Grupo de populares defronte ao Empório Sul Riograndense
(praça Rui Barbosa, esquina da Rua do Comércio),
destacando-se na primeira fila pequenos jornaleiros. Foto de 1907
Foto publicada com a matéria
Pequeno jornaleiro
Ignácio Rosas de Oliveira (*)
Foi celebrado em prosa e verso, imortalizado na pedra e
no bronze, em pequenos troféus conferidos anualmente. No Rio de Janeiro há uma casa - parece que hoje transformada em Fundação - que leva seu nome.
Vendia pelas ruas o pão do Espírito, da mesma forma que outros meninos vendiam pão
mesmo ou guloseimas que punham água na boca, preparadas pelas mãos de fada de mães carinhosas e abnegadas, à cata de mais alguns níqueis para as
despesas do lar.
Era o pequeno jornaleiro, hoje uma figura do
Passado, que fazia parte da paisagem humana das grandes cidades.
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Aqui em Santos existiram muitos. Via de regra eram
garotos escanifrados, alguns mal saídos da primeira infância. Os tipos eram os mais variados: brancos, pretos, louros, claros, mestiços. Brigavam
por qualquer coisa, às vezes por nada - com as mãos, pés e ... cabeça. Eram habilíssimos para dar uma rasteira ou cabeçada, estatelando o adversário
no solo. Não procediam como os moleques de hoje, que usam lâminas de barbear, canivetes e até facas em suas brigas.
Mas eram unidos - como soem ser os humildes. Mordiscavam juntos o pedaço de pão dormido que
os mais afortunados traziam no bolso, misturado com fieira e pião, bolinhas de gude, tampas de garrafas e caroços de abricó, ingredientes
utilizados em seus jogos infantis.
No bolso traseiro o estilingue, com o qual abatiam
avezitas descuidadas, nos caminhos dos morros ou na galharia dos jamboleiros à margem dos canais. Às vezes tal arma servia para defesa contra algum
atrevidaço que com eles se metesse.
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Moravam em barracos dependurados pelas encostas dos
morros - desses que a enxurrada leva quando desabam os aguaceiros. Ou em infectos porões mal ventilados, que ainda existem aí pela Vila Matias, no
fim das Ruas General Câmara, João Pessoa, Amador Bueno e São Francisco, lá pelas bandas do Paquetá e em outros pontos da Cidade.
Chovesse ou fizesse bom tempo, não perdiam o ponto. Entre 3 e 4 horas da madrugada, chegavam
ao local da impressão. Encostavam-se pelos portais ou ajeitavam-se na área de distribuição e aproveitavam para tirar uma soneca, cobrindo-se com
folhas de jornal quando fazia frio - até serem despertados pelo ronco das rotativas.
Quando chovia e o frio chegava, vestiam velhos
paletós de adultos, que tornavam grotescas suas figuras simpáticas. E usavam chapéus maiores que a cabeça, que iam até as orelhas.
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Cedo aprendiam a fumar. Quando não tinha, pediam
cigarro a qualquer um: "Moço, me dá aí um queimante?" ou filavam dos companheiros, indo ao extremo, se não havia para repartir, de pedir ao mais
afortunado, dono do último cigarro: "Me deixa bia".
Tinham apelidos engraçados: Chimbica, Nariz de Cheiro (nariz comprido),
Chuveiro (que espirrava a toda hora em cima dos outros), Me-dá-me-dá (que pedinchava coisas aos companheiros).
Havia um pretinho que sofria de albinismo (enfermidade que destrói a pigmentação da
pele, deixando-a branca). A doença atacara-lhe os pés indo até ao meio das pernas. Apelidaram-no de Gato de Botas. Mas, chamá-lo pelo apelido
era fogo! Se o que se atrevesse estivesse perto, levava taponas de criar bicho, pois o garoto era tronchudinho e destemido. Se estava longe, a
família era xingada até a quinta geração.
Outro que brigava prá valer quando o chamavam pelo apelido era o Janela Fechada.
Tinha um olho vazado e não gostava, com toda a razão, de que debicassem sua desdita.
Sabiam pôr apelidos como ninguém. Numa manhã domingueira, na Praça José Bonifácio (que
homenageia José Bonifácio, o Moço, mas que uma lei mal cuidada resolveu que o homenageado é o Patriarca), à saída da missa um cavalheiro baixote e
neurastênico, que anda por aí vivinho, desentendeu-se e discutiu com um jornaleiro por causa de troco, que cismou estar errado. O garoto olhou-o,
altaneiro, e falou com sumo desdém: "Pode ficar com o troco, seu jacaré engomado, que eu não faço caso de tostão". E lá se foi, assobiando.
Observei o homem e a custo contive uma risada, o mesmo fazendo outros que apreciaram a
cena. Pelas feições e físico o cavalheiro lembrava mesmo um jacaré. E na ocasião trajava terno branco, rebrilhante de goma! Até hoje, quando ele
passa, os que sabem da estória, que logo se espalhou, murmuram em surdina:
"- Lá vai o jacaré engomado!"
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Jornaleiro sempre soube subir ao bonde em movimento.
E descer, também; em bonde aberto, esclareço. É habilidade que causava pasmo aos estrangeiros que nos visitam. E que tinha muito de perigo, porque
às vezes o artista encontrava numa casca de fruta e esparramava-se no chão.
Ágil, porém, como jornaleiro, não há, nem houve nunca. Era de arrepiar os cabelos! Subia e
descia do bonde na maior velocidade, ainda por cima sobraçando o maço de jornais. Não respeitava nem elétricos das linhas
"X", "Y" e "R" - considerados os fitas-azuis do tráfego de bondes, pois transitavam em alta velocidade. Era espetáculo digno de ver e que
os turistas (eta palavra que provoca polêmica e põe arrepios na pele do santista, por motivos vários!) fotografaram e filmaram em várias ocasiões.
O garoto firmava os pés no solo, inclinava um pouco o corpo para o lado do veículo e
quando este passava zás! Segurava o balaústre ou a entre-via, e lá se ia, apregoando: Tribuna! Gazeta! Diário!
Para saltar, largava o balaústre ou a entre-via, fazia um ponto-morto no ar e descia,
segurando o chão com os pés, agachado, completamente imóvel!
Mas artista também é vítima de acidentes, inclusive artista de circo. Vários pequenos
jornaleiros perderam a vida sob as rodas de caminhões e dos próprios bondes. Outros ficaram estropiados para o resto da vida - o que é pior.
O pequeno jornaleiro foi personagem que atestou a
penetração de A Tribuna nos hábitos do santista. Às vezes um cidadão chamava um jornaleiro: "Tribuneiro, me dá aí um Diário..."
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Em sua maior parte, essas crianças, que cedo
começaram a trabalhar, seguiram pela vida exercendo profissões humildes, às vezes perigosas. Deles saíram carregadores, serventes, faxineiros,
garagistas e porteiros. Outros foram trabalhar na estiva e em outras pesadas tarefas portuárias. Mas alguns foram mais longe - lutaram, estudaram e
venceram, conquistando merecidamente um lugar ao sol. Ocuparam ou ocupam ainda funções de destaque no complexo comercial da terra santista.
Tenho o prazer e a honra de contar com a amizade de um antigo jornaleiro, criatura
boníssima, que dedica a vida à prática do Bem - aposentado do alto cargo de superintendente de importante firma estrangeira do comércio cafeeiro.
Sua infância, conta ele, decorreu no bairro do Saboó.
Deixo aqui suas iniciais: R. P. - quem puder que
adivinhe!
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Santos cresceu, transformando-se em importante
centro comercial. Seu progresso acabou com várias coisas que a tornavam típica - entre as quais o pequeno vendedor de jornal.
Hoje, vender jornais e revistas é atividade comercial como outra qualquer. E rendosa,
acrescente-se. É exercida em bancas funcionais, de metal, algumas mal localizadas, atrapalhando o trânsito.
O jornaleiro, que enfeitava e sonorizava a paisagem citadina com seu pregão, é coisa
do Passado...
Cartão postal que circulava em 1913, quando surgiam os primeiros jornaleiros (ou
tribuneiros, por apregoarem as manchetes do jornal A Tribuna), mostra o antigo Largo do Rosário, atual
Praça Rui Barbosa, visto desde a Rua General Câmara, tendo à direita a então
Rua de Santo António, futura Rua do Comércio, então fechada por tapume, para obras de
alargamento.
Um dos meninos em primeiro plano nessa imagem exibe um exemplar de A Tribuna.
O outro está com exemplar da revista O Malho
Foto: Acervo José Carlos
Silvares/Santos Ontem
(*) Ignácio Rosas de Oliveira, do Instituto Histórico e Geográfico de Santos.
Nota do editor do Almanaque da Baixada Santista, publicada com a matéria: "Este
trabalho é de autoria de Ignácio Rosas de Oliveira, nosso distinto colaborador desde o número inicial, deploravelmente desaparecido em 1972.
Publicando-o, tributamos carinhosa homenagem á memória do nosso talentoso colaborador e colega". |