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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - IMPRENSA
A imprensa santista (7k)

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Em 26 de março de 1944, o jornal santista A Tribuna publicou edição comemorativa de seu cinqüentenário (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), com esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

O 50º aniversário d'A Tribuna

Um pouco de história da terra andradina mal contada por velho jornalista sem memória

(Crônica de Euclides Andrade)

[...]


Boêmios do meu tempo

Toda a cidade que se preza tem o seu ponto predileto de reuniões públicas ou de bate-papos amistosos, servindo, ao mesmo tempo, de "rendez-vous" para entabolação de negócios comerciais ou encontro de namorados.

Santos do meu tempo, a velha Santópolis de 1909, tinha o seu coração pulsando no Largo do Rosário, onde ainda não havia monumento algum.

Era ali, naquele augusto centro citadino, que se convencionou chamar "largo" do Rosário, o ponto de reunião da rapaziada santense, da que trabalhava no café ("zangões", comissários), na Alfândega e nas Docas. Funcionários públicos, alguns membros da classe comercial e jornalistas, completavam a freqüência, diária, do larguinho ruidoso, onde o Alfredo Maresi promovia comícios anarquistas, falando, não às massas, mas aos muares dos bondinhos do Boqueirão e do Gonzaga.

Alfredo Maresi era um dos tipos mais populares de Santos naquela época. Nem mesmo o Gavião Molhado, o Camarinha ou o Santos Alfaiate lhe levavam as lampas na conquista de relações com o respeitável público. Maresi era amigo do povo e da Polícia, nessa época dirigida com superior critério por Bias Bueno.

Alfredo Maresi tinha uma história. Uma história interessante como, aliás, a de todos os boêmios impenitentes. Nascido na Itália, onde cursara o 4º ano de Direito, numa faculdade de ensino superior, os vai-vens da sorte atiraram-no para estas plagas americanas.

Eu nunca cheguei a conhecer as razões que levaram Alfredo Maresi a expatriar-se. Sei apenas que aquele engraçado tipo de rua era uma criatura encantadora, quando não estava sob os efeitos da pinga. Inteligentíssimo, muito culto, era visceralmente democrático; mais do que democrático, libertário. Talvez esse ideal o tenha deixado de mal com a polícia italiana e, daí, a sua fuga para o Brasil.

Maresi, quando tinha na cabeça vapores de alguns cálices de "Morrão", dava para fazer grandes comícios. Postava-se no Largo do Rosário à hora em que o comércio começava a cerrar suas portas e soltava o verbo, pregando as suas doutrinas políticas com uma convicção e uma série de argumentos de deitar abaixo o mais seguro governo. Esses argumentos eram corroborados por uma "chuva" de perdigotos sobre os pequenos vendedores de jornais, que formavam o seu auditório e que o interrompiam constantemente, puxando-o pela aba do fraque.

Mas, Maresi não dava ouvidos à arraia miúda e continuava nas suas catilinárias contra o capitalismo, ameaçando-o com vinganças terríveis, próprias de um autêntico nihilista: bombas de dinamite a três por duas; enforcamento, fuzilamento e quejandos castigos.

Na campanha civilista, Maresi tomou posição de combate nas fileiras dos defensores de Rui Barbosa.

E então era de se o ouvir falar das excelsas virtudes cívicas, da cultura e do talento do venerando parlamentar baiano! De Hermes da Fonseca, Maresi dizia cobras e lagartos. E a polícia daquela época - complacente e generosa - limitava-se a enviar um pacato soldado para o Largo do Rosário, com a missão de mandar o Maresi pregar suas doutrinas revolucionárias e políticas a outra freguesia.

Um dia, recebi um recado da Santa Casa: Alfredo Maresi havia esticado os cambitos naquele benemérito hospital. Escrevi um necrológio do grande boêmio italiano.

Citei-lhe o talento e a vasta cultura, disse do seu amor pela democracia e pranteei sinceramente a sua morte. No dia seguinte, recebia um bilhete de Alfredo Maresi:

"Querido Tio Tinoco:

"Aquela notícia do meu falecimento parece que foi boato...

"Estou bem vivo e são. Se vim para a Santa Casa foi para descansar um bocado das farras e comer a boa canja que mestre Santiago manda preparar.

"Muito obrigado por tudo quanto de lisonjeiro disse de mim na Tribuna. Mas, quando eu morrer de verdade, guarde segredo, para que os meus 'cadáveres' não fiquem aflitos. Sempre seu admirador e amigo - (a) Alfredo Maresi." (N.E.: cadáveres - gíria para títulos de dívida não quitados).

Era assim esse grande boêmio, um dos mais queridos tipos populares da velha Santos do início do século XX.

Gavião Molhado (Eduardo da Rocha Soares) era outro homem popularíssimo em Santos. Boêmio... "Est modus in rebus". Gavião Molhado era alcunha; mas ele não bebia a não ser água do Itororó. Boêmio fora em sua mocidade, no Rio de Janeiro, terra de seu berço.

Quando o conheci em Santos era operoso e conceituado funcionário da Companhia Docas. Chamavam-no Gavião Molhado por ser enxuto de carnes e banhas e ter um nariz que parecia o bico daquela ave de preia.

Gavião Molhado vivia das suas recordações de boemia na metrópole brasileira. Certa vez, o patrão que era abastado negociante no Rio, mandou que ele fosse a Petrópolis levar um terno de galinhas de raça, que adquirira para uma chácara que possuía naquela cidade serrana fluminense.

Em viagem, na barca de Petrópolis, Gavião Molhado abandonou as galinhas no tombadilho, sentou-se num banco e engolfou-se na leitura do O País. Em dado momento, um marinheiro passou por perto das aves e assustou-as. As galinhas começaram a esvoaçar e caíram ao mar.

É claro que o mestre da barca não atendeu aos rogos do Gavião para que mandasse parar a máquina, a fim de salvar os náufragos galináceos. Gavião voltou para a capital. Contou o que lhe acontecera; ouviu uma violenta reprimenda, acompanhada de alguns doestos que muito o ofenderam.

No dia seguinte, o patrão entregou-lhe um outro terno de galinhas de raça:

- Leve-as para a minha chácara em Petrópolis; mas se as deixar cair ao mar, descontar-lhe-ei o custo das aves no fim do mês, quando tiver de entregar-lhe seu ordenado.

Gavião foi para Petrópolis e cumpriu fielmente sua arriscada missão. A bomba estourou quando ele explicou como agira:

- As galinhas chegaram bem, seu Rocha? - indagou o patrão.

- Sim, senhor. Chegaram direitinhas...

- E desta vez não tentaram fugir da barca?

- Não, senhor. Não tiveram tempo para isso. Logo que entrei na barca, torci-lhes os pescoços...

Gavião Molhado era assim. Bom, serviçal e vivendo na velhice a hora da saudade. Como eu agora estou fazendo...

Longa seria a lista dos rapazes boêmios do meu tempo, em Santos. Esses somente faziam mal a si próprios. Trabalhavam; matavam-se no "batente", mas, as horas de folga eram para eles.

Nos clubes chics, carnavalescos, políticos, Royal, Girondinos, Badico, Ataualpa Moreira davam sota e az. Ambos engraçadíssimos, alegres e doidivanas. Moreira e Badico sacrificavam todos os seus maiores interesses para atenderem a um amigo. Faziam o bem sem olharem a quem.

Moreira popularizou-se em Santos pelas suas piadas gaguejantes. Conta-se dele que, certo domingo, entrou num café do Largo do Rosário e pediu que lhe servissem uma cerveja. O garçom recusou-se a atendê-lo. Era domingo e não podia vender bebidas alcoólicas. Moreira insistiu. Foram baldados os seus argumentos.

- Bem - fez o boêmio - sirva-me, então, um copo de leite.

O garçom atendeu-o. Moreira tirou do bolso um lactômetro (pois era então fiscal da Prefeitura) e mergulhou-o no leite que lhe serviam.

- Tem água! - gritou. E vocês estão multados!

Não me disseram se o auto de multa chegou ou não a ser lavrado...

Ao entardecer, após a lufa-lufa quotidiana na "Colméia" da Rua Quinze, zangões, comissários, funcionários públicos, jornalistas e boêmios, reuniam-se no Bar Chic, instalado então no Largo do Rosário, à esquina da General Câmara e Frei Gaspar. Era grande o consumo de chopes e aperitivos.

No seu trono, comandava o batalhão de garçons o saudoso Artur de Castro, sócio da casa. E ouvia-se boa música, discutia-se a superioridade do Municipal sobre qualquer outro partido, comentava-se a campanha civilista... falava-se da vida alheia ou contavam-se anedotas "grivoises".

Naqueles bons tempos o futebol era "pinto" diante do "rowing", no qual pontificavam Luiz Couceiro (Gasolina); Edgard Perdigão e outros ases da remada "picadinha". Havia sempre no Bar Chic laranjadas e laranja, esta em carne e osso, na pessoa do Manoel Laranja, estimado tabelião local.

E, assim, quando não havia greve na Docas, decorria tranqüila e alacremente a vida do bom povo santense, nos saudosos e remotos tempos da minha juventude, quando, após o serviço noturno, na redação da Tribuna, ia passear por aí, com o Lulu Carneiro, o Badico, o Nenê Camisola, Chambá e outros amigos do luar...


A Praça Rui Barbosa e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em foto do início do século XX
Foto cedida a Novo Milênio pelo historiador Waldir Rueda

E para fechar

E para fechar  estas desataviadas linhas, escritas para evocar uma época risonha e feliz da minha distante mocidade, eu rendo a minha homenagem à memória dos que tombaram na campanha ingente vencida por Nascimento Júnior; eu rendo a minha homenagem aos proletários da pena, que ajudaram a construir este monumento, de cuja magnificência tanto se orgulha o povo de Santos e a imprensa da minha Pátria.

Exausto da longa caminhada, que dura há quarenta e sete anos, não me pude furtar ao prazer de, atendendo a honroso convite da sua direção, escrever este esboço da brilhante história da Tribuna.

Esse convite foi um prêmio que recebo nos derradeiros quartos da minha longa vigília jornalística, prêmio que me enche de orgulho e alegria, por me não sentir esquecido de velhos e leais companheiros de luta, amigos que o foram nas noites negras de sobressaltos e tristezas e que ainda o são nesta manhã clara de alegria e de vitória, em que se registra o 50º aniversário de fundação da Tribuna.

Que bom seria se eu pudesse encerrar hoje a minha carreira jornalística! Mas, estou a ver que o meu Destino ainda me obriga a escrever outro esboço histórico por ocasião do centenário da menina dos olhos de Manoel do Nascimento Júnior e Giusfredo Santini... Mas, com 65 anos, hoje... Escrevo, ein! Eeeeh velhice danada!....