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Ilustração de Belmonte, publicada no livro
Quitandeiras
Maria Euphrasia Rufina da Conceição Vellozo, mais vulgarmente Sinhára, era tida em 1840 por toda a cidade de S. Paulo,
desde a Glória até a Luz, desde o Acú até os Curros, como a mais prestimosa doceira e quituteira da época.
Suspiros e papos-de-anjo, quindins e cocadinha, espingardas e fatias-do-céu, alfiniz e queimados, bolo-de-bagre e pastéis, leitão assado e figo em calda, pastelaria e doces, petiscos e
assados, em tudo isso era perita e famosa... Na geléia de mocotó, e no beiú torrado, no cuscuz de bagre e na queijadinha, era inigualável e completa.
Viúva do major Belchior Vellozo, antigo escrivão da Câmara Eclesiástica, era uma mulher amorenada, baixa, farta de carnes, de rosto redondo e liso, apenas engelhado perto dos olhos.
Dois olhos serenos e bonacheirões, pretos como seus cabelos lisos, sempre repuxados e brilhantes à banha da Holanda. Tinha 50 anos, era irmã da Confraria do Carmo e muito devota.
Morava no Beco da Cachaça, numa casa térrea de rótulas verdes e beirais longos, agachadas entre um renque de casas caiadas que pousavam na descida que dava para o Largo da Misericórdia.
Dentro, desde o corredor esguio que corria da porta da rua, larga, pesada e com ferrolhos imensos, para a varanda de teto baixo, chão socado, paredes amolgadas, errava sempre um cheiro
doce que sabia a canela, a rapé, a incenso e café torrado.
Na cozinha larga e negra de fumaça, onde se remexiam nos tremendos tachos de cobre, a calda dos queimados, era forrada de prateleiras de pinho, cheias de panelas de barro e de ferro,
pratos de estanho e concas de madeira. Ao lado, na mesa escura e lustrosa de gordura, rolavam-se as massas dos pastéis de nata e dos biscoitos de polvilho, os bolinhos de quidungo.
Era ali que todos os dias, desde as 6 da manhã, remexiam-se, gordas, suadas e atarefadas, Sinhára e as suas quatro escravas: Flora, cafuza ossuda e guiné de carapinha alta;
Leocadia, mulata gorda, alegre e de bons dentes; e Merencianna, preta conga, beiçuda e resmungona, e a Graciosa, vulgo periquita, mulatinha viva e desnalgada com um corisco esperto nos olhos.
Era então entre o chiar constante das largas frigideiras de bolinhos-de-bagre e o baque de pilão da mandioca puba, uma rumorosa e contínua grulhada de mulheres:
- Nha Merencianna!
- U!
- Mecê já pôs o doce pra secá?
- Arre Leocadia, ande com isso!
- Sinhá é perciso pô mais assuca?
- Cruz-credo, que purcaria de ovo!
- Graciosa, menina, vai na venda do Chico Metralha e trais duas pataca de assuca!
Fora, no terreno bem varrido, sob um limoeiro grande, o Sabino, moleque achavascado, cria da casa, armava laboriosamente um bodoque.
***
- Cocadinha Sinhá!
- Óia o bolinho-de-bagre!
A noite de baeta negra caíra como uma mantilha sobre S. Paulo; e na melancolia colonial das sete o badalar dos sinos era como se o crepúsculo se tivesse feito som e a alma embuçada do
misticismo beato da Província se tivesse ajoelhado de mãos postas.
Na treva bóiam luzes de azeite, tremeluzem as lanternas de flolha-de-Flandres, as chamas avermelhadas das velas de cera preta e a claridade indecisa dos fogareiros de barro espalha uma
luz mortiça sobre as pedras largas e irregulares dos degraus da Igreja da Misericórdia.
Era ali aos pés da Igreja, na sua escadaria de pedra fruste, que se reunia todas as noites a turba pregoeira das negras de quitanda.
Aqui a Rita Cachinguelê - preta cassangue e lustrosa, que gemia numa melopéia africana e triste, içás torrados e pinhão quente. Ali a Genoveva - mulata baiana, muito dengue, muito
airosa, embrulhada no seu pano da Costa, e que apregoava recamada de corais e figas, cuscuz de palmito e acarajés; acolá Maria Cabinda, cafuza da mesma nação, que vendia farofa de amendoim e bolos de bacalhau, trombuda e solene chupando o pito.
Um sino geme a mágoa antiga de uma novena. Vultos de mulheres de mantilhas caminham para a igreja; um tropeiro em mangas de camisa dá de beber no
chafariz de pedra do largo, a uma besta enfeitada de alamares vermelhos, e sob a claridade encardida do azeite dos lampiões, uma tropa com seus cangalhos longos, e os seus canastros pendentes, toma aparência sobrenatural de animais fabulosos e
pacíficos.
***
- Óia o pinhão miquiquerê!
- Óia o içá pra vassuncê!
Um sino repinicado de fim de novena espalha uma nota viva.
Vultos emantilhados saem, e por todo o largo, mais alto e mais longo recomeça o pregão.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
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