O Camarinha, em charge de Anatolio Valladares, diretor da Santos Ilustrado, em
1903
Imagem: revista Santos Ilustrado, número 7/ano I, 16 de fevereiro de 1903
Tipos populares
Não vamos apontar todos os tipos populares que viveram
em Santos em qualquer época, senão apenas alguns deles, que, na verdade, deixaram traços curiosos na sua vivência santista.
Os dois tipos mais populares neste começo de século (N.E.:
século XX) foram Santos Alfaiate e Camarinha, que chegaram a merecer fotografias especiais da Revista da
Semana, em seu famoso número dedicado a Santos, em 1902.
Camarinha, por exemplo, fez furor na Cidade. Era a encarnação do dipsomaníaco
incorrigível e do boêmio impenitente. Sujo, roto, esmulambado, ele bebia desbragadamente e sempre tinha uma anedota para contar. Houve ocasião em
que o secretário do Interior, por ato largamente difundido, proibiu que se escarrasse nas ruas e o nosso Camarinha, grande gozador, apareceu
nas ruas com uma caixa de charutos nas mãos, cheia de areia. E a quantos encontrava, pedia que escarrassem na caixinha. Por vezes, premido pela
necessidade, vendia bilhetes de loteria. Mas tinha boa índole e era sentimental. Pouco antes de morrer, o que se deu a 12 de junho de 1907, mandou
chamar seu protetor e, dizendo-lhe adeus, agradeceu-lhe por todos os favores recebidos. Ao desaparecer, ele revelara uma gratidão serena e comovida,
que é o apanágio das almas boas.
Quem não conheceu a Maria Sapa? Depois que o marido morreu, o Manezinho, que
foi da Guarda Nacional, a mulher andou por todos os cantos e acabou pedindo esmolas, profissão que também foi seguida pela filha, enquanto o
filho, o Ziloca, se tornou popular pela aptidão futebolística. Maria Sapa foi uma das maiores pedintes de Santos. Fazia boa féria, dizendo-se
que, muito católica, distribuía parte do que ganhava em obras pias protegidas pela santa de sua devoção; assim, diariamente, visitava e depositava
óbulos numa caixa da igreja do Carmo.
Antônio Augusto Vieira, o Guari, foi o jornaleiro mais popular de Santos.
Vendia exemplares de A Tribuna desde 1900. Como o Mata Cobra, outro jornaleiro, o nosso Guari fazia-se conhecer por toda a
gente de Santos e era de vê-lo nas ruas apregoando os jornais do dia, sempre jovial e chocarreiro. Seus títulos de glória como vendedor de jornais:
serviu a dois presidentes de Estado, Washington Luiz e Altino Arantes, quando ambos iniciavam visita à Cidade.
Ubaldo Pinto, o Badico, era tipo eminentemente popular. Trabalhava em armazém
de café e teve influência na Cidade até 1940. Consagrava verdadeira afeição ao Clube Internacional de Regatas, de que era
sócio. Sem prejudicar a atividade profissional e muito menos os compromissos do lar, era um boêmio inteligente. Em certo Carnaval, ele fez sucesso
quando surgiu pelas ruas fantasiado de bebê, deitado num berço quase destruído, que era puxado por esse outro boêmio, o Silvano Costa, o Tip Top.
Mas, boêmio mesmo, foi o Ataualpa Ferraz Moreira, funcionário público, fiscal de
leite, solteirão da gema, amigo dos amigos, freqüentador de bares. Moreira tinha duas personalidades: quando trabalhava e quando bebia. Afeiçoado do
remo, certa vez ele foi a uma regata, das que se realizavam no Valongo, e, como não podia suster-se de pé, andou de
quatro durante quase toda a tarde na área destinada ao público, que era o cais do Valongo.
Conta-se que, muito sentimental, o Moreira foi ter em determinada manhã a um velório,
embora não conhecesse o defunto, nem os familiares. Foi por ir. Maneiroso, afável e prestadio, veio a saber da dificuldade da família para o
funeral. Não teve dúvida. Encarregou-se do enterro, embora também desprevenido. Como o fazia quase obrigatoriamente, jogou no bicho. E ganhou.
Correu à casa funerária, pagou o caixão e tocou para a casa do defunto, para acompanhar o enterro. Quase na hora do saimento fúnebre, a viúva,
chorando, agradeceu-lhe o gesto de bondade. E o nosso Moreira, o "alô pirão", olhando para o defunto, esquálido, sobre o caixão, trombeteou:
- Velho, se não desse o jacaré...
E o Minas? Maior mentiroso que Santos já conheceu. Nunca deu vantagem a ninguém, senão
a ele próprio, cujas qualidades proclamava, principalmente a de esportista, que, pelo seu pronunciamento, não havia similar em todo o mundo. Minas
falava e se gabava. Se lhe fôssemos dar crédito nos episódios de arte, esportividade, intelectualidade e economia, ele seria o maior cantor deste e
outro século ou o maior executante de qualquer instrumento, maior atleta do mundo e o maior escritor que apareceu neste Brasil. Minas mentia por
necessidade psíquica. Os rapazes da rua XV, mais que outros, o gozavam. Era um maníaco.
Vamos apontar apenas uma de suas façanhas: no dia 13 de março de 1936, havia uma prova
de ciclismo promovida pelo Santos Moto Clube. Muita expectativa, muito público. A disputa já havia iniciado, quando o Minas procurou o repórter de
A Tribuna e, dizendo-se o Foguete, jurou que venceria a prova, pois a saída dos concorrentes - já verificada - seria um handicap
de sua parte. E, de fato, tripulou a bicicleta arcaica, que não era de corrida. Foi até a praça Rui Barbosa e retornou -
a poucos metros - ao ponto de chegada da corrida, que era de resistência. Eufórico, deixando a máquina, dirigiu-se ao repórter e às autoridades da
corrida, exclamando: "Viram? Ganhei na surdina, sem fazer grande força!"
Manuel Nunes, o autêntico vencedor da prova, quando soube do episódio, não escondeu o
seu riso...
Camarinha e Santos Alfaiate, em foto de 1902
Imagem publicada na Revista da Semana do Jornal do
Brasil (Rio de Janeiro/RJ), número especial dedicado a Santos, em janeiro de 1902
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