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Ilustração de Belmonte, publicada no livro
Ladainha dos sinos
Dizei, sinos da terra em clamores supremos
Toda a nossa tortura aos astros de onde viemos
Toda a nossa esperança aos astros onde iremos!
Olavo Bilac
Os sinos soluçam na meia luz do crepúsculo, acordando na sua música todo um passado longínquo. Cada nota leva esparsa uma
saudade. Cantam ritmos esquecidos, toadas passadas, toda a lembrança das coisas que morreram. No crepúsculo violeta, eles se agitam no ar como lírios de bronze, evocando toda a saudade das épocas extintas, toda candura, heroísmo e força, desses
tempos cheios de austeridade e fé, que fazia os homens fortes, o caráter rijo e o Reino poderoso.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
E gemem os sinos evocando o passado.
É em 1590: Piratininga surge na taipa grossa do convento jesuíta. A cidadela dos catecúmenos, com a sua muralha de taipa, é o posto mais avançado da civilização. Quatro
portas: duas ao Norte guardadas pela gente de Tibiriçá e duas ao Sul guardadas pela gente de Caiubi, fecham a cidade em botão contra a investida tamoia. A cidadela não dorme, atenta contra os ataques, e toda a horda bugre, acampada extra-muros,
aguarda a investida contra a conquista européia.
E batem os sinos o rebate. Seis sotainas em torno de uma cruz defendem o estandarte jesuíta. A torre do Colégio convoca, no sino grande, as flechas fiéis contra os tamoios
confederados.
Dentre sapezais de além-muros apontam lanças, e flechas emplumadas já voejam esparsas sobre a vila. Buzinam rijamente da atalaia jesuíta; batem a tambores; passam correndo
vultos de cocares; trancam-se com estrondo as portas largas nos cadeados mouriscos; e, pela muralha espessa de taipa de pilão, apontam na defensiva as flechas guaianazes.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
E cantam os sinos a música do passado.
A vila, agora apaziguada, ressurge serena para a vida.
Anchieta, o santo, educa e constrói. Surgem os engenhos, lavram-se os campos, serram-se as madeiras e pelas ruas estreitas da via já se inclinam os beirais de telha nova. Sons
de sinos, leves como vôos de pombas, voam pelo silêncio macio das tardes coloniais e bandos de crianças guaranis, educadas por Anchieta, passam numa procissão, vestidas de branco, cantando hinos ligeiros à Virgem:
Ó Virgem Maria.
Tupan cy êtê...
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
E batem os sinos pelo passado a dentro.
Na manhã clara de sol sobe pelo ar um cântico de missa. Pais Leme, vestido de couro, assiste-a de joelhos, numa contrição profunda que vinca o seu semblante austero, sob a
barba loira que parece entalhada em madeira; leva botas altas de couro cru; cobre-lhe o corpo grande e musculoso um pelote de baeta preta que cai sobre o lajedo em pregas de túnica; e do talabarte de couro vermelho pende uma espada levantina.
No adro espaçoso e empedrado, reúne-se a Bandeira; homens grandes e escuros, de rostos rudes como troncos, trazem uma cruz de peito e um arcabuz de lado e rezam baixo de
cabeça vergada. Na frente, flutuante e larga, na brisa leve, palpita em pregas o pendão dos Lemes; e na retaguarda, entre fardos de lona e bruacas de couro, mamelucos, de olhos metálicos como pontas de faca, vestidos de zuarte, esperam de cabeça
descoberta.
Uma buzina toca rija. Bordões batem pesadamente na terra dura. Um tiro de mosquete estoura no ar. E a Bandeira parte cheia de heroísmo e sonho na manhã clara, entre repiques
de sinos.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
E dobram os sinos na friagem da tarde.
A cidade devota embrulha-se na névoa como uma velhinha em sua mantilha. Os sobradões de beirais longos têm um recolhimento religioso. Batem os sinos e a cidade põe-se a rezar.
Luzes mortiças, trêmulas, agonizantes de azeite, tremeluzem espaçadas pelas ruas estreitas como corredores de mosteiro, pelos becos de torcicolo, pelas lamparinas dos oratórios, suspensas nos cunhais de pedra.
Na sombra passam vultos embuçados em mantéus, voejam abas de pelotes e as nódoas escuras e piramidais das mantilhas resvalam na penumbra. Das rótulas gradeadas como
confessionários sai um bafo de mistério e devoção, e pelas lajes vermelhas de limonito batem as alparcas de couro dos negros que fogem da ronda, enquanto o sino grande do Palácio toca a recolhida.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
E dobramos sinos na noite de baeta escura. Pelas ruas calçadas de pedra miúda, bóiam rosários de luzes; palmas se entrelaçam nas frentes das casas branqueadas a tabatinga e
escravas de trunfa (N.E.: tipo de touca antiga) branca espalham folhas de canela e manjerona pelas
testadas varridas. Tombam das sacadas dos sobradões de taipa tapetes de arraiolos, damascos roxos, brocados carmesins, colchas da Índia e panos do reino. Nos balcões rendilhados à mourisca abrem-se todas as adufas, donde se debruçam sinhás toucadas
de coifas de renda dourada e donas de mantilha preta. Negros vestidos de vermelho já atiram morteiros ao ar, e da Igreja do Colégio, lenta e toda envolva em nuvens de incenso, aproxima-se a procissão do Corpo de Deus.
Abre-a uma companhia de milicianos nas suas fardetas azuis com dragonas prateadas, que segue a procissão de cabeça descoberta, com as suas barretinas na mão. Vem após a
Irmandade dos Passos com seu estandarte roxo franjado de ouro, toda vestida de balandraus da mesma cor. Duplo renque de luzes de círio desfia lento, ladeando o andor processional, e vagaroso, carregado a passo pelos homens bons da cidade.
Nas varas de prata do pálio de gorgorão e ouro, pegam vereadores de barrete e o senhor ouvidor, vestidos de casaca de lemiste e meias de seda preta. Diante da sua cadeira de
dossel franjado de amarelo, forrada de damasco vermelho e maçanetas da mesma cor, o senhor governador geral ajoelha-se nas almofadas do estrado, batendo contritamente nos folhos de sua camisa de Holanda.
Fecham-na as corporações dos ofícios mecânicos, com as suas danças medievais e militares, pantominando a guerra de turcos e cristãos, atirando para o ar as suas alfanjas de
ferro, fazendo voejar as suas túnicas de belbute vermelho, e as quitandeiras vestidas de branco, com seus xales da Costa, numa dança lenta e lasciva, bamboleando as nádegas grossas entre o rufo das pandeiretas.
Atrás esfervilha a massa densa da multidão: sinhás vestidas de cetim Macau ou damasquilho aleonado, escravas de baetão vermelho e xale, donas de gorgorão roxo e arrecadas de
crisólitas, mucamas de vasquinhas chãs ou de josezinhos de pano francês, marafonas de corpete de soprilho vermelho, saia de cambraia da Índia e galhinho de arruda atrás da orelha, mamelucos de ferragoulos de sarja, senhores de gibões de lemiste ou
calhamaço, escravos de mantéus de droguete ordinário, tropeiros de garnachos de cacheira e moleques de calças de zuarte, todos se empurrando, esmagando atropeladamente as folhas de mangueira e murta nas lajes grossas de limonito ou pedra sabão.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
E choram os sinos na névoa paulistana. No pátio da cadeia, calçado de pedra miúda, passam vultos de capotes que flutuam no ar como bandeiras; luzes de azeite luzem na taipa
branca dos muros; uma fila de lumes escorre lenta da porta grande. É o cortejo do padecente. Não faltam almotacés, esbirros, milicianos, mamelucos, negros e o carrasco na sua murça vermelha.
Na frente, alçada, balançada num ritmo de passos, uma cruz de prata reflete chamas de vela; logo após, entre um quadrado de lanças, junto ao confessor, descalço, sereno,
magnífico, passa Chaguinhas para a forca. Leva uma alva longa e talar que quase arrasta no lajedo úmido, nos pulsos encruzados balança uma cadeia grossa e do pescoço forte pende-lhe um baraço novo.
Atrás, dentre os rebuços negros e feltros afunilados, sacode-se na fria brisa da manhã a bandeira da Misericórdia, e sob os sobradões de beirais abatidos como capuzes, segue o
cortejo para a forca.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
E retine a aleluia dos sinos.
Pelas pedras de limonito bate uma cavalgada marcial. Na frente um moço de costeletas pretas, com o peito constelado de grãs-cruzes, passa a cavalo, num luzir de dragonas do seu
uniforme azul, levando, num tropel de patas e num lampejar de metais que brilham sob as plumas flutuantes como paquifes, dos capacetes dos dragões da guarda, um arranque de independência.
Abrem-se as adufas assustadas, espiam coifas e biocos; da Câmara Eclesiástica debruçam-se na sacada serventes de pena de pato atrás da orelha e da janela do sr. ouvidor, sua
senhoria ainda de robição de chita, segura num pasmo assustado os aros de chumbo dos seus óculos para el-rei que volta do Ipiranga.
E os sinos soluçam na meia-luz do crepúsculo, acordando na sua música todo um passado longínquo. Cada nota leva esparsa uma saudade. Cantam ritmos
esquecidos, toadas passadas, toda a lembrança das coisas que morreram. No crepúsculo violeta eles se agitam no ar como lírios de bronze, evocando toda a saudade das épocas extintas, toda candura, heroísmo e força desses tempos cheios de austeridade
e fé que fazia os homens fortes, o caráter rijo e o Reino poderoso.
Ilustração de Belmonte, publicada no livro
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