
  4 Borboleta 13 14 15 16
  5 Cachorro 17 18 19 20
  6 Cabra 21 22 23 24
  7 Carneiro 25 26 27 28
  8 Camelo 29 30 31 32
  9 Cobra 33 34 35 36
10 Coelho 37 38 39 40
11 Cavalo 41 42 43 44
12 Elefante 45 46 47 48
13 Galo 49 50 51 52
14 Gato 53 54 55 56
15 Jacaré 57 58 59 60
16 Leão 61 62 63 64
17 Macaco 65 66 67 68
18 Porco 69 70 71 72
19 Pavão 73 74 75 76
20 Peru 77 78 79 80
21 Touro 81 82 83 84
22 Tigre 85 86 87 88
23 Urso 89 90 91 92
24 Veado 93 94 95 96
25 Vaca 97 98 99 00
Fonte: Bicheiros de Santos

Idéia foi do Barão de Drummond

Pesquisa A Tribuna

O jogo do bicho começou no Brasil há 120 anos, em 13 de outubro de 1870, quando João Batista Viana Drummond - barão de Drummond -, diretor da Cia. Ferro-Carril de Vila Isabel e criador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, instituiu um sorteio de bichos, com a finalidade de levantar recursos à alimentação dos animais e conservação do recinto. Ele mesmo desenhou 25 figuras de bichos do zôo, uma das quais em duplicata, que foi coberta com um pano preto que seria descerrado em determinado horário: quem tivesse a figura igual à duplicata, ganharia um prêmio. As figuras foram vendidas entre os próprios freqüentadores do zoológico e, à hora marcada, deu-se o sorteio, sob grande curiosidade dos apostadores.

Tão grande foi o sucesso que a operação e o sorteio foram repetidos no dia seguinte, e nos subseqüentes. Depois, na evolução, o sorteio foi levado para fora do zôo, e os bichos substituídos por números. O barão de Drummond, satisfeito com os resultados financeiros conseguidos no zôo, nem se lembrou de patentear a invenção, que ganhou domínio público e virou hábito nacional de "fazer a fezinha".

Hoje o jogo do bicho, ainda que ilegal e enquadrado como contravenção penal, é praticado abertamente em muitos pontos do Brasil. Em Pernambuco, por exemplo, há três extrações diárias, cada uma bancada por instituição clandestina diferente, denominada banqueiro. Quem faz o jogo e anota a aposta é cambista, que repassa as anotações ao banqueiro, minutos antes de cada sorteio.

A primeira loteria no Brasil foi instituída em Ouro Preto (MG), 1874, com base na experiência do jogo do barão de Drummond e adaptando um modelo europeu, com a finalidade de arrecadar fundos à construção da cadeia pública e Câmara daquela cidade mineira. Foi feita uma tiragem de 3 mil bilhetes, depois ampliada para 9 mil, antes de completar um mês de existência do sorteio.

A Loteria Federal começou a ser operada em 1961 pela Caixa Econômica, que na década de 70 criou a Loteria Esportiva, e a Loto na década de 80. Depois vieram a Sena (Loto II) e a Teimosinha (que repete a Loto em determinado número de sorteios). No Estado de São Paulo, depois da Loteria Paulista, proibida durante o governo Gaspar Dutra, foi instituída recentemente a Loteria da Habitação, substituída pela Raspadinha, do tipo arranhe e ganhe ou instantânea, que surgiu nos Estados Unidos em 1974. Hoje o Brasil é o líder no mundo em apostas lotéricas, seguido da Itália, Espanha, Suécia, Noruega e Grécia.

 

O mesmo jornal A Tribuna, registrou, em 18 de novembro de 2007 (página A-4):

 

Os papeizinhos contendo informações sobre o resultado do dia

são afixados nos postes e nas paredes

Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria

JOGO DO BICHO

O dia-a-dia dos apontadores

Prática, que é considerada ilegal, continua assegurando a sobrevivência de algumas famílias

Thiago Macedo

Da Redação

Macaco, cobra, vaca e borboleta. Não, isso aqui não é uma matéria sobre fauna brasileira. Pelo contrário, os animais citados são apenas alguns do verdadeiro zoológico que ilustra o mundo do jogo do bicho. A prática desse jogo é considerada ilegal pela Justiça.

Sem entrar no mérito dos prejuízos causados ao Estado para garantir a manutenção de todo o complexo sistema que está por trás da inofensiva fezinha,o jogo do bicho faz parte da cultura brasileira e a chance de ganhar um bom dinheiro jogando apenas alguns trocados alimenta sonhos e gera postos de trabalho, principalmente para os apontadores - aqueles que ficam, na maioria das vezes, em um cantinho de bares e padarias anotando as apostas dos jogadores.

Ao contar sobre o dia-a-dia de trabalho, os apontadores não gostam de se identificar, muito menos querem que os locais onde atuam sejam publicados no jornal. Portanto, todos os nomes daqui para frente são fictícios. "Quem joga sabe onde estamos", argumentam os apontadores.

Há 10 anos trabalhando como apontador, o aposentado José Carlos, de 69 anos, conta que já chegou a pagar R$ 17 mil para um jogador. José tem a base fixada em um bar do Boqueirão e afirma que não é possível traçar um perfil dos apostadores do jogo do bicho. "Todos jogam. Desde o engravatado até a dona-de-casa".

De acordo com o aposentado, dependendo do ponto onde o apontador atua, ele chega a ganhar R$ 3 mil por mês. Na Vila Mathias, o ex-corretor de imóveis Roberto (como ele se identificou) fuma tranqüilo em uma mesa de bar. Pai de seis filhos, ele diz que é o dinheiro que ganha como apontador que ajuda a sustentar a sua família. A mulher de Roberto também trabalha com o jogo do bicho, aliás, "foi ela que começou a trabalhar com isso e conseguiu um ponto para mim".

Uma das principais características desses trabalhadores é a cordialidade. "Temos uma relação muito próxima das pessoas que apostam", explica outro apontador do Campo Grande. Eduardo afirma que já conhece os jogos de seus clientes. "Quando sai o resultado já sei quem ganhou". O apontador diz que depois que os bingos fecharam o número de senhoras jogando no bicho aumentou muito. "Elas jogam sempre".

Uma série de regras rege a prática do jogo do bicho, além de ser um jogo bancado (o prêmio não é rateado como as loterias oficiais), quando alguma milhar é divulgada na mídia ela é imediatamente cortada das apostas. "Na época dos desastres aéreos (a queda dos aviões da Gol e da TAM) os números das aeronaves ficaram suspensos por quase três meses".

Frases
"Todos jogam. Desde o engravatado até a dona-de-casa"

José Carlos, apontador do jogo do bicho

"Temos uma relação muito próxima das pessoas que apostam"

Eduardo, apontador no Campo Grande

 

De pai para filha - Com as unhas bem feitas e devidamente maquiada, Juliana chama a atenção por ser, talvez, a apontadora mais nova da Cidade. Aos 25 anos, a jovem ingressou no ramo do jogo do bicho há três meses. "Meu pai era o responsável pelo ponto (em um bar no Campo Grande), mas depois que ele morreu tive que assumir".

Juliana diz que odeia o que faz, "mas é com esse dinheiro que ajudo a sustentar a família". O que mais irrita a jovem são as gracinhas que ouve durante o dia dos apostadores, que não se contêm, sempre falam "alguma besteira".

A garota tem esperanças de encontrar alguém de confiança para colocar no seu lugar e deixar a vida de apontadora.