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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PORTO & LITERATURA - BIBLIOTECA NM
Os navios iluminados de Ranulpho Prata (A)

Nacionais e de todo o mundo, como os navios que aqui aportam...

 

Clique na imagem para ir ao índice do livroCom o título "História e literatura no porto de Santos: o romance de identidade portuária Navios Iluminados", o jornalista Alessandro Alberto Atanes Pereira desenvolveu esse tema em sua coluna no site PortoGente. Essa dissertação foi defendida como tese de mestrado em 7 de abril de 2008 na Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de História, tendo como orientadora Inez Garbuio Peralta e a banca examinadora integrada também por Wilma Therezinha Fernandes de Andrade e Maria Luiza Tucci Carneiro. O autor enviou o material para publicação em Novo Milênio, em 27/1/2011. Clique aqui<< para obter o arquivo final em formato PDF (2,80 MB), ou veja nestas páginas a versão original, mais completa:

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História e Literatura no Porto de Santos:

O romance de identidade portuária Navios Iluminados

 Alessandro Alberto Atanes Pereira

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Introdução

Estudos sobre a Revolução Francesa, sobre o Estado Novo ou qualquer outro grande evento ou processo histórico são justificados pelos próprios objetos aos quais se debruçam. Mas ao falar sobre seu trabalho e sobre as transformações na pesquisa histórica à revista Estudos Históricos, o historiador italiano Carlo Ginzburg avalia que a "abordagem específica" de cada objeto passou a justificar as formas nas quais são tratados os temas da pesquisa histórica [1]. É nesse curso que ele justifica seu famoso estudo sobre um moleiro italiano do Friuli e o processo que sofreu da Inquisição, um trabalho classificado como micro-história [2].

Em olhar retrospectivo, Ginzburg mostra como a expressão (às vezes pejorativa) refere-se a estudos de natureza diversa e trata a micro-história que escreveu como uma reação à história serial como única forma de lidar com objetos históricos que por inúmeros motivos não deixaram documentação [3]. Ao contrário da construção da série documental, O queijo e os vermes se propunha a fazer uma história das "classes subalternas" ao "analisar de perto uma documentação circunscrita, ligada a um indivíduo desconhecido, a não ser por ela".

Mesmo com suas limitações, esta dissertação percorre os caminhos da micro-história de Ginzburg ao manusear a documentação sobre as condições de realização do romance Navios Iluminados, do escritor e médico Ranulpho Prata, publicado em 1937, e na tentativa de explorar o livro como um documento literário que reflete – ainda que pelas lentes da narrativa de ficção – o contexto social em que foi produzido. Como escreveu o próprio Ginzburg na introdução a O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício: "A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante. Essa trama imprevisível pode comprimir-se num nó ou num nome" [4].

Aqui, esse nó (esse nome) é o Navios Iluminados, que tem o porto de Santos e o bairro do Macuco, onde moram os trabalhadores do cais, como principais cenários. No livro, Ranulpho Prata nos conta o insucesso de José Severino de Jesus em Santos, migrante que deixa o sertão da Bahia para tentar a sorte como estivador no cais do porto.

A cidade portuária que recebeu José Severino de Jesus foi desde as três últimas décadas do século XIX a porta de entrada do movimento populacional que trouxe braços nacionais e internacionais para as fazendas, principalmente de café, do interior do estado e para a capital, com o intuito de atender a demanda por mão-de-obra para a indústria em expansão. O porto, espaço de partida ou de chegada, de movimentação, de trânsito e dos fluxos, acabou ele mesmo retendo parte desse contingente.

Ranulpho Prata (1896-1942) é ele mesmo um migrante. Natural de Lagarto, no interior de Sergipe, inicia seus estudos de Medicina em Salvador e conclui o curso no Rio de Janeiro entre 1918 e 1919. Nesse momento já havia lançado seu primeiro romance (O Triunfo, 1918). Muda-se para Mirassol, no interior de São Paulo, onde inicia sua vida profissional como médico e mantém a produção literária. Em 1927, depois de viagens curtas, muda-se com a família para Santos onde trava contato com o universo dos trabalhadores do cais, matéria-prima de sua principal obra.

As diferenças de classe entre Prata e seus personagens, ainda que sejam levadas em conta, não impedem o romance de ser utilizado como uma fonte – indireta e ficcional – para recuperar as "classes subalternas" (GINZBURG: 1987, 20-24) e o universo daqueles moradores. Mas Prata era ele mesmo um migrante como o protagonista José Severino de Jesus, identificação que permite ao documento literário a possibilidade também de ser tratado como uma fonte direta no tocante à migração.

Para o historiador italiano, o prefixo "micro" sugere uma "escala reduzida de observação" [Ginzburg: 2007, 249]. Aqui, a escala é a do cais e do porto, tanto em sua relação com o resto da cidade de Santos, quanto no seu papel de ponto (nó) de articulação das trocas nacionais e internacionais e no trânsito de mercadorias e populações, num esforço de que, sempre com Ginzburg, o "olhar aproximado [capte] algo que escape [à] visão de conjunto", mesmo sabendo que "existem fenômenos que só podem ser apreendidos numa perspectiva macroscópica". Essa mesma relação macro/micro se repete nas metáforas do telescópio (que busca o grande evento) e do microscópio (que procura o particular) usadas pelo historiador britânico Eric J. Hobsbawn em seu ensaio sobre os estudos históricos sobre a "gente comum" [5].

Essa micro-história, como sugere o prefixo, contribui também para a história de Santos e de sua literatura. Mas história regional sem o sentido de limite, e sim, como justificou Fernando Teixeira da Silva em seu estudo sobre os operários da cidade, como uma oportunidade de oferecer novas perspectivas a questões normalmente ligadas às capitais (o movimento operário, por exemplo) e de "estabelecer conexões entre as especificidades [locais] e os diversos problemas da agenda historiográfica":

Pesquisas realizadas em cidades como a de Santos, porém, recebem às vezes o qualitativo de "história regional". Tais estudos efetivamente contribuem para o conhecimento da história de um determinado quadro urbano, mas também podem levantar questões cuja validade não deva ser apenas local, permitindo, ao contrário, um diálogo com outros trabalhos, experiências históricas e questões historiográficas de amplo alcance no tempo e no espaço [6].

Um exemplo desta oferta de uma nova perspectiva aos estudos históricos foi dado em aula por Nicolau Sevcenko, para quem Santos, por seu espaço limitado (a cidade está numa ilha) totalmente ocupado ainda em torno da metade do século XX, oferece subsídios e condições para compreender o crescimento de cidades como o Rio de Janeiro. Ocupado todo o espaço da cidade dentro da ilha, foram traçados e mantidos os limites daquela cidade planejada pelo pensamento científico e positivista da engenharia e do paisagismo urbano da Belle Epoque.

Além da interpretação da documentação "circunscrita" ao livro e às condições em que foi escrito, é a própria narrativa de Navios Iluminados que determina a escala microscópica. A trama apresenta seus personagens entre 1926 e o início da década seguinte, mas no livro não há qualquer menção a eventos históricos como a Revolução de 30 ou o crash de 1929, que afetou consideravelmente as operações do porto de Santos. Ao invés do telescópio para observar as grandes movimentações econômicas e políticas do mundo, do país e até da cidade, Ranulpho Prata optou ele mesmo pela "escala reduzida da observação" da vida dos trabalhadores no bairro do Macuco.

Num ensaio sobre os continuadores de A. Warburg, Ginzburg trata do "objetivo duplo" da metodologia de trabalho deste historiador da arte alemão:

Por um lado, era preciso considerar as obras de arte à luz de testemunhos históricos, de qualquer tipo e nível, em condições de esclarecer a gênese e o seu significado; por outro, a própria obra de arte e as figurações de modo geral deveriam ser interpretadas como uma fonte sui generis para a reconstrução histórica. Trata-se de duas metas distintas, mesmo que [...] relacionadas entre si [7].

O primeiro dos objetivos da metodologia de Warburg é também o do primeiro capítulo da dissertação, A história do romance: a realização de "Navios Iluminados", edições e recepção crítica. Por meio de cartas, epígrafes, testemunhos, perfis, introduções e resenhas publicadas sobre o livro e seu autor ao longo das quatro edições do romance, o capítulo busca localizar Navios Iluminados em meio ao contexto social e literário das décadas de 20 e 30, bem como, na medida do possível, dos momentos das reedições do romance, num enfoque que, usando os conceitos de Roger Chartier e da escola francesa da Nova História se aproxima da história intelectual e da história do livro [8].

O segundo capítulo – A literatura de identidade portuária – ainda trata do objeto livro, mas em outra escala. Ali, Navios Iluminados é apresentado como a narrativa que dá início a uma série de romances e poemas que, assim como ele, têm o cais e o porto de Santos como cenário. A seção busca determinar características em comum dessas obras bem como as especificidades da escrita de Ranulpho Prata dentro desse universo.

Ao reunir obras literárias pelo espaço em que suas tramas ocorrem, o segundo capítulo acabou procurando também traçar o papel desta literatura na configuração do imaginário da cidade portuária como algo comum à comunidade em que ou para a qual foi produzida. Essa interpretação fornece à literatura de identidade portuária um caráter de fonte, ainda na escala microscópica de Santos, para uma "história das mentalidades", sendo essa história um "ponto de junção do individual e do coletivo, do longo tempo e do quotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral" [9].

Assim como o segundo objetivo da metodologia de Warburg, o capítulo final – Narrativa e território da estiva – trata o romance como uma fonte histórica para a compreensão do universo dos trabalhadores portuários de Santos, de suas condições de moradia e trabalho, bem como de sua locomoção pela cidade. Aos conteúdos deste "documento literário", a pesquisa procurou relacionar dados de outras fontes (mapas, jornais, censos populacionais, estatísticas sobre o porto, relatórios de hospitais e outros documentos "objetivos" – nem um inventário é objetivo, escreveu Ginzburg) [10].

A conclusão busca, além de ressaltar o lugar de Navios Iluminados na literatura nacional e local, caracterizar o livro como fonte histórica privilegiada para os estudos sobre o mundo operário em Santos no período em que se passa a trama da ficção, último momento antes de transformações históricas que afetaram as condições de trabalho no porto.

Com todos os limites e obstáculos que os objetivos acima encontraram pelo caminho, ainda vale registrar como justificativa para este estudo que o porto de Santos e o universo dos trabalhadores portuários, como indica uma consulta à bibliografia, são assunto de uma já vasta historiografia, mas a literatura que utiliza esse universo como componente narrativo ainda não foi alvo de qualquer pesquisa histórica. Esse é o cenário em que foram escritas as páginas que se seguem.