Aspecto fixado no Valongo, no fim do século XIX, quando da construção do cais. À
esquerda, vários veleiros que se encontravam encostados na "Ponte da Inglesa". Os navios atracavam de ambos os lados da ponte. À beira-mar, em plano
mais elevado, notam-se os trilhos por onde corriam os vagões conduzindo terra transportada do Jabaquara.
Ao fundo, a Ilha Barnabé, a construção que se vê na ilha era a do hospital dos
variolosos
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"Supriu a cidade de força e luz e liquidou-lhe os bondes de burros"
A construção da usina de Itatinga, em meio de um ambiente selvático, foi empresa
arrojada - O trabalho penoso e anônimo, nas oficinas da Cia. Docas - Compensavam os paus de bordo a debilidade dos guindastes do cais - Dificuldades
na destruição de uma rocha submersa, no estuário - Antigo engenheiro da empresa, já aposentado, descreve a A Tribuna cenas e atividades do
porto, no começo do século (N.E.: século XX)
Os aspectos da antiga Santos, de que hoje tratamos,
estão ligados ao setor mais importante da cidade - o do porto. Nosso entrevistado de agora, que durante 50 anos trabalhou nas oficinas da Cia.
Docas, disse-nos simplesmente o que foi sua trajetória por aquela empresa, na Divisão de Mecânica, ilustrando sua narrativa, aqui e acolá, com
referências a uma ou outra atividade ou episódio da vida do porto.
O dr. Otto Pupo de Morais, recentemente aposentado, foi admitido nas oficinas da Cia.
Docas em 1903, como operário, com a idade de 17 anos; oito anos depois, graças à sua perseverança e queda pela profissão,
obteve licença da Cia. Docas para dirigir-se à Alemanha, onde se formou em engenharia mecânica. Sente ele prazer em relembrar tais fatos e mais
ainda os primeiros dias passados nas oficinas da empresa portuária, quando ganhava, mercê de algumas aptidões, 4$600 por dia. Localizavam-se as
oficinas no lugar onde hoje está construído o edifício do Moinho Santista, sendo inspetor geral da Cia. na época o dr.
Ulrico Mursa.
Lembra-se o dr. Otto muito bem do trabalho gigantesco representado pela construção do
cais, principalmente no trecho compreendido entre os armazéns 5 e 12, cujas obras chegou a acompanhar, no tempo de garoto, e não esconde sua
admiração pela tenacidade dos homens encarregados de tal trabalho, desservidos pelos poderosos recursos mecânicos dos tempos atuais.
300 homens para uma tarefa ciclópica - "No
trecho em questão - acentuou o nosso entrevistado - vi como se afundavam no lodo espesso,
sobre o qual repousa a cidade, enormes estacas de pinho de Riga. Sobre o estaqueamento, obra do dr. Benjamin Weischenck, é que descansa o tremendo
peso da muralha do cais. A obra, porém, é sólida, pois a madeira submersa é praticamente imputrescível".
Ato contínuo, passou a nos falar de sua atividade na oficina da Cia.:
"- Quando ingressei na oficina, um bom oficial ganhava
ali de 7$000 a 8$000 por dia. Entretanto, em relação aos salários atuais e ao poder aquisitivo do cruzeiro, devo afirmar que os antigos oficiais
encontravam mais facilidade para viver. Um chefe de oficina percebia 600$000 mensais, salário bem razoável comparado com o de um fiel de armazém
(400$000) e com os aluguéis exigidos por uma boa casa de alguns quartos, que ordinariamente se situavam entre 120$000 e 150$000 mensais.
"A oficina se encontrava bem aparelhada, dentro da técnica da época, sem dispor, é
evidente, de recursos hoje corriqueiros, pois em nossos dias tudo é eletrificado e máquinas automáticas dispensam o concurso de equipes de
trabalhadores. Perto de 300 homens se encontravam ocupados nas oficinas; comparados com os 1.000 da atualidade, poderão dar idéia de quanto trabalho
tínhamos que desenvolver, já que toda a orla do estuário estava sendo trabalhada para a construção do cais.
"O trabalho de conservação do material empregado no transporte do aterro e ereção da
muralha do cais era extenuante; não havia mãos a medir quanto a reparos e reformas urgentes. Além disso, tivemos a nosso cargo, na ocasião, a
montagem das dragas e embarcações adquiridas pela Cia. Docas, bem como a construção dos armazéns.
"Pode-se imaginar os estragos causados no material rodante, empregado no aterro de
largas áreas e que devíamos recuperar com presteza, ao levarmos em conta que milhões de metros cúbicos de terra e pedra foram removidos e atirados
no mar. Como se sabe, o arrasamento dos outeirinhos números 1 e 2, que se situavam no Macuco,
pouca expressão teve: tornou-se necessário ir buscar terra no Jabaquara, através da instalação de um caminho de ferro de
bitola estreita. Também no local conhecido como Duas Pedras - zona em que se situa o prédio do Corpo de Bombeiros - retirou
a Cia. Docas boa quantidade de aterro".
Carlos Chagas, o famoso cientista saneia Itatinga - Excluída a construção do
cais, qual teria sido o trablaho de maior vulto que interessasse à cidade e ao porto? O dr. Otto apontou-nos logo a construção da
usina de Itatinga:
"- Foi um grande empreendimento; graças a ele pudemos
fornecer energia consumível pela Cia. e vender, ainda, força e luz à cidade. Pese-se o que isto representou para Santos: a modernização não só de
sua iluminação, como a ampliação de suas indústrias e, sobretudo, a substituição dos bondes de burros pelos rápidos carros elétricos. Trabalhei na
usina antes e depois de minha diplomação.
"Foi em 1906 que realizamos os primeiros trabalhos de preparação do local, em plena
mata virgem. O material era conduzido, em grande parte, pelos tortuosos canais do mangue - rota ainda observada - até a fazenda de Pales; a partir
da fazenda, fomos obrigados a aterrar zonas baixas e alagadiças e instalar uma estrada de ferro, de 7 quilômetros e meio de
extensão. O trabalho desenvolvido em Itatinga foi muito penoso; tivemos que construir um canal de 3 quilômetros, para
captar as águas do rio Itatinga, a 600 metros acima do nível da estação geradora. Parte do canal foi perfurado em rocha de grande dureza.
"A maleita, por sua vez, fazia enormes estragos entre o pessoal, levando, às vezes,
num único dia, uma dezena de trabalhadores ao hospital. Nessa altura, indicado por Osvaldo Cruz, foi a Itatinga o dr. Carlos Chagas, cientista cujo
nome alcançou reputação mundial. Em pouco tempo o dr. Chagas saneou o lugar, tornando possível o normal prosseguimento das obras.
"A construção da usina possibilitou ainda a adoção, em 1911, dos primeiros guindastes
elétricos do porto, em substituição daqueles hidráulicos, instalados a partir de 1893. De reduzida força, os guindastes hidráulicos eram
movimentados pela compressão de água fria, operada nas casas de máquinas existentes, uma, perto ao atual
Western Telegraph, e outra, fronteira ao Moinho Santista. Em número de 31, os guindastes hidráulicos estiveram em
funcionamento até há alguns anos.
"Em 1903, a descarga de um volume pesado - uma locomotiva, por exemplo - exigia a
intervenção de paus de bordo (N.E.: os paus-de-carga eram guinchos montados nos mastros, com braços em cujas pontas
corriam os cabos para o içamento das cargas), que eram destinados a levantar e depor a carga no cais. Hoje, há mais de
150 guindastes elétricos, somente na beira do cais, sem contar os volantes, a motor. A cábrea flutuante Sansão,
por si só, é capaz de erguer 150 toneladas, isto é, várias vezes o peso global que todos os guindastes hidráulicos de 1903, em conjunto, podiam
levantar".
Recordações principais - "Bastante trabalhosa
- prosseguiu o dr. Otto - revelou-se também a destruição de uma rocha submersa, que, até certo
ponto, constituía perigo à navegação. Situava-se ela no estuário, defronte ao nosso conhecido frigorífico (N.E.:
armazém 26 externo, fronteiro à Santa, e que no final do século XX foi transformado em terminal turístico de passageiros).
Para a tarefa foi necessária a importação de aparelhamento especial, inclusive de um sino hidráulico, que permitisse aos trabalhadores operar
em zona enxuta, no fundo do mar. Milhares de metros cúbicos de pedra foram então removidos".
A essa altura, para término da entrevista, perguntamos ao dr. Otto os episódios que
reputava mais curiosos ou importantes, ligados à sua vida profissional ou à do porto:
"- Posso resumi-los a quatro
- respondeu-nos -. O primeiro, dramático, refere-se ao incêndio do navio italiano Madona Dalla Costa, ocorrido
ali por 1900. Foi coisa apavorante: o barco ardeu como uma caixa de fósforo. Ficou tão imprestável que o arrastaram de qualquer jeito para os lados
do rio Jurubatuba e lá o atiraram ao mangue.
"O segundo episódio tem também cor trágica e diz respeito a uma explosão verificada na
Rua General Câmara, à altura da Rua Eduardo Ferreira, com um carretão carregado de dinamite. A explosão, tremenda, fez
desabar alguns prédios próximos e destelhou uma igreja (creio que a de S. Benedito).
"O terceiro se entende com o meu regresso da Alemanha, depois de minha diplomação. O
ambiente já estava carregado por lá (isto foi em 1914), mas foi somente depois que pus os pés no cais de Santos que a guerra rebentou. A notícia das
hostilidades parece que causou menos rebuliço que o da segunda guerra mundial; atribuo ao fato de, em 1914, não se contar com a rádio-difusão e os
inumeráveis jornais de hoje, que tanto facilitam o conhecimento dos últimos sucessos mundiais.
"O quarto episódio, infelizmente, foi, para mim, o mais doloroso e decorre de minha
aposentadoria. Sinto, a cada dia que passa, maior falta do ambiente agitado da oficina, a que me viciei durante meio século e onde ficamos ligados
uns aos outros pelo espírito de equipe.
"Aliás, é setor da Docas que vive afundado em contínuo anonimato; sua importância é,
talvez, subestimada por algumas pessoas, porque, à falta de maior divulgação, não pode o leitor avaliar o quanto de dedicação, de amor ao trabalho,
são necessários para que ela cumpra suas finalidades, adaptando-se a todas as inovações, suprindo a carência do material de importação, conservando
e reformando o imenso material que a Cia. Docas utiliza e sem o que não seria possível o funcionamento sincrônico desta imensa oficina de trabalho
que é o porto de Santos".
O dr. Otto Pupo de Moraes falando a A Tribuna:
"Um único guindaste flutuante, dos modernos, o Sansão, ergue peso várias vezes
superior ao que podiam levantar, em conjunto, todos os guindastes hidráulicos existentes em 1903"
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