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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (20)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V, Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

TERCEIRA PARTE - Romântica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Dona Mecia

Uma velha capa de vidrilhos. Uma capota de plumas pretas. Uma velhinha trôpega que caminha para a novena, enquanto os sinos dobram na melancolia da tarde azul...

Como é evocativo esse toque de sinos num crepúsculo de maio! Não acha d. Mecia? A senhora que agora traz uma capa de vidrilhos pretos, um rosário de contas grossas e que já fez mais de noventa anos em janeiro passado!

D. Mecia Proença de Alvarenga e Castro. Nome comprido e sonoro. Nome que, aliás, lhe enchia de orgulho. Sim, porque além da antiguidade do nome se esquartelavam na velha pedra d'armas do portão da chácara de seu pai as seis arruelas dos Castros e as cinco flores de lis dos Proenças. Bem sei que a sua memória está fraca; lembra-se pouco das coisas do presente. Troca sempre o nome do seu netinho mais moço e não é raro esquecer-se do número de seu portão. Mas o passado! Esse passado de há setenta e poucos anos, quando a senhora tinha apenas dezesseis! Esse se conserva nítido e vivo na sua saudade como as cores de um crepúsculo tropical!

Nesse tempo, a senhora era apenas Mecinha. E, confessemos que foi bem bonita! Sim, porque não vamos agora julgá-la pelos seus noventa e tantos anos enrugados e trôpegos, pela sua capota de plumas e pelo seu vestido de merinó preto. Em 1850, no seu vestido de organdi, muito branca de pele, olhos grandes de madona italiana e cabelos pretos de maja andaluza, era bem o tipo romântico das meninas que desabrocharam entre os tremós de 1840 e as mazurcas de 1850.

No seu vestido branco tufado, sobre as calcinhas rendadas de cambraia donde apareciam as pontas de suas botinhas de duraque, lembrava Sophia, das Meninas Exemplares, mas uma Sophia mais tropical, com um brilho mais quente nos olhos grandes... Olhos que o velho desembargador Brotero comparou, num mote, em casa da marquesa de Santos, a "dois laços de fita preta prendendo duas estrelas". Os laços de fita eram as suas sobrancelhas...

Como a senhora era bonita nesse tempo em que se dançava o solo inglês em salas iluminadas a candelabros de sete velas e se atiravam motes a moços inspirados e pálidos sob a barba em colar! O seu rosto oval de madona de Corregio ia extraordinariamente bem entre os bandós pretos de seus cabelos penteados à polca; e o largo camafeu pendente de um veludo que negrejava no começo do colo branco, emergia de uma nuvem de organdi.

Foi então que a senhora conheceu o Antonio Augusto de Toledo e Lima. Belo nome, belo rapaz. Alto, de uma palidez romântica, cabelos anelados caindo sobre o começo de uma barba adolescente. Espírito sutil e fino. Publicou mesmo alguns sonetos de gosto byroneano no Pharol Paulista. Era íntimo de Álvares de Azevedo, com quem ceava todas as noites sardinhas e bolos-de-bagre, nas tascas do caminho de Santo Amaro. Filho do velho brigadeiro Toledo Lima, dono de um velho sobradão de quatro sacadas no Largo da Forca.

Rapaz de dotes! - dizia sua mãe. Mas um pouco estróina! - comentava seu pai. No fundo, era apenas um romântico besuntado de literatura byroneana.

Mas, como eu ia dizendo, foi então que se falaram pela primeira vez. Eu bem sei que ele já lhe tinha visto várias vezes em saídas de missa na companhia da senhora sua mãe, que Deus haja. Mesmo através do ralo da rótula, muitas vezes o seu cabeção de rendas arfou ao lhe entrever a calça branca bem engomada e o seu robição de pano inglês...

Mas nunca também se falaram, creio. Confesse por isso que a senhora ficou um tanto emocionada quando ele a veio tirar para uma polca.

Às onze, antes do chá, a marquesa, vestida de cetim Macau, com uma pluma de marabout nos cabelos ainda pretos, bateu o leque de tartaruga da mesa para o mote. Houve um proximar de cadeiras, um abanar de leques mais nervoso e um brilhar mais vivo de lantejoulas. Foi então que o desembargador Brotero, "servidor das musas", como ele próprio se chamava, muito vermelho sob a barba passa-piolho, glosou o mote na comparação das estrelas.

Mas a sua maior sensação foi quando José Augusto, pálido, sob a luz do candelabro de sete velas, recitou, de lenço na mão, a sua poesia de tão fino sabor romântico, Amor e Martírio, enquanto o velho piano soluçava a Dalila baixinho...

Enfim, por todo aquele ano de 1850, nunca a senhora deixou de esperar, à tarde, debruçada sob as adufas levantadas dos balcões de sua casa, inquieta e recendendo água de Benjoim, o Antonio Augusto, de chapéu catimplora e calças de ganga amarela, furiosamente esticadas sobre os borzeguins de polimento que passava caracolando no seu esplêndido cavalo preto.

Era o momento de mais raro enlevo de seu dia de menina. Momento que a recompensava largamente dos pequenos aborrecimentos. Lembra-se? A tarde antiga caia azul; um carro de boi retardado chiava, ao longe; às vezes, um ou outro banguê recolhia, pesado e sacudindo as cortinas de lona, já os sinos da Misericórdia e do Rosário dobravam para a reza; pregões de quitanda apregoavam bolos-de-bagre; então, num bater de patas sobre as lajes vermelhas de limonito, muito teso, muito bem posto no seu robição azul de pano inglês, passava num olhar e num cumprimento, o Antonio Augusto.

Mais tarde, ao fim da novena, quando já os sinos repicavam, lá fora num grupo de capas escuras o Antonio Augusto lhe esperava dentre vultos embaetados que saíam.

***

Que tardes frias e tristes as de agosto de 1851! A névoa paulistana, desde as seis horas, começava a se arrastar pelas ruas de São Paulo. Dentre a neblina já se acendiam luzes de azeite, um ou outro pregão de quitanda gemia longe numa melopéia negra e sinos de Ave-Maria dobravam longos.

Foi numa dessas tardes que a senhora esperou longamente atrás das vidraças descidas, enleada no seu xale de Tonkin, o Antonio Augusto que demorava. Ele veio tarde, de capote longo e botas altas, e nas suas mãos úmidas e frias de garoa, que apertaram as suas em silêncio, creio bem que sentiu qualquer coisa de abandono e de separação.

Mas foi só mais tarde, sob a luz de candeeiro, enquanto sua mãe fazia bilros sentada num tamborete e seu pai ressonava alto, deitado na rede, que ele contou toda a verdade: ia partir para a guerra, já tinha mesmo se alistado. O país precisa de homens para combater Rosas e a sua tirania! - afirmava ele, com os olhos brilhantes. O tirano argentino tornava-se um perigo para a paz americana! Ele, brasileiro, precisava partir!

- E eu? - talvez tivesse perguntado, timidamente, a senhora.

- Tu, meu amor? Recebes o herói na volta coroado de louros...

Tudo isso, eu soube mais tarde, ele disse com grandes gestos. Havia qualquer coisa de ingênuo e de byroniano nesse heroísmo assim apressado. Mas, era assim toda essa geração: inflamada, retórica, condoreira e ingênua...

Enfim, ele partiu em princípios de outubro num veleiro que levava tropas para o Sul. De vez em quando vinha uma carta longa em que contava as melancolias da separação, as tristezas dos Pampas, a rude vida de campanha, e falava em projetos de casamento. Carta que a senhora relia muitas vezes à luz de petróleo da lâmpada da sua alcova.

Em princípio de 1852, recebeu a sua última carta. Falava alegremente no fim próximo da guerra. Caxias invadia vitoriosamente Montevidéu, as vitórias sucediam-se, e num post-scriptum, anunciava o seu próximo embarque, após a queda do tirano.

Como a senhora ficou alegre então! Mostrou a carta a todas as suas amigas. Projetou-se mesmo uma magnífica festa à chegada dos triunfadores.

Mas, foi só algum tempo depois, que chegaram as notícias da batalha de Monte-Caseros. A batalha fora decisiva; as tropas vitoriosas depunham Rosas; Osório triunfante, aclamado nas ruas de Buenos Aires. Depois vinha alista dos heróis mortos; e entre eles, com pormenores sobre o seu heroísmo - o nome de Antonio Augusto...

Como a senhora sentiu! Longos dias quedou-se nas sombras da alcova, apenas alumiada pela luz de azeite da lamparina do oratório, com os cabelos esparsos sobre o travesseirinho de crochê. Longos e silenciosos dias assim passou, recusando caldos que a sua mãe lhe levava e cafunés da sua mucama Flora. Seu pai assustou-se. Chamou o médico, que aconselhou mudança de ares, distrações, tônicos franceses...

Em 1853 partiram para a Corte. Foi lá que a senhora conheceu o seu falecido marido, Manoel Gonçalves Guedes, nesse tempo ainda viajante e interessado da firma Lopes & Cia., mais tarde Lopes & Guedes.

- Bom partido! - disse sua mãe. Moço de futuro! - comentou seu pai.

A princípio, a senhora chegou a tratar quase mal o pobre moço, quando ele, muito esticado na sua sobrecasaca azul, muito penteado a óleo de babosa, vinha com as mãos suadas tirá-la para um lanceiros. Mas, enfim, aos poucos, a senhora foi se acostumando; no fundo, ele era bom rapaz, coitado! Trazia-lhe sempre um ramalhete de camélias brancas e lenços da Índia para sua mãe.

Enfim, numa tarde do verão de 1856, um pouco mais pálida e ainda emocionada da cerimônia, a senhora saía no seu vestido branco de noivado pelo braço do Guedes, muito corado, de bochechas resplandecentes, de sobrecasaca preta e chapéu duro, enquanto os sinos repicavam alto.

Depois, confessemos, não foi infeliz. Em 1858 teve o seu primeiro filho, o Januário, hoje ministro aposentado. Depois vieram com intervalos as suas filhas: Ambrosina, muito loura, que morreu de croup; Affonsina, hoje viúva do comendador Góes; Maria Eliza, Eduardo, e a sua última filha Eulália.

Eu sei que não foi um casamento de amor; esse "jazia bem morto", como a senhora costumava dizer para si mesma. Mas, apesar disso, a senhora tem tido compensações: é rica, pois o seu finado marido Guedes deixou a firma em bom pé, tem prédios de boa renda e apólices de boas companhias, e a sua famosa fazenda de Cerro Azul que com o seu milhão de pés de café e a sua mata virgem, é ainda, apesar da crise, "um condado", como costumava repetir o seu velho procurador Cunha.

Depois, vai envelhecendo devagar e com serenidade, no meio do carinho respeitoso de seus filhos e netos. E, a não ser um toque de reumatismo que lhe ataca no começo do Inverno, e às vezes uma tonteira, no começo do verão, a senhora "vai indo", como costuma mesmo responder às pessoas que perguntam pela sua saúde.

Vive agora a vida das recordações. Nesse período, as lembranças tomam o tom desmaiado das velhas tapeçarias; perdem com o tempo o colorido violento do presente e ganham as cores suaves do passado... É a idade em que, segundo a frase de Flaubert, "passeia-se dentro das recordações como um fantasma no meio das ruínas".

Sons, perfumes, imagens, tudo lhe faz evocar. Lá estão os sinos tocando, lá estão os sinos cantando uma velha tristeza, tão velha como a sua recordação. Lembra-se? Era a essa mesma hora. A tarde antiga caía azul, já brilhava uma ou outra candeia de azeite; às vezes um banguê recolhia, sacudindo ao chouto das mulas as cortinas de lona; pregões de quitandeira apregoavam bolos-de-bagre; já os sinos da Misericórdia e do Rosário dobravam, como agora, para a reza. Então, num bater de patas sobre as lajes de limonito vermelho, muito teso no seu robição de pano inglês e nas suas calças de ganga amarela, furiosamente esticadas pelas presilhas, nos sapatos de polimento, passava num olhar, num cumprimento e num trote largo o Antonio Augusto!

Lá estão os sinos tocando! Vá para a reza, senhora d. Mecia! Já começaram a acender os lampiões e a senhora, trôpega como está, pode tropeçar em alguma pedra. Vá para Deus; grande Amor e refúgio de todos os amores...


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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