Introdução
Estudos sobre a
Revolução Francesa, sobre o Estado Novo ou qualquer outro grande evento ou processo histórico são justificados pelos próprios objetos aos quais se
debruçam. Mas ao falar sobre seu trabalho e sobre as transformações na pesquisa histórica à revista Estudos Históricos,
o historiador italiano Carlo Ginzburg avalia que a "abordagem específica" de cada objeto passou a justificar as formas nas quais são tratados os
temas da pesquisa histórica [1].
É nesse curso que ele justifica seu famoso estudo sobre um moleiro italiano do
Friuli e o processo que sofreu da Inquisição, um trabalho classificado como micro-história
[2].
Em olhar retrospectivo, Ginzburg mostra como a expressão (às vezes
pejorativa) refere-se a estudos de natureza diversa e trata a micro-história que escreveu como uma reação à história serial como única forma de
lidar com objetos históricos que por inúmeros motivos não deixaram documentação [3].
Ao contrário da construção da série documental, O queijo e os vermes se propunha a fazer uma história das "classes subalternas" ao "analisar
de perto uma documentação circunscrita, ligada a um indivíduo desconhecido, a não ser por ela".
Mesmo com suas limitações, esta dissertação percorre os caminhos da micro-história de Ginzburg ao manusear a documentação sobre as condições de
realização do romance Navios Iluminados, do escritor e médico Ranulpho Prata, publicado em 1937, e na tentativa de explorar o livro como um
documento literário que reflete – ainda que pelas lentes da narrativa de ficção – o contexto social em que foi produzido. Como escreveu o próprio
Ginzburg na introdução a O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício: "A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão
histórica, ou ficcional, e assim por diante. Essa trama imprevisível pode comprimir-se num nó ou num nome"
[4].
Aqui, esse nó (esse nome) é o Navios Iluminados, que tem o porto de Santos e o bairro do Macuco, onde moram os
trabalhadores do cais, como principais cenários. No livro, Ranulpho Prata nos conta o insucesso de José Severino de Jesus em Santos, migrante que
deixa o sertão da Bahia para tentar a sorte como estivador no cais do porto.
A cidade portuária que recebeu José Severino de Jesus foi desde as três últimas décadas do século XIX a porta de entrada do movimento
populacional que trouxe braços nacionais e internacionais para as fazendas, principalmente de café, do interior do estado e para a capital, com o
intuito de atender a demanda por mão-de-obra para a indústria em expansão. O porto, espaço de partida ou de chegada, de movimentação, de trânsito e
dos fluxos, acabou ele mesmo retendo parte desse contingente.
Ranulpho Prata (1896-1942) é ele mesmo um migrante.
Natural de Lagarto, no interior de Sergipe, inicia seus estudos de Medicina em Salvador e conclui o curso no Rio de Janeiro entre 1918 e 1919. Nesse
momento já havia lançado seu primeiro romance (O Triunfo, 1918). Muda-se para Mirassol, no interior de São Paulo, onde inicia sua vida
profissional como médico e mantém a produção literária. Em 1927, depois de viagens curtas, muda-se com a família para Santos onde trava contato com
o universo dos trabalhadores do cais, matéria-prima de sua principal obra.
As diferenças de classe entre Prata e seus
personagens, ainda que sejam levadas em conta, não impedem o romance de ser utilizado como uma fonte – indireta e ficcional – para recuperar as
"classes subalternas" (GINZBURG: 1987, 20-24) e o universo daqueles moradores. Mas Prata era ele mesmo um migrante como o protagonista José Severino
de Jesus, identificação que permite ao documento literário a possibilidade também de ser tratado como uma fonte direta no tocante à migração.
Para o historiador italiano, o
prefixo "micro" sugere uma "escala reduzida de observação" [Ginzburg: 2007, 249]. Aqui, a escala é a do cais e do porto, tanto em sua relação com o
resto da cidade de Santos, quanto no seu papel de ponto (nó) de articulação das trocas nacionais e internacionais e no trânsito de mercadorias e
populações, num esforço de que, sempre com Ginzburg, o "olhar aproximado [capte] algo que escape [à] visão de conjunto", mesmo sabendo que "existem
fenômenos que só podem ser apreendidos numa perspectiva macroscópica". Essa mesma relação macro/micro se repete nas metáforas do telescópio (que
busca o grande evento) e do microscópio (que procura o particular) usadas pelo historiador britânico Eric J. Hobsbawn em seu ensaio sobre os estudos
históricos sobre a "gente comum" [5].
Essa micro-história, como sugere o prefixo, contribui
também para a história de Santos e de sua literatura. Mas história regional sem o sentido de limite, e sim, como justificou Fernando Teixeira da
Silva em seu estudo sobre os operários da cidade, como uma oportunidade de oferecer novas perspectivas a questões normalmente ligadas às capitais (o
movimento operário, por exemplo) e de "estabelecer conexões entre as especificidades [locais] e os diversos problemas da agenda historiográfica":
Pesquisas realizadas em cidades
como a de Santos, porém, recebem às vezes o qualitativo de "história regional". Tais estudos efetivamente contribuem para o conhecimento da história
de um determinado quadro urbano, mas também podem levantar questões cuja validade não deva ser apenas local, permitindo, ao contrário, um diálogo
com outros trabalhos, experiências históricas e questões historiográficas de amplo alcance no tempo e no espaço
[6].
Um exemplo desta oferta de uma nova perspectiva aos
estudos históricos foi dado em aula por Nicolau Sevcenko, para quem Santos, por seu espaço limitado (a cidade está numa ilha) totalmente ocupado
ainda em torno da metade do século XX, oferece subsídios e condições para compreender o crescimento de cidades como o Rio de Janeiro. Ocupado todo o
espaço da cidade dentro da ilha, foram traçados e mantidos os limites daquela cidade planejada pelo pensamento científico e
positivista da engenharia e do paisagismo urbano da Belle Epoque.
Além da interpretação da documentação "circunscrita"
ao livro e às condições em que foi escrito, é a própria narrativa de Navios Iluminados que determina a escala microscópica. A trama apresenta
seus personagens entre 1926 e o início da década seguinte, mas no livro não há qualquer menção a eventos históricos como a
Revolução de 30 ou o crash de 1929, que afetou consideravelmente as operações do
porto de Santos. Ao invés do telescópio para observar as grandes movimentações econômicas e políticas do mundo, do país e até da cidade,
Ranulpho Prata optou ele mesmo pela "escala reduzida da observação" da vida dos trabalhadores no bairro do Macuco.
Num ensaio sobre os continuadores de A. Warburg,
Ginzburg trata do "objetivo duplo" da metodologia de trabalho deste historiador da arte alemão:
Por um lado, era preciso
considerar as obras de arte à luz de testemunhos históricos, de qualquer tipo e nível, em condições de esclarecer a gênese e o seu significado; por
outro, a própria obra de arte e as figurações de modo geral deveriam ser interpretadas como uma fonte sui generis para a reconstrução
histórica. Trata-se de duas metas distintas, mesmo que [...] relacionadas entre si [7].
O primeiro dos objetivos da
metodologia de Warburg é também o do primeiro capítulo da dissertação, A história do romance: a realização de "Navios Iluminados", edições e
recepção crítica. Por meio de cartas, epígrafes, testemunhos, perfis, introduções e resenhas publicadas sobre o livro e seu autor ao longo das
quatro edições do romance, o capítulo busca localizar Navios Iluminados em meio ao contexto social e literário das décadas de 20 e 30, bem
como, na medida do possível, dos momentos das reedições do romance, num enfoque que, usando os conceitos de Roger Chartier e da escola francesa da
Nova História se aproxima da história intelectual e da história do livro
[8].
O segundo capítulo – A literatura de identidade
portuária – ainda trata do objeto livro, mas em outra escala. Ali, Navios Iluminados é apresentado como a narrativa que dá início a uma
série de romances e poemas que, assim como ele, têm o cais e o porto de Santos como cenário. A seção busca determinar características em comum
dessas obras bem como as especificidades da escrita de Ranulpho Prata dentro desse universo.
Ao reunir obras literárias pelo
espaço em que suas tramas ocorrem, o segundo capítulo acabou procurando também traçar o papel desta literatura na configuração do imaginário da
cidade portuária como algo comum à comunidade em que ou para a qual foi produzida. Essa interpretação fornece à literatura de identidade portuária
um caráter de fonte, ainda na escala microscópica de Santos, para uma "história das mentalidades", sendo essa história um "ponto de junção do
individual e do coletivo, do longo tempo e do quotidiano, do inconsciente e do intencional, do estrutural e do conjuntural, do marginal e do geral"
[9].
Assim como o segundo objetivo da
metodologia de Warburg, o capítulo final – Narrativa e território da estiva – trata o romance como uma fonte histórica para a compreensão do
universo dos trabalhadores portuários de Santos, de suas condições de moradia e trabalho, bem como de sua locomoção pela cidade. Aos conteúdos deste
"documento literário", a pesquisa procurou relacionar dados de outras fontes (mapas, jornais, censos populacionais, estatísticas sobre o porto,
relatórios de hospitais e outros documentos "objetivos" – nem um inventário é objetivo, escreveu Ginzburg)
[10].
A conclusão busca, além de ressaltar o lugar de
Navios Iluminados na literatura nacional e local, caracterizar o livro como fonte histórica privilegiada para os estudos sobre o mundo operário
em Santos no período em que se passa a trama da ficção, último momento antes de transformações históricas que afetaram as condições de trabalho no
porto.
Com todos os limites e obstáculos que os objetivos
acima encontraram pelo caminho, ainda vale registrar como justificativa para este estudo que o porto de Santos e o universo dos trabalhadores
portuários, como indica uma consulta à bibliografia, são assunto de uma já vasta historiografia, mas a literatura que utiliza esse universo como
componente narrativo ainda não foi alvo de qualquer pesquisa histórica. Esse é o cenário em que foram escritas as páginas que se seguem. |