Capítulo 3
– Narrativa e território da estiva
3.3.
Submoradia e tuberculose
Mas Severino não
sobreviveu para ver esse momento de conquistas de sua categoria. Longe das lutas sindicais, Severino tem o trabalho como valor supremo, a que dedica
todas as suas forças. Depois que consegue ir para a estiva e bancar o aluguel de um chalé em que mora com a esposa Florinda, Severino não se
importava com o trabalho desgastante.
Não sentia a ruindade das cargas: o sal e o enxofre que lhe queimavam
o rosto e as canelas; o frio das carnes congeladas; caixas de banha de setenta e cinco quilos que lhe dobravam o lombo; tambores de soda vazando
cáustico nas mãos; os rolos golpeantes de arame farpado.
Só o trabalho podia protegê-lo de necessidades, de resguardá-lo de
aflições, fazendo-o feliz e contente e com ele Florinda e os filhos. (NI, 129)
Até que aparecem os sintomas da tuberculose.
No fim dessa semana,
foi trabalhar no armazém frigorífico. Cá fora um noroeste bravo, sapecando a pele, escaldando a cidade, e lá dentro uma temperatura de 30 graus
abaixo de zero.
Quando o fardo de carne congelada, enrolado de pano branco e duro como ferro, lhe caía nas costas, Severino
encolhia-se, fazia caretas, mordia os beiços. Não era o peso, era o frio que o incomodava, que lhe queimava os ombros como uma cataplasma fervendo.
A tarde toda e a noite até as dez horas, ficou a carrear para a plataforma do armazém os fardos de carne que o
guindaste pegava e depositava nos porões do Witell, que partia ao amanhecer para a Alemanha.
Deixou o serviço com uma dor no peito esquerdo... (NI, 148)
Estava "chumbeado",
isto é, com tuberculose. Na consulta aos doentes do peito, encontra a sala transbordando de homens, mulheres e crianças. De posse do atestado, vai
ao superintendente da companhia, o doutor Custódio. Sua reação demonstra qual o posicionamento do empregador em relação à responsabilidade pela
saúde de seus funcionários. Para Custódio, a tuberculose era resultado da "safadeza, das noites de botequim e mulheres".
Já em recuperação, o
médico aconselha a Severino ainda mais três meses afastado do trabalho, mas doutor Custódio se exalta:
– É o diabo! Você de novo aqui, rapaz?! Não ficou bom? Não ficou bom porque não quis, não obedeceu ao médico.
Vocês são insuportáveis, não há quem os ature. Olhe: vou conceder nova licença, mas com a metade dos vencimentos. É um favor da Companhia.
Arranje-se como puder e dê graças a Deus. Só me apareça pronto para o serviço.
Severino sucumbiu. E, agora, como havia de ser? Estava atrapalhado, com os 'porcos na roça'. Era lá possível
viver com o salário dividido? E ainda devia dar graças a Deus, sim, porque não tinha direitos, nada podia exigir, era uma esmola que a Companhia lhe
fazia. (NI, 152)
Após o prazo, Severino volta ao médico – doutor Miranda – que não acha bom o doente voltar para a turma,
aconselhando Severino a voltar em um serviço leve até estar novamente pronto para estivar. Severino, já endividado, não dá ouvidos e volta para a
estiva. Não agüenta dois meses e acaba encostado no armazém 12, onde separa caixas, varre o chão, faz o leva e traz de ajudantes e do fiel.
Depois de algum tempo
"cozinhando galo", Severino ouve do superintendente:
– O senhor está muito doente, precisa descansar. Se fosse efetivo, podia ser aposentado. Com menos de cinco anos
não se tem direito. Mas não fique triste, vou arranjar-lhe um dinheirinho. A Caixa devolverá as contribuições feitas durante os anos em que
trabalhou. E também a Companhia dará alguma coisa. Com esse dinheiro, porque não volta para o Norte? Guardarei o seu lugar, se ficar bem.
Severino, daquelas palavras todas, só entendeu o essencial: estava despedido da Companhia. Recebendo em cima do
corpo em ruína aquela pancada forte, vinda de supetão, quase caiu. Quedou-lhe a olhar indiferentemente o doutor, com um rosto inexpressivo de bobo.
(NI, 158-59)
Como
no caso de Peniche, a solidariedade dos colegas da turma que acabou sendo uma das fontes de sobrevivência, com as arrecadações levantadas por
Felício. Em 1930, pelo menos, já havia o Instituto de Aposentadoria e Pensões da Estiva, conforme mostra o prontuário 9294 do DOPS, cujos
investigadores acompanharam a inauguração da nova sede em dois de outubro desse ano
[186].
A história de Navios Iluminados acontece em uma época em que morrer por
tuberculose era simplesmente um dos futuros possíveis de quem se iniciava no trabalho da estiva. Nas primeiras décadas do século XX, um carregador
de cargas geralmente contraía a moléstia após quatro anos de "lombação" e morria quatro anos depois. A personagem principal do romance de Ranulpho
Prata não chega à metade deste período médio.
A tuberculose é o ponto alto de uma série de revezes na vida de José Severino de Jesus
e sua vida em Santos é marcada pelos pesos de cargas acima dos limites (bacalhau com oitenta quilos, alho com setenta e cinco), pelos acidentes de
trabalho (sofridos ou presenciados), pela insalubridade dos armazéns frigoríficos ou dos porões em que mora no bairro do Macuco, cada vez piores à
medida que a doença, cada vez mais forte, impede o trabalhador de conseguir seu sustento.
Já casado com
Florinda, pai de um par de gêmeos de uma menina recém-nascida. É nessa situação que Severino começa a sentir os sintomas da doença. Com os
vencimentos cada vez mais reduzidos - já não eram o suficiente para as contas do dia e para mandar recursos para a mãe em Patrocínio do Coité - as
contas nunca fecham. Severino ainda trabalha mais alguns meses, mas é afastado (duas vezes; na segunda licença recebe o salário pela metade).
A esposa passa a
lavar roupa para manter a casa e mesmo assim a renda da família cai a ponto de terem que mudar de um quarto para outro menor e deste para porões,
onde a saúde de Severino se complica de vez. Com a esposa perdendo clientes por causa de sua condição, Severino decide se internar no pavilhão de
tuberculosos da Santa Casa de Misericórdia de Santos. Após mais alguns meses volta para casa e, depois de algumas noites, morre assistido pela
esposa, pelo amigo Felício e por um irmão que o visitava.
O irmão de Severino
surge apenas nas últimas páginas do romance. Sua função é substituir o irmão como mão-de-obra barata nos embarques do cais e dar continuidade ao
martírio do primeiro no chão do cais de Santos. É nesse momento que a obra, além das descrições realistas que apóiam os estudos historiográficos,
faz transparecer seu sentido histórico.
A
substituição de Severino por seu irmão é a representação literária não só das condições em que viviam os trabalhadores do porto, mas também da
substituição daqueles mais de vinte mil mortos da virada do século, logo substituídos pelo movimento migratório que repunha os braços que
impulsionavam o processo de modernização da cidade e do porto. Conforme Ginzburg, a obra assim assume também um caráter de "contributo à compreensão
da sociedade" [187].
Dos quartos de pensão
para os porões cada vez mais afastados do local de trabalho, a trajetória de Severino sublinha a de toda uma parte da população acostumada a viver
em submoradias (como já havia constatado o recenseamento de 1913). No romance, essa parte da população é caracterizada por viver em porões, como a
família do espanhol Peniche, colega da turma 65. Severino o visita para lhe levar sua parte do extraordinário depois que Peniche deixa o trabalho
por causa de um acidente. O espanhol divide um porão com a mulher, uma filha e mais uma criança.
A mulher, sem dizer palavra, escancarou a porta e Severino penetrou no
compartimento de poucos metros, divididos por lençóis de chitão, suspenso em arames. Cada empanada fazia um quarto. O velho ocupava o maior, o que
tinha pequena abertura onde se cruzavam varões de ferro, dando para a rua. Respirava-se um cheiro forte de umidade e bolor. Uma lampadazinha, de
pouca força, toda enegrecida pelas moscas, pendia do teto baixo, de grossas traves em cruz. (NI, 95)
Não era bom nem o
quarto que Severino dividia com Felício no início do romance. Possuía "forro de tábuas finas empenadas". No Macuco, o dia-a-dia dos trabalhadores
era ditado pelas sirenes da Companhia e os desempregados como José Severino liam o jornal diário A Tribuna, que é publicado desde a última
década do século XIX.
Por economia, deixou de comprar o jornal e pouco a pouco foi se
desinteressando dos anúncios. Mas não deixou de todas as manhãs entrar ali no Gaiato de Lisboa, onde fazia seus pequenos gastos e passava a vista na
página da A Tribuna, que seu Agria comprava para emprestar aos clientes da rua.
Depois de alguns minutos, sem ao menos olhar as outras páginas que
traziam o rebuliço do mundo, Severino largou o jornal sobre o balcão, pediu uma caixa de fósforos e continuou a andar. (NI, 15)
Se os estivadores
viviam mal, os descendentes de escravos passavam por piores condições, como neste exemplo dos vizinhos de Severino em seu novo cômodo alugado após o
casamento.
Na casa. Além do cômodo ocupado por Severino, o casal alugara o porão
a uma pequena família de pretos, tão sossegada e tranqüila que passava quase despercebida. Num quartinho dos fundos, dando para o quintal, habitava
um hóspede, o Pato Tonto. (NI, 127)
Um exemplo das
conseqüências da falta de condições adequadas de trabalho e de assistência médica é a situação de Pato Tonto, vizinho de Severino com quase trinta
anos de serviços prestados à companhia. Ele havia sofrido um acidente em que, num porão de navio, oito secas de café lhe caíram sobre as costas.
Depois de meses no hospital, "todo o corpo se desengonçava num balanço sem ritmo", ganha o apelido e serviços mais leves.
Pato Tonto, naquele estado físico, quase não tinha préstimo. Mas a
companhia o foi aproveitando em servicinhos leves, compatíveis com as suas forças. Andou como servente pelos armazéns, lixeiro das ruas do cais e,
afinal, como zelador de mictórios e latrinas do 22. (...) Anos e anos em tal serviço, Pato Tonto acabou pegando um cheirinho de gabinete sanitário.
Quem se aproximava dele, sentia logo a morrinha que se lhe entranhara no corpo. (NI, 128-29)
A situação de Pato
Tonto no Macuco da ficção não é um caso isolado. Ao tentar fazer José Severino desistir de ir para a estiva, Felício descreve as conseqüências do
trabalho de "lombação" no corpo do estivador:
A gente vai-se arrebentando por dentro aos bocadinhos. Primeiro vem a
careca (e Felício abaixou-se para mostrar o crânio, onde o atrito constante dos carregos abrira uma coroa na sua basta cabeleira de mulato), depois
as forças vão minguando, o corpo murcha, o ‘frontispício’ fica que é puro rego. Conheço gente na (turma de estivadores) 65, com vinte e cinco anos,
que parece ter cinqüenta. Não é sopa não. Ganha-se, não há dúvida, mas é arrancar minhoca em laje com as unhas. (NI, 65-66)
A descrição literária
que o autor escreveu para a fala de Felício afina-se com o que escreveu no início da década de 1910 um funcionário do Departamento de Trabalho do
Estado:
Após seis meses carregando sacas de café por dez
horas diárias, o trabalhador do porto perdia o cabelo da parte de trás da cabeça, e depois de cinco a dez anos desse tipo de trabalho, a maioria
deles morria tuberculosa
[188].
Com o desenvolvimento
da doença de Severino, ele e a família acabam mudando para cômodos mais simples.
Quando o dinheiro acabou, Severino mudou-se para outro chalé, na mesma
rua, indo ocupar um cômodo no porão cimentado. Era pequeno, mas limpinho, servido de uma janela. Sobraram alguns móveis e eles estranharam a
mudança. O chalé era antigo e malfeito. O vento, assobiando fino, entrava pelas frestas das paredes. Pedro (um dos filhos de Severino) adoeceu do
intestino. Quando a roda desanda... (NI, 160)
Após a demissão, trocam
o cômodo por outro que o autor reluta em descrever como porão:
Não foi fácil, mas acharam, afinal, à Rua Manoel Tourinho. Era no
porão de uma casa de construção antiga. Entrava-se de lado, por uma porta estreita e baixa, ao pé da escada que levava ao primeira andar. O último
compartimento dos fundos. Antes de se chegar até lá, tinha que atravessar três salões separados por grossas paredes em arco, ocupadas pela oficina
de um tanoeiro italiano.
Barris de todos os tamanhos e feitios enchiam os lados, tábuas
empilhadas, arcos de ferro, um grande banco de marceneiro, ferramentas, lixo. À direita, com uma porta dando para o quintal, tendo quatro degraus de
chão adentro, ficava o buraco onde Severino se entocara com a mulher e os três filhos. (...)
Os encanamentos que vinham de cima, dos três andares, se reuniam ali,
cruzando-se e recruzando-se em todas as direções. Comidos de ferrugem, de juntas tomadas com uma mistura de sebo e fios de aniagem, o que não
impedia o pingamento de líquidos suspeitos.
Num canto, um cilindro de ferro de um metro de altura, grosso como uma
talha: a caixa de gordura, onde se acumulavam todos os detritos e porcarias que desciam das cozinhas. Aquilo, afinal, não era porão, nem cômodo, nem
quarto. Apenas uma invenção do proprietário para aproveitar espaço e aumentar as rendas. (NI, 174-75)
A sublocação dos cômodos dos chalés do Macuco mostra um resquício do
costume anterior às obras de saneamento – na virada do século XIX para o século XX, quando teve início a construção dos canais que cortam a cidade
do cais às praias – de moradias coletivas da parte mais pobre da população:
Prática que
se tornou comum em fins do século XIX, a sublocação caracterizou uma das formas de moradia dos trabalhadores pobres em Santos e trouxe à tona a
questão da oferta de moradia para os trabalhadores pobres, nacionais e imigrantes recém chegados à cidade.
Além da
sublocação, o albergue, a pousada, a vaga em pensões e hotéis funcionavam como estabelecimento comercial, cocheiras, armazéns ou, até mesmo,
restaurantes durante o dia, transformando-se em local para dormir à noite; constituíram o padrão de moradia da população pobre nesse período.
(...) podia
ainda (a moradia) ser constituída de quartinhos de madeira, vagas em sótãos ou porões de casas. (...)
Não havia uma política de moradia para os trabalhadores, aliás como não havia nenhuma política que assegurasse qualidade de vida;
portanto a oferta de vagas de moradia e de emprego não condiziam com o aumento das necessidades de mão-de-obra e serviços
[189].
Em relatório
apresentado em 17 de fevereiro de 1936 ao Conselho Geral da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santos, o provedor da entidade, coronel
Evaristo Machado Netto avalia o atendimento aos doentes com tuberculose, doença que atinge o personagem Severino. O pavilhão de tuberculosos da
Santa Casa – para onde vai Severino – contava então com 120 internos, número que dificultava a aceitação de novos pacientes.
A
Santa Casa chegou até a utilizar um imóvel em Campos de Jordão para criar o Sanatório de Santos, inaugurado em 2 de fevereiro de 1935, com 50
leitos. Em 11 meses de funcionamento, 17 enfermos tiveram alta e nenhum caso de morte foi registrado, mas, novamente, em 1935 a história do romance
já havia acabado e Severino já havia morrido. Nesse mesmo ano, 1935, em um almoço do Rotary Club, o médico Paulo Oliveira lia estudo que informava
terem morrido em Santos 358 pessoas contaminadas por tuberculose em 1932, ano em que terminava a história de José Severino de Jesus na cidade
[190]. |