ÓPERA CAFÉ - ESPETÁCULO CONTINUA HOJE E
AMANHÃ - Finalmente Santos ganhou sua ópera. O drama dos estivadores durante a crise do café nos anos 20 virou a obra Café, que teve sua
estréia mundial na noite de ontem, no Teatro Municipal. O espetáculo será apresentado ainda esta noite e amanhã, sempre às 21 horas
Foto: Carlos Marques, e nota-legenda,
publicadas na primeira página de A Tribuna de 13/9/1996
ESTRÉIA
Ópera Café resgata o drama dos estivadores
O texto é de Mário de Andrade e a parte musical terá a Orquestra Sinfônica de
Santos, regida por Luís Gustavo Petri
Lucas Tavares
Da Reportagem
CAFÉ - SANTOS GANHA SUA ÓPERA ESTA NOITE -
Apresentada em três atos, a partir das 21 horas, a ópera Café tem estréia mundial no Teatro Municipal, mostrando um drama épico com texto de Mário
de Andrade e música de Hans-Joachim Koellreutter. O drama dos estivadores durante a crise do café nos anos 20 será apresentado a partir da figura de
um narrador, interpretada pelo ator Serafim Gonzalez
Imagem: reprodução de Café, obra de Cândido
Portinari, publicada com a matéria
Com estréia mundial às 21 horas de
hoje no Teatro Municipal, a exibição da ópera Café, de Mário de Andrade, será o principal evento do ano na Cidade.
Montada em comemoração aos 450 anos da fundação de Santos, a ópera também será encenada amanhã e domingo.
Café foi musicada pelo maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter, um dos nomes mais
importantes para a história da música brasileira contemporânea. Escrita na década de 40, foi uma das últimas obras do poeta Mário de Andrade
(1893-1945). Seu texto, dividido em três atos e cinco cenas, é um épico sobre o drama vivido por agricultores e estivadores durante a queda dos
preços do mercado cafeeiro na década de 20. Mostra a fome e pobreza por que passou o povo na época e culmina numa revolução socialista.
Elaborada há dez anos por Koellreutter, a música de Café foi criada tendo como base
tendências contemporâneas de composição como o dodecafonismo,o o atonalismo e o aleatorismo -conceitos musicais introduzidos em âmbito nacional pelo
próprio maestro em 1937, quando ele veio para o Brasil fugido do nazismo e passou a dar aulas para nomes como Guerra Peixe, Tom Jobim e Cláudio
Santoro.
"Haverá partes improvisadas e outras compostas nesses sistemas", disse o maestro. Nas
improvisações, Koellreutter, que vai reger parte do espetáculo, utilizará diagramas planimétricos no lugar de partituras. Dispostos em forma de
círculos, eles permitem a leitura em várias direções, o que resulta em melodias diferentes a cada apresentação. "É música aleatória".
A direção da obra é de Fernando Peixoto e
a cenografia e iluminação de Gianni Rato
Foto: Wilson Melo/divulgação, publicada com
a matéria
Porto cultural - Orçada em R$ 125 mil, custeados pela Prefeitura, Secretaria Estadual de
Cultura e patrocinadores, a montagem da obra de Mário de Andrade abre o roteiro de eventos do projeto Porto Cultural - Primavera Nacional de Artes
Cênicas, também em comemoração ao 450º aniversário da Cidade, e tem o apoio cultural de A Tribuna.
Café será executada pelos 35 componentes da Orquestra Sinfônica Municipal de Santos e mais
120 integrantes de quatro corais da região (Municipal de Santos, de Cubatão, Grupo Vocal Faz de Canto e CoralUni do Colégio Universitas).
A direção de cena de Café está nas mãos de Fernando Peixoto, Gianni Ratto responde pela
cenografia e Maria do Carmo Brandini pelo figurino. O maestro Luís Gustavo Petri, regente da sinfônica, é o diretor musical.
O evento também terá a participação do ator santista Serafim
Gonzalez no papel de narrador da trama. A esposa de Koellreutter, a meio-soprano alemã Margarita Schack, será a única solista. Ela interpretará
a Mãe do Povo, personagem central do enredo.
A regência será dividida entre cinco maestros. Koellreutter ficará com as partes improvisadas dos
corais e da orquestra. O diretor Luís Gustavo Petri conduzirá a Sinfônica de Santos.
Os corais serão regidos por Roberto Martins (Municipal de Santos), Geraldo Magela Marques
(Municipal de Cubatão e Faz de Canto) e Maria Fernanda Marques (CoralUni).
Os ingressos para o espetáculo custam R$ 10,00 e podem ser encontrados na bilheteria do teatro
(Avenida Pinheiro Machado, 48, Vila Mathias). As apresentações de amanhã e domingo também serão realizadas às 21 horas.
O movimento revolucionário contra a
opressão das classes dominantes
é o tema central da ópera
Foto: Wilson Melo/divulgação, publicada com
a matéria
Entrevista: Hans-Joachim Koellreutter - Maestro
"Peço para o público não aplaudir e meditar"
O maestro compôs a música especialmente para a ópera e acha que o texto também
trará um grande impacto
Aos 81 anos, o maestro alemão
Hans-Joachim Koellreutter ainda cativa com seu carisma e fala professoral. No Brasil desde 1937, ele tem importância histórica por ter trazido
tendências modernistas à música brasileira. Mestre de mestres como Guerra Peixe, Cláudio Santoro e Tom Jobim, Koellreutter é o responsável pela
introdução do dodecafonismo e do atonalismo no nosso cenário musical contemporâneo. Fumando semparar seu cachimbo Parker, ele falou de sua vida e da
Ópera Café e afirmou: "Eu peço para não aplaudir (o espetáculo). O público, em vez disso, deve refletir os problemas que o poema traz".
Da Reportagem
A Tribuna - O sr. ficou com a fama de agitador cultural por onde passou. Que impacto
pretende ter com a estréia da ópera?
Hans-Joachim Koellreutter - Eu não sei. O impacto é o problema do texto (crise do café),
não? Quem talvez possa fazer o impacto é o Mário de Andrade. Eu pretendi apenas musicar (pausa, ele dá três pitadas no cachimbo), contribuir (mais
três pitadas) com o valor do texto escrito pelo Mário de Andrade, que é uma linguagem épica muito bonita, que impressionou muito. Eu conheci o texto
quando estava no Japão. Isso já faz uns dez anos.
AT - Numa outra entrevista, o sr. comentou que poderia haver alguma surpresa em relação ao
espetáculo. O que é?
Koellreutter - Mas qual a surpresa? Talvez seja o fato de a platéia cantar o último verso
do poema. A última frase é "Força, Amor, Trabalho e Paz", que vai ser sussurrada pelo público. Depois disso, eu peço, num papel que o público vai
receber, para não aplaudir. Para pensar, meditar um pouquinho sobre os problemas que o poema traz. Além disso, toda essa problemática social (do
texto) será um grande impacto.
AT - Por que especificamente isso? O texto não representa a vitória dos operários
revolucionários?
Koellreutter - Porque é uma vitória que não é forçosamente uma vitória. É uma vitória, uma
cena histórica, um momento de história, mas que a Mãe (personagem principal da ópera) diz: O importante não é a revolução. O importante é a paz. É
pensar sobre força, amor, trabalho e paz. O importante é o humano. Assim eu interpreto.
AT - Em termos de conteúdo, é um texto que remete hoje à problemática dos sem-terra e à crise
social por que o País passa.
Koellreutter - Hum, naturalmente. Mas, por isso, o próprio Mário (de Andrade) já mudou o
subtítulo. O subtítulo do Café foi Tragédia Coral. Assim está na primeira edição. Depois, ele mudou isso para Tragédia...
AT - Secular.
Koellreutter - Por quê? Porque ele achava que os problemas são diferentes, mas, no fundo,
são os mesmos. Sempre.
AT - É um texto em defesa da utopia socialista, não?
Koellreutter - Não creio que se possa dizer isto. É uma descrição da problemática social
que existe em todos os países capitalistas. A solução, naturalmente e na minha opinião, terá que ser um tipo de socialismo. Eu não acredito que haja
outra possibilidade. O mundo caminha como ondas, não? Vai para baixo e para cima.
AT - Voltando à ópera, a música tem partes improvisadas. O sr. poderia explicar as técnicas de
composição utilizadas?
Koellreutter - Eu usei uma técnica que é típica do meu estilo, vamos dizer, que se chama
estruturalismo.
AT - São os diagramas (que, escritos em círculo, permitem a leitura da obra em vários
sentidos)?
Koellreutter - Os diagramas são a parte técnica do estilo. Esse uso de diagramas, a
técnica, chama-se planimetria.
AT - O sr. pode explicar melhor como funciona isso em comparação com o uso de partituras
comuns?
Koellreutter - Em vez de motivos e de temas, tem unidades estruturais, que eu uso numa
linguagem em que o silêncio, aquilo que não soa, tem a mesma importância que o som. E, mesmo dentro desta técnica, eu uso o dodecafonismo. A obra
não é dodecafonista, mas tem trechos que usam esses princípios, porque a série dodecafônica é um elemento de unificação formal que é muito
importante para qualquer música, para qualquer composição moderna.
AT - A música da ópera é atonal?
Koellreutter - Ela é parcialmente atonal. É parcialmente improvisação e parcialmente
composição. A parte composta é atonal, e a parte dodecafônica também é atonal e composta. E a improvisação naturalmente é uma tonalidade livre,
pode-se dizer. Ela depende do clima, do ambiente, de cada cena. Uma parte da parte composta ficará a cargo da orquestra sinfônica e a improvisada eu
irei reger.
AT - Então, essas partes improvisadas serão música aleatória.
Koellreutter - Isso mesmo, é aleatorismo.
AT - Falando nos diagramas, eles foram inspirados no futebol, não?
Koellreutter - De onde você sabe tudo isso? Na copa de 90, eu assisti todos os jogos na
televisão, e fiquei muito impressionado com a mistura de disciplina e da improvisação do time brasileiro. E, naturalmente, com tudo o que eu vejo,
eu logo penso em termos de música.
AT - Como chega uma coisa à outra?
Koellreutter - Como você mesmo diz, é improvisação e disciplina. Seria, se você quiser,
tonalismo ou dodecafonismo e atonalismo. Eu vi essa mistura no jogo e, no fundo, compor e fazer música também é um jogo. Isso é interessante também
sob o ponto de vista formal. Mistura o rigor da disciplina com a liberdade que é necessária quando se dialoga com os outros. No Café, por
exemplo, tem música popular com a presença de um conjunto regional. uma é atonal logo no primeiro ato.
AT - Mudando de assunto, o sr. veio ao Brasil fugido do nazismo, não?
Koellreutter - Cassaram minha nacionalidade porque eu era anti-nazista. Eu fui primeiro à
Suíça, onde terminei meus estudos de música. Eles me ameaçaram porque eu tive uma noiva que era semi-judia e minha família me denunciou. Meu pai era
monarquista e tinha uma certa simpatia pelo nazismo. Além disso, eu tinha um grupo de estudos de música nova em Berlim. Tocávamos composições de
judeus, o que era proibido. Isso provocou minha expulsão e a morte de vários amigos. Como eu era flautista e tive uma turnê pela América Latina,
tinha estado no País antes de 1936. Eu me atraí pelo Brasil por causa da gente daqui. Fiquei primeiro como turista e depois me naturalizei.
Koellreutter: "Uso uma linguagem em que o
silêncio tem a mesma importância que o som"
Foto: Wilson Melo/divulgação, publicada com
a matéria |