Capítulo 3
– Narrativa e território da estiva
3.2
As ruas do Macuco e o cais – o espaço do porto e sua descrição literária
O Macuco escolhido por Ranulpho Prata para ambientar Navios Iluminados é um
espaço literário em que seus personagens caminham 15 minutos da casa ao cais. Esses percursos realizados pelos principais personagens do romance
marcam a narrativa cujo enredo se desenvolve entre o final de 1926 e 1931.
Navios Iluminados não é o romance de uma cidade, é o romance de um bairro; é no Macuco e no cais do porto que a ação acontece.
Suas ruas, o cais, chalés e bares formam o único território por onde os trabalhadores do porto se movimentam sem desconforto. O resto da cidade não
lhes pertence; para alguns como (o personagem principal) José Severino de Jesus é até hostil
[174].
O autor isola o bairro portuário dos demais locais da cidade. Os casarões da orla nos
bairros José Menino e Gonzaga não estão no livro, nem as duas avenidas que ligam o centro antigo à barra. Para o autor, os outros bairros da cidade
surgem como obstáculos aos personagens, que devem contar com a sorte, planejamento e o dinheiro contado para o mínimo possível de despesas.
O protagonista só deixa o bairro ou a área portuária em ocasiões específicas. Em uma
delas, quando casa, José Severino toma a barca no Paquetá e vai até um cartório em
Guarujá que cobra menos pela certidão de seu casamento com Florinda, mas o enredo não se demora por ali, José Severino vai à cidade vizinha e
volta em uma linha (p. 39).
As outras três ocasiões em que deixa o bairro são relacionadas ao trabalho: a primeira
ocorre quando seu amigo e conterrâneo Felício, já há mais tempo em Santos, leva-o à "casa magnífica" do doutor Constantino, influente na Companhia
Docas de Santos (CDS), para que ele pudesse apadrinhá-lo a lhe garantir uma vaga na empresa. Depois de garantir a vaga, José Severino vai do Macuco
a pé até o Centro, onde na Praça Mauá deve tirar um retrato – o primeiro de sua vida – para os
documentos de admissão.
Nesses dois momentos destaca-se a inabilidade do protagonista fora
de seu meio natural, o trabalho
[175].
Na casa de Constantino, José Severino se constrange com a simples presença das filhas do anfitrião, que percebem o desconforto do protagonista e
riem dele. A chegada de outros visitantes da mesma classe social que Constantino causa o mesmo efeito.
O desconforto continua entre os corredores do edifício da inspetoria quando, depois de
passar pelo portão principal com o cartão de Constantino na mão, José Severino passa a tratar com funcionários burocráticos, diretores e médicos, e
o personagem chega a temer ter que passar pelos exames de raios-X para a admissão na companhia.
A terceira ocasião de saída do bairro ocorre quando Severino, depois de algum tempo já
com tuberculose, decide se internar no pavilhão de tuberculosos, no último andar da Santa Casa – construída junta à encosta sul do Monte Serrat (o
lado do morro que não se vê na foto).
Da janela do dormitório do pavilhão, o personagem pela primeira vez consegue perceber
a cidade que se espalha para além do cais e do Macuco. Reconhece os limites das moradias, a disposição em linha dos armazéns, os vapores alinhados,
a ponta dos guindastes e a fumaça das locomotivas, território e visões familiares. Para além do cais, ele divisa Guarujá,
Itapema, a Ilha Barnabé, os mangues até a Serra do Quilombo,
já em direção ao planalto.
Em sentido contrário, a orla, com praias, jardins, hotéis e pensões de luxo, de um
ambiente oposto ao do trabalhador Macuco. Era a parte da cidade a qual José Severino só teve acesso para pedir emprego, "refrescada pelo sopro do
mar, com gente ociosa no hall dos hotéis, bebendo, tomando banho, espiando as mulheres", cujas festas no Cassino do Monte Serrat – ao lado da
Santa Casa – o impedem de dormir.
Anúncio de 1937 na revista Flamma
mostra o Cassino do Monte Serrat; à esquerda, o centro e antiga área
colonial, à direita o sistema de bondes funiculares em funcionamento. O texto indica que os bailes duravam até as 23h30
[176]
Imagem: revista Flamma (ano XVI, nº 1, janeiro de
1937), acervo de Márcia Rodrigues da Costa.
Reprodução da página 116 do arquivo da dissertação
O Macuco e sua umbilical ligação com a atividade portuária surgem logo no primeiro
capítulo:
Da rua, vinham os ruídos de todas as manhãs, muitos seus conhecidos: o bonde que
passava, trepidante, na outra rua, a Senador Dantas; a buzina do automóvel do leite desnatado; as carrocinhas de pão.
De repente, as cinco sirenes das docas bradaram nos ares, levantando o
Macuco em peso, o grande bairro onde se alojava a maioria dos seus cinco mil operários. (NI, 13)
Prata descreve o bairro
"madrugador" sob a perspectiva do protagonista, José Severino de Jesus. Pelas ruas do Macuco de Prata, alheias à cidade da "gente ociosa",
carrocinhas de leite cruzavam com entregadores de pão e o bonde corria ao longo do cais apinhado de operários que moravam em ruas compridas que se
entrecruzavam, sem calçamento, ladeadas de chalés de madeira, cuja principal referência era o edifício da Inspetoria Geral da Companhia, que o
narrador descreve como "grande", na Avenida Rodrigues Alves, por onde "passava de dez em dez minutos o bonde 5".
Além da avenida, os
personagens do romance andam pelas ruas João Alfredo, Xavier da Silveira, Manuel Tourinho, Senador Dantas e outras cujos nomes se mantêm ainda hoje.
A sede da Companhia Docas de Santos era referência, não apenas visual, mas também da vida sócio-econômica do bairro. Em suas calçadas se aglomeravam
os desempregados atrás de uma vaga de trabalho. No horário de almoço, as mesmas calçadas se transformavam em refeitório, onde esposas e filhas de
estivadores levavam em panelas cobertas por panos o almoço de seus maridos e pais.
Na esquina das avenidas
Senador Dantas e Rodrigues Alves, Severino costumava freqüentar o bar Ao Gaiato de Lisboa. Com outro nome, é uma padaria que está lá hoje no lugar.
É no Ao Gaiato que os trabalhadores do bairro se reúnem para uns aperitivos ou para consultar a seção de classificados do jornal A Tribuna
(ainda publicado nos dias de hoje) atrás de oportunidades. O bar, acompanhando o horário dos embarques e desembarques, fechava tarde, para mais de
meia-noite, quando as ruas do bairro já estavam "desertas". Eram ruas com valetas e pontes de tábuas.
É na
Rua João Alfredo que fica o chalé do português Manuel Milagre. De lá, Milagre e seus dois inquilinos, José Severino e Felício, caminham por 15
minutos até o cais. O primeiro, com décadas de serviços prestados à companhia, dirige-se ao guindaste; os outros dois vão para a carga ou serviços
gerais. Milagre, empregado da companhia desde a primeira década do século XX, se não fosse um personagem, seria um dos 23.055 portugueses que
somavam 25,89% da população de Santos em 1913
[177].
O cais e o porto
funcionam como "máquinas narrativas" da literatura de identidade proletária desde o primeiro capítulo. Em sua primeira aparição, o porto surge como
espaço das trocas:
A chegada dos navios que lentamente atracavam, às vezes depois de
manobras custosas. A labuta sem fim de lhes encher e esvaziar os ventres. Desembarcavam-se trigo da Argentina, vinhos de França e Portugal, mármore
da Itália, carvão da Inglaterra, aço e ferro da Alemanha, maquinismo dos Estados Unidos, cimento e bacalhau da Noruega, óleo da Holanda, sedas e
porcelanas do Japão, adubos da Bélgica, massa para papel da Suécia, enxofre do Chile, juta e chá da Índia.
Embarcavam-se café, laranja, banana, algodão, fumo, carne.
Um formigueiro de homens suados, barulho de guindastes, locomotivas
arfando, vozes, gritos, apitos. Um dia dos diabos, que azoava a atraía Severino. (NI, 17)
O movimento não era só
de trabalho. Os próprios navios, em suas idas e vindas, causavam reações nas pessoas. Nas partidas dos transatlânticos, as pessoas se emocionavam
com os apitos curtos e a música de bordo e ficavam melancólicas no cais com o silêncio e a tristeza tomando o lugar vazio do navio. Em Severino, as
partidas causavam uma vontade de ir junto, "seguir para diante, correr terras, conhecer o mundo".
Outra imagem
característica do universo portuário que aparece em Navios Iluminados é a disputa por vagas na Companhia Docas de Santos pelo contingente de
reserva de mão-de-obra:
Os magotes de homens que queriam trabalho abarrotavam o passeio da Inspetoria, atrapalhando o tráfego do bonde 5.
Gente de todas as partes do Brasil e de todas as partes do mundo. (NI, 20)
A reserva de
mão-de-obra causada pelo contingente à procura por emprego foi analisada por Maria Lucia Caira Gitahy:
Faz parte do interesse dos empregadores manter um número maior de trabalhadores que o necessário para atender ao
movimento normal do porto, garantindo-se para os momentos de pico. Nestes momentos até o mais ocasional dos trabalhadores é utilizado.
O trabalhador do porto que desempenha um trabalho árduo, perigoso, e que não tem certeza de
encontrar trabalho, acha mais seguro submeter-se às oscilações do mercado de trabalho em um único porto do que ter que se locomover a outros lugares
onde as chances de encontrar trabalho são ainda menos previsíveis. Este aspecto e a especialização reforçam-se mutuamente e agravam a situação dos
trabalhadores menos regulares
[178].
Para se conseguir o
disputado emprego, é necessária a ajuda de uma indicação. Felício, o amigo com mais experiência na cidade grande e que já trabalha na estiva,
promete a Severino apresentar os contatos que poderão fazê-lo entrar nas Docas. Felício tenta ao máximo se aproveitar do "conhecimento" com quem tem
poder, no caso, o doutor Constantino, mas não vira as costas para os colegas e até arrasta Severino para as reuniões do sindicado. É dele a primeira
descrição das condições de trabalho do cais santista em 1927:
- Vou ao banho. Estava embarcando caroço de algodão. Amanhã o corpo é
puro calombo. E vai coçar que é uma desgraça. (NI, 22)
Ao longo do texto, o
autor apresenta novos comentários de Felício sobre as relações trabalhistas:
– Pois trabalho porque sou obrigado, porque preciso comer e vestir.
Mas vivo renegando. Suor é lágrima que sai pela testa, seu Manuel, ninguém me tira disto. O mais é conversa fiada, é floreio, tolice de quem quer
dar coragem aos bestas. Aí porque trabalho é nobreza, distinção e não sei o que mais. Quem diz isto são os que não fazem nada, não levantam uma
palha. Ficam de fora, atiçando os outros. E o proveito de quem é? Garanto que não é de quem derrama o suor. (NI, 44)
Após conseguir o cartão
de visitas de Constantino, Severino consegue enfim uma audiência na companhia. Passa por salas, conversa com diferentes funcionários e aguarda
ansiosamente pelo resultado, como se fosse uma sentença, na descrição do autor. Mas Severino não passa de um nome nordestino a mais na fila por
emprego, como comenta Meira, um dos funcionários:
– Oh, com os diabos! Isto não acaba mais. Só parece que as populações
de Portugal e do Norte vieram se empregar na Companhia. (NI, 34)
Nas oficinas da
companhia, onde conseguiu o primeiro emprego, Severino entra por um dos portões ao lado da Inspetoria. É lá onde encontra os dois relógios de ponto
com as tabuletas cheias de cartões azuis com o nome dos colegas das oficinas ("para mais de oitocentos"). Seu primeiro serviço é, de posse de um
martelo de ar comprimido, limpar ferrugem do casco de um navio, para o qual recebe uma única instrução, mexer no gatilho:
Mal Severino tocou no lugar indicado, o martelo disparou a vibrar de
tal modo que ele teve medo e quase o largou no chão. Manteve-o, porém, firmando-o nas duas mãos, acocorou-se e encostou a extremidade no casco
ferrugento. Aí a vibração e o barulho aumentaram danadamente, forçando-o a mantê-lo com sustância de encontro à chapa, de onde saltavam grossas e
negras escamas de ferrugem que lhe caíam em chuva pelo rosto, entrando pelos olhos, pela boca, pelos cabelos. (NI, 46)
Novamente, o comentário
é de Felício: "Trabalho, todo ele é muito péssimo. Tanto faz um como outro". E, depois de ter contado ao amigo que levara a tarde descarregando
caixas de bacalhau de setenta e cinco quilos cada uma, comenta que aquela situação ainda iria acabar mal. Observa que nenhuma mercadoria poderia
passar de 60 quilos, mas naquela ocasião já carregavam bacalhau e sacos de grão-de-bico com 70 quilos, até 80 quilos. Diz que ninguém agüenta a
ferragem e que o sindicato devia olhar para isso.
Na stampa,
máquina onde os rebites das placas de aço dos navios eram trocados, "os rapazes mediam forças. Centelhas finas, como estrelinhas de São João,
saltavam de todos os lados, ferreteando a carne dos braços". Antes de receber o primeiro salário, Severino sofre o primeiro acidente.
Logo na segunda semana de serviço, ainda inexperiente, um rebite, na
hora de ser colocado, saltou do orifício da chapa e voando, como um besouro, veio direitinho posar no braço de Severino, levantando fumaça e
espalhando um cheiro de carne chamuscada. Foi uma dor dos trezentos diabos. Severino não suportou, afrouxou repentinamente o ‘casco de burro’ e
botou a mão em cima da ferida. (...) Levou mais de quinze dias com a chaga, fazendo os curativos na associação.
No fim do mês, descontando os domingos, a contribuição da Caixa, da
associação e do sindicato, para o qual Felício o forçara a entrar, Severino recebeu duzentos e poucos mil-réis. Foi uma decepção que sofreu, ficando
desconsolado. Tanto trabalho e um ganho tão mesquinho que não chegava para as despesas. Em Patrocínio, representava muito, era dinheiro, na verdade,
mas numa cidade como Santos, com tanto gasto forçado, era uma bobagem. (NI, 51)
Aparecem também os
conflitos entre os portuários por causa das diferenças de idade e origem. Conflito surge o português Milagre, há mais de vinte anos trabalhando para
a Companhia, já com casa própria, e o próprio Felício, que vê sua categoria como explorada.
Milagre achava a vida boa e Felício ruim; para Milagre tudo estava
muito direito, as coisas marchavam sempre bem; para Felício estava tudo torto, precisando de consertos radicais; Milagre sujeitava-se docilmente ao
trabalho, Felício revoltava-se; Milagre era amigo da Companhia, Felício, não. (NI, 66)
Já trabalhando como
foguista na draga Valongo, José Severino recebe outro conselho do amigo sobre como contornar as conseqüências de um turno de trabalho: "vamos cair
n'água, senão você não dorme um minuto, o carvão não deixa, lhe roendo o couro".
Há também a preocupação
com a automação dos carregamentos. Em uma passagem, a turma 65 comemora que o armazém 11 não tinha dala (prancha para operações de carga e descarga
que conduz as cargas) para esvaziar o America Legion, que acabara de chegar. O equipamento era considerado um "maquinismo que lhes fazia grande mal,
enchendo, ele sozinho, os porões mais fundos, em pouco tempo, na maciota. O danado era um concorrente sério, roubando deslealmente o ganho do
pessoal". No caso, ganhariam ainda 150 réis por saca carregada.
Em outra oportunidade,
a turma 65 testemunha o uso de um novo mecanismo, a grab, e o perigo da automação para seus empregos:
O barco vinha de barriga cheia, a ímpar, a carga beijando a boca da escotilha. A máquina escancarou as mandíbulas
medonhas, enterrou os dentes na massa negra e derramou na galera três toneladas de carvão de uma só vez. Chegara recentemente e eram as primeiras
experiências que se faziam.
O pessoal da turma 65 espiava, curioso, o manejo da bicha. E ante os olhos surpresos, o porão foi-se esvaziando
rapidamente. O demônio da máquina, sozinha, fazia o serviço de muitos homens, que ali estavam a olhá-la de braços cruzados e faces apalermadas. (NI,
104)
A cena provoca reação e
os trabalhadores iniciam um protesto em frente ao armazém 23, onde o equipamento operava. Turmas que trabalhavam nos armazéns vizinhos se juntam aos
da 65. Após o feitor ter tido com o feitor-geral, que foi ao superintendente e, este, ao inspetor, e depois de boatos de incêndios, greve e
desordem, chega um comunicado que ordena o paralisação do serviço pela grab (batizada de grife pelos trabalhadores), o que bastou para
dissolver os reclamantes, que deixam o local fazendo comentários:
- Bom negócio este
da gente corta o dia pelo meio, por causa da peste de uma máquina que não tem filho, nem mulher para sustentar (diz o personagem Perigo).
- A dala já foi a
morte pra nós, e agora esta grife do inferno que vale por não sei quantos homens. (diz Felício).
- Eu só quero ver o
que o governo faz deste povo, quando os mecanismos tomarem conta de tudo. (Severino)
- Reúne tudo na ilha
Barnabé, como gado em curral e toca fogo nos tanques de gasolina e óleo. É a providência mais acertada que eu acho. De minha parte até agradeço o
benefício (Felício novamente, "com ares cínicos").
Fizeram estes
comentários descendo ao porão do navio que, mais tarde, os encheria de carvão, "só tendo de branco os olhos e os dentes".
A
década de 30 é marcada pelo impulso à mecanização; são instalados descarregadores pneumáticos para trigo e aparelhos para o embarque mecânico de
café e cereais. Foi também o momento em que guindastes elétricos de grande capacidade começaram a funcionar
[179].
Em
1948, a estrutura atingiria a marca de 100 guindastes, 32 cavalos mecânicos, 43 empilhadeiras, seis embarcadores de café e seis descarregadores
pneumáticos de trigo
[180].
Os acidentes de
trabalho, por sua vez, não escapam da descrição de Prata:
Foi o velho Peniche, o "ceguinho", que sofrera um tranco. Peniche tinha o olho direito inutilizado, da cor de ovo
cozido, não enxergando desse lado, de modo que ao virar o rosto, no arre-arre da lingada, bateu na bola de cem quilos que desce na ponta do cabo. A
pancada foi forte, porque o velho emborcou, com um animal golpeado na nuca.
Os companheiros, num gesto instintivo de solidariedade, acudiram logo, levantando-o e pondo-lhe a cabeça debaixo
da torneira. Apesar do pronto remédio, uma inchação repentina tapou todo o olho do velho. Parecia um bêbado, não se agüentando em pé. Mesmo assim,
quis recomeçar a trabalhar (com medo de perder o) extraordinário. (NI, 93)
Na verdade, Peniche só
parou de insistir em voltar à lida depois que os colegas decidiram repartir o extraordinário com o acidentado. Neste trecho, surgem também os termos
"lombação" (ato de carregar sacos nas costas) e "aliviar", no sentido de afanar, quando Severino é escolhido para levar a parte de Peniche ao porão
onde mora com a mulher e uma filha.
As descrições não
param. As más condições de trabalho se multiplicam com a variedade de volumes como o enxofre a granel que queimava a pele das mãos e do rosto, fazia
os olhos lacrimejarem e cujo único remédio era passar óleo de rícino e esperar descascar "que nem barata".
Em um descarregamento
de carvão, novo acidente acontece:
Por volta de meia-noite, logo que regressaram de um café na cantina,
deu-se o acidente. Como sempre sucede, não se achou explicação para o caso. Não se sabe se a culpa foi do guincheiro que estava desatento, se do
portaló que não via bem o fundo negro do porão já quase limpo da carga ou do próprio Perigo. O fato é que só havia duas caçambas embaixo. Uma já de
cogulo e a outro Perigo e Pepe acabavam de encher, acurvados.
Engatada a primeira, o portaló deu sinal de arribar e não se sabe como
lá se vem o diabo da caçamba abarrotada e pega o Perigo pelas costas, atirando-o violentamente para um canto, como uma bola na parede. Gritos,
muitos gritos. Suspensão rápida de trabalho. O Malhado desceu ao porão, apressadamente. Atrás dele, foram o portaló e o pessoal da galera.
Lá no fundo, Perigo, cercado pelos companheiros, estava estirado num
leito de carvão, confundindo-se com ele. Puxaram-lhe a lâmpada para perto do rosto. Roncava como se estivesse dormindo, botando pelas grandes ventas
dois canudos de sangue. O tórax hercúleo ia lá e vinha cá, numa respiração difícil, de quem tinha fome de ar. (NI, 109)
Para ser levado do
porão ao cais, os colegas usam o próprio equipamento que transportava o carvão:
O inconveniente era o ferido ir embolado, mas num minuto estava em
terra. O negro Perigo virou carvão de verdade, dando o seu passeio pelos ares e indo pousar na galera, de onde o retiraram, levando para o pátio. A
ambulância não tardou. Pepe, que não quis mais trabalhar, ofereceu-se para o acompanhar ao hospital. (NI, 110)
Severino, que presenciou seu primeiro desastre, quis largar o serviço, mas ouviu do feitor que isso acontece em toda parte, era "do trabalho". A
turma 65 tinha que voltar para que o vapor saísse às seis horas. Apesar de ponto alto na carreira dos trabalhadores manuais do porto, era comum na
estiva ser difícil economizar. Tinha trabalhador que economizava em alimentação para o salário render
[181].
As citações de
atividades do sindicato em Navios Iluminados são poucas e pequenas. No capítulo cinco, o autor mostra a ligação do sindicato dos
trabalhadores do porto com os de São Paulo através do personagem Valentim, filho de Miguel Simões, português caldeireiro da companhia que, assim
como Milagre, já trabalhava para a CDS há mais de trinta anos.
Tinha a sua roda, os seus admiradores e, até, discípulos. O seu nome
subira a serra e chegou a São Paulo, onde também fizera amigos no meio operário do Brás, em cujos sindicatos já discursara em sessões agitadas. (NI,
26)
Em O Porto Vermelho:
A maré revolucionária (1930-1951), Rodrigo Rodrigues Tavares mostra que, conforme a teoria marxista, a concentração de trabalhadores em um
espaço reduzido e a serviço de um único empregador (no caso, os moradores do Macuco e a Companhia Docas de Santos) seria um "terreno fértil" para o
aparecimento da consciência de classe.
Ele
defende que isto não tenha acontecido entre os trabalhadores do porto concentrados no bairro operário devido a alguns fatores: "baixa remuneração,
pouca qualificação, trabalho instável e dependente não só do movimento dos navios, mas também dos operários conseguirem satisfazer os requisitos da
Cia. Docas de Santos ou do Sindicato dos Estivadores"
[182].
Ele cita que na mesma
época os trabalhadores da construção civil eram, na cidade, os que mais tinham consciência de classe e, unidos, mantinham um discurso comum contra
os empregadores. O mesmo atesta Alcindo Gonçalves.
Entre 1931 e 1934 são os trabalhadores da
construção civil que assumem a vanguarda da classe operária local. A Associação de Resistência dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil,
surgida em 1933, liderou neste mesmo ano, a partir de julho, uma greve que dura 87 dias e que, vitoriosa, conquistou reajuste de 500 réis no
salário-hora dos operários
[183].
Em outro momento do
romance, Felício e José Severino de Jesus vão a uma sessão do sindicato, na época com dois mil associados e com sede na Rua General Câmara, para
tratar da destituição do presidente da entidade. Em outra oportunidade, o sindicato se reúne com os sindicatos da construção civil e dos
metalúrgicos para tratar das negociações do salário mínimo. Nesta ocasião, depois de apartes entre diretores do sindicato e de pelegos, Felício,
amigo e admirador de Valentim, então dirigente sindical, agride um dos inimigos políticos e uma briga começa com o final na polícia.
Apesar de contribuir
para o sindicato, José Severino de Jesus não revela qualquer interesse sobre as questões sindicais. De sindicalista ou engajado o autor se limita a
apresentar o personagem Valentim, e mesmo assim para mostrar o conflito familiar causado por suas opções políticas.
Filho de doqueiro,
Valentim era ajustador nas oficinas da Companhia Docas de Santos, figura popular entre os trabalhadores jovens, incluindo os ferroviários da
"Inglesa" (a São Paulo Railway), os funcionários da City (City of Santos Improvements Company, concessionária do serviço de bondes e fornecedora de
gás residencial), das fábricas e dos moinhos. Era leitor de livros e jornais e "figura de proa" no sindicato dos trabalhadores da Companhia, com
admiradores e discípulos, entre os quais Felício.
Seu pai, o velho
Simões, com trinta anos de serviços prestados à Companhia e com relações pessoais com feitores e diretores, tentava demover o filho das "coisas
absurdas que lhe davam tanto que pensar". Até que a situação fica insustentável após uma briga no sindicato em que Valentim se envolve.
Envergonhado pelo
caminho escolhido pelo filho, Simões o expulsa de casa e o personagem de Valentim deixa a história após três ou quatro parágrafos. Ranulpho Prata
não esconde os sindicatos, mas sua estratégia narrativa exclui a organização sindical da trama sem ignorá-la.
Apesar do sindicato dos
empregados da Companhia, a categoria dos estivadores não tinha representação própria em boa parte do período descrito pelo romance (1926-1931):
Sociedade dos Estivadores de Santos [foi] fundada
em 1919 e fechada pela polícia em 1926. Esta sociedade foi a precursora do Sindicato dos Estivadores de Santos que ressurgiu em 1930
[184].
Em
novembro de 1930, o sindicato volta a funcionar como Centro dos Estivadores de Santos (CES), com o objetivo de conquistar a closed shop
(sistema em que os sindicatos controlam o emprego de mão-de-obra em cada atividade) e assim tirar da Companhia Docas de Santos a oferta dos serviços
de estiva [185].
As pressões dos
trabalhadores e sindicalistas fazem com que o CES se torne o único fornecedor de mão-de-obra para os embarques e desembarques (os armadores – os
donos dos navios – preferiram ceder às pressões a perder tempo nas operações com as manifestações e possíveis paralisações do serviço).
Em abril de 1933
(quando a história de Navios Iluminados já tinha acabado), a posição do sindicato se fortalece com a assinatura do Contrato para o Serviço de
Estiva no Porto de Santos entre o CES, Centro dos Empreiteiros e Centro de Navegação Transatlântica de Santos (a assinatura do documento foi
realizada na sede do Centro dos Estivadores). Um pouco mais tarde, em 1939, o governo federal oficializa a closed shop para todos os portos
do Brasil, desde que os sindicatos fossem reconhecidos pelo governo. |