Capítulo 3
– Narrativa e território da estiva
3.1.
A cidade, o bairro, o romance
O início da ocupação da Vila Macuco data da década de 1880. É conseqüência direta da
expansão da cidade, assim como a ocupação da Vila Mathias, realizada simultaneamente. Os dois loteamentos formam os primeiros territórios da cidade
ocupados para fora dos quartéis – a anterior cidade colonial. As veias de ligação do núcleo inicial aos dois novos bairros são as avenidas
Conselheiro Nébias e Ana Costa, inauguradas em 1887. Paralelas e com seis quilômetros de extensão, elas ligam o Monte Serrat e o bairro do Paquetá à
barra, o que permitiu a ocupação urbana da orla da praia, como indica a figura:
EXPANSÃO URBANA DE SANTOS E SÃO VICENTE - Imagem
publicada originalmente em A Baixada Santista: aspectos geográficos, 3º volume. Apud: ANDRADE, Wilma Therezinha Fernandes de - Santos:
urbanismo na época do café (1889-1930). In: Vários autores. Santos. Café & História. Santos: Editora Leopoldianum, 1995, p. 105
Imagem: reprodução da página 101 do arquivo da
dissertação. Ver detalhes e ampliação original
Em sua história da urbanização santista, Ana Lúcia Duarte Lanna descreve Santos no
momento em que o Macuco e a Vila Mathias são formados. Entre 1874 e 1886, a população de Santos passa de 9.191 pessoas para 15.605. Em 1900,
chegaria a 50.389:
Para os homens que habitavam essa cidade as mudanças eram
perceptíveis. A ferrovia e o movimento do porto, com seus desdobramentos para a expansão do comércio santista eram os sinais evidentes da quebra do
"marasmo colonial". Os recorrentes problemas sanitários vão assumindo nova dimensão. Sem atacá-los de frente parecia impossível consolidar o futuro
que se avizinhava. Tratava-se de se livrar da pecha de cidade insalubre, das sezões e das bexigas
[153].
No meio do caminho, entre 1890 e 1900, os "recorrentes problemas
sanitários" se avolumam em 22.588 mortos, vítimas das epidemias de malária, varíola e febre amarela, praticamente a metade do número de habitantes
na virada do século
[154].
Mesmo assim, a população só aumentava, em 1913 chegaria a 88.967
indivíduos, de acordo com o Recenseamento da cidade e município de Santos
[155].
Medidas de profilaxia e campanhas de saúde começaram a ser realizadas em 1891.
Em conjunto com elas, a política das autoridades públicas se inclinava, como em outras
cidades, ao controle do espaço público. As intervenções sanitárias remodelavam o antigo centro. Nos anos seguintes, a engenharia sanitária cuidaria
de garantir a sanidade do tecido urbano.
Em 1907, uma grande festa marca a inauguração do primeiro dos
famosos canais de drenagem de águas pluviais, marcos da arquitetura local idealizados pelo engenheiro sanitarista Francisco Rodrigues Saturnino de
Brito, cuja construção continuaria por duas décadas. No final da década, a Companhia Docas de Santos constrói suas oficinas e a residência do
inspetor da empresa no edifício nº 01 da Avenida Taylor (atual Rodrigues Alves), que vai do bairro da Encruzilhada ao Macuco em direção ao porto
[156].
Guilherme Álvaro, médico da Comissão Sanitária de
Santos, relata as transformações pelas quais a cidade passava:
Toda gente
concordava que Santos estava se transformando, crescendo continuamente sua população, intensificando-se patentemente a vida urbana, surgindo usos e
costumes novos, resultantes naturais do desaparecimento das epidemias desde 1901. Confiava-se no futuro da cidade, onde casas e terrenos
valorizavam-se continuamente, diminuindo cada mês o número de "diários" que viajavam para São Paulo, ouvindo por toda a parte afirmações de
residência definitiva na cidade.
A própria vida doméstica santista se transformava, generalizando-se o conforto, popularizando-se a instalação de banheiras,
tomando os interiores aspecto de mais gosto, substituindo-se os mobiliários de carregação, fabricados para transporte fácil, por outros mais
cuidadosos e custosos
[157].
Papel importante na resolução da
questão sanitária teve a Comissão de Saneamento do Estado, responsável pelas obras dos canais, cujo encarregado na cidade era Saturnino de Brito.
Seu trabalho era iniciar a construção de nove canais de drenagem da cidade, iniciada em 1907 e que seguiria por mais duas décadas. Em 1910, apenas
os canais 1 e 2 estavam prontos, substituindo antigos rios e córregos que se encharcavam com a chuva ou com as marés
[158].
No final desse mesmo ano,
Saturnino de Brito oferece ao município uma proposta de planta
urbanística. O poder de intervenção da Comissão de Saneamento garantiu ao engenheiro a possibilidade de demarcar os terrenos – públicos e privados –
com o traçado das novas ruas e avenidas, gerando apreensão, dúvidas, queixas e especulação por parte de proprietários, negociantes e poder público.
O engenheiro idealiza a
avenida-jardim Afonso Pena – uma via diagonal em relação ao eixo dos canais e das duas avenidas. Na justificativa da planta entregue à câmara em
1910, ele defende os traçados diagonais e um planejamento que leve em conta também o traçado estético. Chega a se referir aos bulevares de Paris
[159].
Em 1913, ao se pronunciar sobre Saturnino de Brito exigir – novamente por ofício – a aprovação da planta, o prefeito Belmiro Ribeiro mostra-se
preocupado com a especulação imobiliária. A câmara municipal trata o projeto apenas como uma contribuição.
A cidade já estava saneada, e a pressa no combate às epidemias cede
lugar à disputa pelo controle do ritmo e da direção do crescimento da cidade entre comissão e câmara, com as influências e conseqüências sobre os
especuladores e proprietários privados. Os conflitos e a falta de recursos para desapropriações em larga escala atrasam por anos o projeto, mas a
idéia da diagonal acaba sendo acatada, ainda que o projeto original tenha sido modificado
[160].
Anúncio da São Paulo Land Company Limited publicado em
1928 oferece lotes em torno da Avenida Afonso Pena
Imagem: reprodução
da página 14 do jornal santista A Tribuna de 5 de agosto de 1928,
incluída na página 105 do arquivo da dissertação
[161]
Desde 1909, a eletricidade vinha substituindo o gás e a tração
animal nos bondes. Multiplicavam-se os jardins em torno das casas, o porto batia recordes de movimentação. Símbolo desse momento da expansão é a
inauguração em 1922 da Bolsa do Café, numa das principais vias comerciais da cidade, a Rua XV de Novembro, nome republicano da imperial Rua Direita
[162].
A bolsa foi criada com o objetivo de organizar os negócios do café ainda no Brasil, ao
tentar minimizar o peso dos banqueiros e negociantes internacionais na atividade que impulsionava as transformações urbanas que viviam Santos e São
Paulo no período. Nesse momento, a região da cidade mais distante do centro financeiro é a da área do Macuco que ocupa a maior parte das cenas de
Navios Iluminados.
Na imagem a seguir, as ruas e avenidas que estão no romance são aquelas bem próximas
do centro da imagem, em direção à palavra "estuário", escrita à direita. Além destas ruas, apenas o hipódromo e o canal 6.
O bairro portuário do
Macuco em Navios Iluminados - Planta da Cidade de Santos - Edição do Índice Commercial e Industrial 1921
[163]
Imagem: reprodução parcial da
capa do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado - PDDI-76, Prefeitura Municipal de
Santos/Prodesan, 1976, incluída na página 107 do arquivo da dissertação
No centro da imagem, temos a avenida Conselheiro Nébias, cortando Santos do centro
antigo até a barra, na praia do Boqueirão (sentido Norte-Sul). O nome do bairro do Macuco está escrito à direita da avenida. Em cima da segunda
letra C do nome do bairro, uma linha grossa marca o trilho do trem que, um quarteirão abaixo cruza a Avenida Taylor, via em que, já à direita, na
região em que entra em contato com a área portuária, foram construídas as oficinas e a residência do inspetor da companhia.
Desse trecho em direção ao canal abaixo foram traçadas as ruas João Macuco, Santos
Dumont, Ângela Macuco e Anna Carvalhaes. Em Navios Iluminados – publicado em 1937 com a ação entre 1926 e 1931 – as ruas João Macuco e Ângela
Macuco já aparecem com seus nomes atuais, João Alfredo e Rodrigo Silva. A Santos Dumont se mantém no romance com o mesmo nome; e a Anna Carvalhaes,
cujo nome atual é Almirante Tamandaré, não aparece no livro. Cruzando o Canal 4, essas ruas terminam na linha tracejada que representa a Avenida
Afonso Pena. Na legenda da Planta de 1920, a linha tracejada indica um projeto ainda a ser executado. O anúncio de lotes de 1928 já indica o
crescimento em torno da avenida.
Com a exceção da Ponta da Praia e pontos isolados, a cidade vai toda sendo ocupada:
Vila Mathias, Encruzilhada, José Menino, Gonzaga e Boqueirão. A foto abaixo, de um Cartão Postal sem data, traz uma imagem aérea de Santos que
mostra a cidade em uma de suas etapas de crescimento urbano. A foto traz uma imagem invertida em relação à planta, na qual o centro aparece na parte
inferior da foto e a orla, na superior. A Afonso Pena e seu entorno começam a ser ocupados, mas ainda existem várias áreas vazias.
Arte sobre cartão postal no acervo do autor. Note-se
que o Monte Serrat é visto como ficou pouco depois da catástrofe de março de 1928
Imagem: reprodução da página 109 do arquivo da dissertação
À direita na foto, o Monte Serrat, com seu bonde funicular (sistema
em que o carro que sobe são ligados por um cabo de forma que a subida de um é impulsionada ao mesmo tempo em que limita a velocidade de descida do
outro). Ao pé dele, o núcleo inicial da cidade. A linha de navios demarca a extensão do cais. Em 1913, o recenseamento municipal conta um cais de
4.700 metros [164].
Em 1948, a Agência Municipal de Estatística e Administração do
Porto de Santos conta 600 metros a mais
[165].
Com a queda na movimentação nos períodos de guerra, entre os dois levantamentos o porto mais se mecanizou que cresceu: os guindastes são 18 em 1913,
e 100 em 1948; os armazéns são 22 em 1913 e 27 em 1948.
As ruas do Macuco, à esquerda de quem vai à
praia pela Conselheiro Nébias, ocupam o espaço entre a avenida e o canal do estuário. A ferrovia havia sido inaugurada em 1868
[166]
e, em 1888, Gaffré & Guinle receberiam do governo central a concessão para dar início às obras de unificação e ampliação do cais, idealizado para
substituir as pontes e trapiches do porto colonial
[167].
Coube ao Macuco ser o lar dos trabalhadores e famílias ligados às
profissões e atividades portuárias. A necessidade de braços para o porto e para a própria expansão do cais transformou-o no maior bairro da cidade,
onde se multiplicavam os chalés de madeira, construções características, erguidas em mutirão
[168].
O recenseamento de 1913 registra a preocupação da municipalidade com o adensamento
populacional e as condições de moradia. Seus 86.020 indivíduos moravam em 7.357 habitações térreas (o equivalente a 69,5% das construções), 1.697
casebres (23,6%), 955 sobrados (9,0%), 520 construções com um andar (4,9%), 46 de dois andares (0,4%) e uma de três (traço). A densidade
populacional na zona urbana é de 10,19 pessoas por habitação, ficando atrás no Brasil apenas do Rio de Janeiro, a capital, com 10,45 (1910). O
governo municipal considera o problema da densidade como localizado nos bairros do operariado:
A quase totalidade das casas compõem-se de prédios térreos e de
casebres toscos. Os 957 sobrados são ocupados pelas famílias abastadas. Os sobrados, em sua maioria, são casas comerciais. E ninguém dirá que as
nossas casas térreas tenham sido construídas de modo a abrigar uma média de 10 pessoas em cada uma
[169].
A população adulta é de 63% do total; os solteiros são 61,89%. A demanda por pensão
faz vigorar as habitações coletivas. O ritmo de construção em mutirão iria até o final da década de 1930. O escritor Nelson Salasar Marques, em
artigo escrito para A Tribuna, conta que em 1939, garotinho ainda, participava dos mutirões de construção:
Em nenhum outro bairro de
Santos o chalé imperou tanto como no Macuco... eram ruas inteiras de chalés, a Comendador Alfaia, a Nabuco de Araújo, Torres Homem, e dezenas delas.
Era o tipo de construção adequada para o pioneiro... O chão era quase de graça e em dois ou três dias a casa estava de pé. Os vizinhos ajudavam e eu
carreguei muito prego
[170].
As ruas citadas pelo memorialista ocupam a área do bairro que se expande para a orla,
já para lá da Avenida Afonso Pena. Naquele tempo eram parte do bairro ("metade de Santos parecia ser Macuco"); hoje pertencem aos bairros do
Embaré e Aparecida. O autor cita também a linha de bonde 19 – que também está registrada em
Navios Iluminados – como principal meio de transporte de seus habitantes. Ainda hoje, a linha 19, feita por ônibus, depois de cruzar parte da
Conselheiro Nébias vindo do Centro, entra no Macuco pela avenida Rodrigues Alves e depois passa à Afonso Pena, ambas citadas por Salasar Marques.
Um mapa de Santos elaborado pelo Serviço de Topografia e Limites do
Instituto Geográfico e Geológico por exigência do Decreto Lei nº 311 mostra a região do Embaré toda loteada até a praia, enquanto na Aparecida as
ruas ainda estão tracejadas e, na Ponta da Praia, vazias
[171].
O GRANDE MACUCO - detalhe do mapa municipal mostra ruas
planejadas (tracejadas) no que é hoje o bairro da Aparecida e vazias na Ponta da Praia (canto
inferior direito). Mapa elaborado pelo Serviço de Topografia e Limites do Instituto Geográfico e Geológico (Secretaria do Estado da Agricultura,
Indústria e Comércio) por exigência do decreto-lei 311, de 1939, no acervo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (localização: S48, sem data). Clique >>aqui<< ou na imagem acima para ampliá-la
Imagem: reprodução da página 112 do arquivo da
dissertação.
Esse grande Macuco era formado pela faixa do cais, pela região ao longo da Afonso Pena
("um mar de areia"), a região próxima à Conselheiro Nébias, mais o canal 4, o canal 5 e o 6, "tudo Macuco", tão grande que tinha sua própria bacia,
formada pelos canais enumerados acima e independente do sistema que interligava os outros seis canais planejados por Saturnino de Brito. Somente em
1969 o Plano Diretor Físico do Município limitaria o bairro na linha formada pela Afonso Pena e o desmembraria em Embaré, Aparecida e
Estuário.
No entanto, o maior bairro operário de Santos era Vila Macuco. O Macuco abrigava numerosos trabalhadores da Companhia Docas. Os
ferroviários preferiam morar no morro da Penha, próximo à estação. Na faixa do porto, os
típicos bares e bordéis para marítimos não foram extintos com a onda higienizadora do início do século. Provavelmente, após alguns reparos exigidos
pelas autoridades sanitárias, continuaram a funcionar como sempre [172].
Onde as relações de solidariedade e de identidade são construídas sob as
especificidades do trabalho no cais:
Todavia, ao contrário dos modelos de leituras elaboradas para o
estudo de pequenas comunidades "fechadas", parece inadequada uma visão das zonas de habitação operária em Santos como lugares de isolamento e
segregação em cujo seio de desenvolveria, supostamente, a totalidade das experiências da vida cotidiana. (...) O característico trabalho ocasional
portuário permitia aos trabalhadores uma mobilidade incessante entre porto, casa e rua
[173]. |