HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
O morrão de Nova Cintra
E a famosa receita do "morrão consertado"
Portugueses de diferentes regiões povoaram Santos. Os ilhéus - gente da Ilha da
Madeira - encontraram nos morros da cidade o terreno que recordava seu habitat natural. Instalaram-se no Monte Serrat, no São Bento e,
principalmente, no morro da Nova Cintra, onde em seus sítios plantaram laranjas, bananas e fizeram suas hortas. Criaram porcos e gado leiteiro. E, mais
do que qualquer coisa, cultivaram cana, essa mesma cana que acabou propiciando o surgimento de inúmeros alambiques no morro. E da famosa pinga, que
virou patrimônio da cidade.
Pinga boa, pura, ficou logo conhecida pelo nome de morrão da Nova Cintra e sempre foi algo do qual o
santista se orgulhou. Se orgulhou só, não! Desfrutou e muito! Afinal, quem é que não gostava de degustar seu morrãozinho dos bons? Aguardente das
melhores, era conhecida até de muito estrangeiro, que não saía do porto sem levar um ou muitos garrafões do morrão santista.
Foto: Sérgio Eluf
Esses alambiques foram aos poucos desaparecendo: produção pequena, praticamente artesanal, não agüentaram a
concorrência de grandes empresas. Isso sem contar a carência de mão-de-obra: todo mundo queria descer o morro, para trabalhar no porto ou no comércio.
Muita gente não sabe, mas lá no alto do Nova Cintra dois desses alambiques - relíquias de uma época - ainda
fazem vez por outra funcionar suas moendas. Curiosos, subimos o morro: não foi difícil encontrar, na Avenida Santista, o antigo Engenho Leal, hoje
desativado, destilando o delicioso morrão só mesmo para o consumo da família e dos amigos, que, em mutirão, ajudam a cortar a cana nos meses de
agosto a dezembro. E para um ou outro santista, saudoso do velho morrãozinho, que ainda hoje sobe no Nova Cintra em busca de um litro ou um
garrafão.
Câmara de Lobos - Cabo Girão -, na Ilha da Madeira
Foto: site www.madeira-web.com
Seu
Chico - Francisco Gomes Barros, de 82 anos, um ilhéu de Câmara dos Lobos - é o dono do velho alambique, mas como está bastante doente há alguns anos,
quem faz a moenda sueca operar é seu filho Arlindo, de 39 anos. É Arlindo quem nos recebe, mostra todo o antigo engenho, conta sobre a família e o tempo
áureo do alambique e nos faz sorver, junto com mel puro do próprio sítio, o saboroso morrão...
"Meu pai chegou ao Brasil em 1920, veio direto para Santos e depois de algum tempo empregado nas Docas foi trabalhar
no sítio de outro português, Seu Miranda. Quatro ou cinco meses mais tarde, Miranda, doente, lhe vendia a chácara. Meu pai começou a montar o
alambique e mandar vir gente de Portugal para trabalhar com ele."
"A essa altura, já tínhamos nos casado - interfere Dona Amália, a mãe, que chega de mansinho. Chegamos a ter 14
empregados e era eu quem fazia a comida para todo mundo."
"A firma foi registrada com o nome de Engenho Leal - continua Arlindo - e o produto era comercializado na praça
de Santos. Fazíamos tudo aqui, até o engarrafamento, que tem um detalhe interessante: só se podia usar garrafas brancas transparentes, para que o
consumidor pudesse ver a qualidade do morrão, claro e límpido.
"Nesta bebida, não se mistura nadinha de produto químico, ela é puríssima e é por isso que não faz mal. Voces
querem saber como se faz o morrão? Explico rapidinho: corta-se a cana de agosto a dezembro, deixa-se descansando, de 10 a 15 dias. Depois, moe-se.
Armazena-se a garapa ou caldo de cana em barris de madeira e deixa-se azedando de 3 a 4 dias (no frio, demora um pouquinho mais). Em seguida, o produto
vai para a caldeira e mede-se o teor alcoólico da garapa: quando chega a 13 graus está em condições de ser destilada.
Foto: Sérgio Eluf
"Só prá vocês terem uma idéia: 250 litros de caldo de cana - após passar
pelo alambique - dão de 35 a 40 litros de pinga. Depois de destilada, a pinga fica descansando seis meses, no mínimo, para perder a acidez. É por isso
que tem muita pinga ácida por aí, o pessoal tem pressa de vender e não espera o tempo certo. Outra condição para uma boa pinga: o material por onde a
garapa passa tem que ser todo de cobre, como esse nosso aqui."
Arlindo vai nos dando outras explicações interessantes: "A pinga de cabeça é a primeira que sai. Vem com um
teor alcoólico altíssimo, de 29 a 30 graus. A que vem em seguida já é mais fraca. A gente tem que deixar juntar uma com a outra para se atingir o nível
ideal, de 19 graus. A destilação de 40 a 50 litros de pinga demora de 5 a 6 horas de trabalho."
"A gente não vivia só da produção do alambique - conta Dona Amália -, também vendíamos laranjas, bananas, mel
feito aqui mesmo, ovos. Era uma vida saudável, tive e criei aqui meus cinco filhos: as moças só não moram mais no morro porque casaram com rapazes que
já viviam lá embaixo."
Além do enorme tonel - com capacidade para 6 mil litros - que a família conserva com carinho, uma velha "Ramona",
um Chevrolet 1927, que fazia o transporte da pinga, é o xodó dos Barros, que estão tratando de restaurá-la para que volte, "inclusive, a funcionar". A
velha moenda, os barris de madeira e todo o aparato do alambique, a pinga de 18 anos guardada em enormes tonéis, a velha "Ramona", são relíquias de uma
época de que a maioria dos santistas tem saudades; o tempo em que se convidava os amigos para um morrãozinho no boteco da esquina.
Outro antigo alambique que também só serve familiares e amigos é o do Seu Eduardo Francisco, o
"Periquito", outro português. Quem se interessar, é só subir o morro e perguntar pelo velho engenho que fica perto da cachoeira... Mas, daí a conseguir
degustar o delicioso morrão, é coisa que vai depender de um papo com Seu Eduardo!
Receita do "morrão consertado"
Dona Tercina Gonçalves, 73 anos, é uma ardorosa admiradora - e defensora - de Santos,
apesar de morar em São Vicente: "Prá mim, Santos e São Vicente é tudo uma cidade só". Foi Dona Tercina quem nos deu a informação de que ainda havia
alambiques funcionando no Nova Cintra e é ela quem nos dá agora a receita do morrão consertado, tomado pelos banhistas ao amanhecer, na
praia, após um gelado mergulho medicinal.
"Os banhos de mar - recorda Dona Tercina - eram considerados medicinais e só
aconteciam no inverno. Nada desse negócio de ir tomar sol para ficar bronzeado. O pessoal ia para a praia cedíssimo, ainda escuro, e se banhava
naquela água fria. Depois, só o morrão consertado mesmo para evitar uma gripe daquelas!"
Prá quem quiser experimentar, vai aí a receita: morrão da Nova Cintra com
canela, nóz moscada e mel a gosto. Uma delícia! |
Foto: Sérgio Eluf
Extraído da publicação Comunidade é onde nos sentimos bem, livrete especial da Mobil Oil do Brasil em
comemoração ao 25º aniversário de sua Usina de Lubrificantes em Santos, 1982. Textos de Sônia Mateu L. de Abreu, fotografias preto-e-branco de Sérgio
Eluf. Foto colorida do site Madeira-web |