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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BIBLIOTECA - C.SANITÁRIA
A campanha sanitária de Santos (1)

Em 1919, o médico Guilherme Álvaro lançou em Santos o livro A campanha sanitária de Santos - Suas causas e seus efeitos (edição do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo/Casa Duprat), que agora ganha pela primeira vez sua versão digital (grafia atualizada - original no acervo do professor e pesquisador Francisco Carballa):

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Dr.Guilherme Álvaro


I - 1548-1772

A localização do povoado de Braz Cubas, junto da praia lodosa, cercada de mangues e de brejões vestidos de vegetação sobrecarregada de bromeliáceas, característica ainda hoje da região beira-mar circundante, não podia ser muito salutar para os seus moradores. Os indígenas não habitavam as margens de Iguá-guassú, aí viviam apenas para pescar na estação seca, fugindo ao inverno serrano, fixando-se então nas praias arenosas do continente, ou da face oriental da ilha de S. Amaro, que a experiência lhes indicava como lugares mais sadios.

Conhecedores dos malefícios dos brejos e dos mangues, os colonos portugueses buscaram as terras mais altas, as do outeiro de S. Catarina a princípio, e logo depois as do morro de S. Jerônimo de onde partia já um caminho para S. Vicente. Em 1546, provavelmente no dia 1º de novembro, Braz Cubas elevou o povoado à categoria de vila, que logo se desenvolveu de preferência para os lados de S. Jerônimo, de onde também mais tarde veio a partir o caminho para a vila de S. Paulo de Piratininga. Só muito depois, pela época da restauração do Reino, o terreno mais baixo existente entre os referidos outeiros foi povoado, surgindo aí a casaria que veio a formar a Rua Direita, 15 de Novembro, em cujos fundos, à beira-mar, se formou a Rua da Praia.

A chegada contínua de colonos reinóis e ilhéus, depois de longas e penosas viagens cheias de desconforto e de privações, trazia para o povoado as doenças de além-mar, algumas das quais foram achando em Santos terreno propício para a sua nacionalização. Deste modo se estabeleceram na vila, juntando-se aos males indígenas, a lepra, a disenteria e a febre tifóide, o tétano, a erisipela e as bexigas.

A princípio, os brancos prosperaram pouco na capitania de S. Vicente, onde era notável a falta de mulheres, reclamadas com instância para o Reino, que respondia recomendando o cruzamento com as naturais do país, cujo bom aspecto era gabado; o conselho foi seguido com prazer, surgindo por isso mestiços numerosos.


"A praia do Consulado em 1889. O casebre visto sobre a ponte era a mesa de Rendas. Atualmente neste trecho encontra-se o grande edifício da Western Telegraph Co.,
à beira do cais de Santos"
Foto publicada com esta legenda no livro A Campanha Sanitária...

É interessante o fato narrado por Hans Staden, pouco mais de vinte anos depois da chegada dos colonizadores, quando encontrou num fortim da Bertioga cinco irmãos, com o apelido de Braga, mestiços de português e de índia tupiniquim. Por sinal que tempos depois foram aprisionados por agente do chefe Cunhambebe e levados para Ubatuba a fim de serem devorados, coisa que não sucedeu por terem fugido, já em Itaquaquecetuba.

Não é possível se apurar dados precisos sobre as doenças reinantes em Santos naqueles tempos, quando além de militares, de um ou outro jurista, e de gente conhecedora de ouro e pedras preciosas, a metrópole nunca mandou para o Sul da colônia homens sabedores de coisas de medicina. Foi com os pajés que os curandeiros de Santos fizeram o seu aprendizado, ajuntando, aos parcos conhecimentos que traziam de além-mar, as crendices e os tratamentos encontrados nas novas terras, muitos dos quais ainda hoje têm voga entre os nossos praianos.

No Norte do Brasil houve alguns médicos portugueses, dos meados do século 17 em diante, sobressaindo dentre eles o que tão bem descreveu a febre amarela devastadora de Pernambuco e da Bahia; mas, daí para o Sul, só no século seguinte apareceram, ainda assim no Rio de Janeiro.

Quando os holandeses se estabeleceram no Norte, trouxeram médicos e naturalistas, escritores de trabalhos mesmo hoje apreciados, contrastantes do descaso com que procedia neste capítulo a nossa metrópole. As ordens religiosas nada nos deixaram sobre a saúde pública brasileira, tendo prosperado entretanto no litoral paulista, onde possuíam recursos abundantes. Os próprios jesuítas, que tanto fizeram pela nossa terra nos dois primeiros séculos de colonização, nada nos legaram a respeito das doenças regionais, procedendo neste capítulo, como nos outros, com o egoísmo costumeiro de guardar para uso da ordem tudo quanto de bom e proveitoso apuravam.

Sabe-se que as maleitas, a disenteria e as bexigas torturaram sempre a povoação de Santos, que, apesar de tudo, cresceu, contando pouco mais de um milheiro de habitantes no começo do século 18. Nesse tempo, os dois núcleos de população, o do outeiro de S. Catarina e o do morro de S. Jerônimo, já estavam ligados com a formação da Rua Direita, partindo do ribeiro do Carmo, em busca do do nome daquele santo. O primeiro núcleo era bem mais rico e populoso, tendo-se levantado nele as melhores casas, os maiores armazéns, ancorando também maior número de embarcações no seu porto do Valongo.

Em 1772 aparece o primeiro recenseamento de Santos, mandado proceder pelo governador da Capitania de S. Paulo, o capitão general d. Luiz de S. Mourão. A população santista subia a 2.081 almas, sendo 942 homens e 1.139 mulheres. Já se estava bem longe do tempo em que estas faltavam na vila, mas o número dos brancos ainda era menor do que o dos mestiços, quase todos ainda de europeus e de índios.

A povoação tinha crescido ainda mais, principalmente para o lado do Valongo, onde continuava a zona comercial mais rica e onde ficavam as hospedarias procuradas pelos paulistanos que vinham a Santos fazer compras, ou tratar de negócios. A ligação com S. Vicente tinha melhorado, sendo o antigo caminho de S. Jerônimo, que descia pelo Jabaquara, substituído por outro, plano, passando pelo Saboó, até onde o acompanhava o de S. Paulo.

A lavoura ainda prosperava na ilha de S. Amaro, com engenhos de açúcar em que começavam a trabalhar pretos africanos, chegados para substituir os índios, raros já e que não podiam ser escravizados.

Nesta época, já se tinha formado a curiosa rivalidade dos moradores dos dois núcleos antigos da população santista. Os "valongueiros" não suportavam os "quarteleiros", estes os moradores das imediações do outeiro de S. Catarina, onde foram levantados os "quartéis", por traz da Matriz. Aqui, a população era mais nacionalista, principalmente cabocla, pescadora, residindo em casinhas que se estendiam pela praia, para além dos referidos quartéis, em direção à embocadura da Rua da Palha, hoje Constituição. Às rixas, das noitadas de folguedos e serenatas, sucederam rivalidades políticas, chegando mais tarde, nos tempos do Império, a se saber as convicções de um eleitor pelo lugar de sua residência. Não havia "valongueiro" que fosse conservador, afirmando-se que um "quarteleiro" não poderia ser liberal.

Com o correr do tempo, a gente dos "quartéis" veio a ter a sua desforra, porquanto a nova Santos se estendeu pelos seus domínios, a praia nacionalista povoou-se até o Paquetá, cintando o novo arruamento com a nova casaria arejada iluminada e alta, que deixou a perder de vista os sobradões de azulejos e os armazéns abarrancados e úmidos do opulento Valongo de outrora.

Com a chegada dos africanos, novos males vieram para Santos. O escorbuto, a sarna, as verminoses, as boubas, surgiram no litoral paulista, onde também o tipo dos moradores veio a sofrer a influência do preto, ajuntando-se os mulatos e os cafusos aos caboclos, já muito numerosos. Prosperou depois o tráfico dos pretos por tal forma, que nos primeiros decênios seguintes o número dos brancos baixou a menos de metade da população de Santos e do litoral paulista.

Ao findar o século 18, as disenterias decorrentes do uso das águas de má qualidade, as hepatites ou abscessos do fígado, as febres típicas ou malignas, as hidropisias, ao lado das bexigas, do "mal de 7 dias", das boubas e do "gálico", eram as doenças mais comuns na vila de Braz Cubas.

A tuberculose já fazia estragos, sendo freqüentes os éticos: o alcoolismo ainda não era muito espalhado, principalmente entre os escravizados sujeitos à rigorosa disciplina das fazendas de cana da ilha de S. Amaro, mas os casos relativamente freqüentes de "barriga d'água", na população livre, principalmente entre a mestiça, preferida já então pela tísica, nos fazem pensar na cirrose dos alcoolistas.

A opilação também não era desconhecida na zona, onde mais tarde se desenvolveria, causando grandes estragos, e Frei Gaspar já apontava a decadência de antigos pontos do litoral, queixando-se de que os habitantes não gostavam do trabalho, tendo abandonado a lavoura que os havia outrora beneficiado e tornado prósperos.

De fato, os gêneros alimentícios, antes produzidos nas vizinhanças de Santos, começavam a vir de S. Paulo, onde prosperava esta lavoura, estando as fazendas da ilha de S. Amaro reduzidas à exploração da cana de açúcar.


"A Rua Xavier da Silveira, em 1890, junto ao Paquetá. Atualmente esta praia foi substituída pela Companhia Docas, que se estende deste ponto até 2 quilômetros acima"
Foto publicada com esta legenda no livro


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