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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - LIVROS
Séc.XX - por Edith Pires Gonçalves Dias (01)

Um passeio pela cidade de Santos, com os olhos que a viram durante boa parte do Clique na imagem para ir ao índice deste livroséculo XX: assim é a obra Santos de Ontem, de Edith Pires Gonçalves Dias, publicada em 2005 pela autora, com apoio cultural da Fundação Arquivo e Memória de Santos (FAMS), Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) e Museu Martins Fontes (mantido pelo Instituto Cultural Edith Pires Gonçalves Dias), todas instituições santistas.

Com 179 páginas, o livro teve curadoria de Rafael Moraes, revisão de Manuela Esquivel Rodriguez Montero e Manuel Leopoldo Rodriguez Montero, capa de Marco A. Panchorra, projeto gráfico de Marcelo da Silva Franco, colaboração de Cynthia Esquivel e impressão Cromosete. A autorização para esta primeira edição eletrônica foi dada pela autora a Novo Milênio, em 30 de julho de 2010. Páginas 8 a 15:

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Santos de ontem

Edith Pires Gonçalves Dias

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APRESENTAÇÃO

Ter amigos é uma grande conquista, mas ter amigos generosos é um privilégio. Eu tenho a satisfação de dizer que os possuo. Generosos, sim, porque sempre elogiam meus modestos escritos e incentivam-me a dar continuidade a esse hábito de passar para o papel idéias que vêm à mente.

Ainda em sua generosidade, dizem esses amigos, que tenho uma memória privilegiada, uma vez que lembro com razoável nitidez de grande parte dos acontecimentos de nossa cidade.

Todos sabem que sou uma saudosista assumida. Lembrar as coisas do passado me dá um grande prazer. É como se essas lembranças trouxessem para o presente muita coisa que vem sendo sepultada pelo esquecimento.

Isso não quer dizer que eu não admire, e considere devidamente, o progresso que se faz de uma forma até incontrolável. O progresso que deriva da própria evolução do ser humano. Estamos vivendo a era da tecnologia e novas descobertas se acumulam, sempre no sentido de melhorar a qualidade de vida do homem.

Preocupa-me demais a falta de fé das criaturas. Hoje vemos poucas pessoas vivendo uma crença. Estão se afastando cada vez mais de Deus, na procura intensa de outros valores.

Nunca combati nenhuma religião, uma vez que as considero como poderosas colunas de sustentação à grande verdade que é Cristo, o maior comunicador de todas as épocas.

Ele viveu entre nós, para que desenvolvêssemos a idéia de que somos filhos de um Pai poderoso, porém magnânimo, oferecendo sempre os meios necessários para termos uma vida digna.

É a religião que dita normas de vida e o homem não pode desprezá-las. Muitas vezes é o orgulho que faz com que ele dela se afaste.

Em minhas divagações vou esquecendo de revelar o que me levou a escrever mais um livro.

Devo dizer que escrever um livro é como criar um filho. Nele colocamos todo o nosso amor, para que traga aos leitores algum prazer. É como dividir nossa alma com o próximo, é viver intensamente um ideal. A arte de escrever é uma coisa espontânea que sai de nossa mente com naturalidade. O livro nasce sempre da inspiração.

Não posso deixar de revelar que, embora muitos desses amigos generosos venham me pedindo há muito tempo mais uma obra, eu tenho de citar duas pessoas que, sem exagero, me intimaram a fazê-lo.

Yedda de Burgos Martins de Azevedo, minha amiga desde o tempo de colégio, hoje companheira na Academia Santista de Letras, deu-me uma consciência exata de que não devo me omitir com relação a esse pedido. Disse-me ela: - "Quando você morrer, levará essas lembranças consigo".

Reconheço que ela tem razão. Seria egoísmo não dividi-las com os outros. Os mais velhos sentir-se-ão felizes por fazê-los lembrar de coisas que vão sendo esquecidas. Quanto aos mais jovens, terão conhecimento de uma maneira de viver que poderá parecer-lhes uma ficção, tal a diferença da vida no meu tempo de criança e adolescente e a de hoje.

Outra pessoa que me estimulou muito foi um jovem que se tornou meu grande amigo, por termos um ídolo comum, Martins Fontes. O antiquário Rafael de Moraes Gonçalves, cuja maneira de ser faz com que se consolide mais ainda a minha crença na teoria de muitas vidas. Ele deve ser um espírito milenar que atingiu um grau de evolução surpreendente, ele vê e analisa as coisas com uma maturidade espantosa, o que me encanta.

Nosso convívio tornou-se mais intenso em 2004, por ocasião do evento da tradicional (desde 1998) Casa Natal. Ele teve a feliz idéia de incluir na sua exposição uma homenagem ao médico e poeta Martins Fontes, através de objetos, fotos e livros dessa inesquecível criatura humana.

Para que os visitantes pudessem avaliar seu talento cultural, pediu-me que fizesse a sua biografia. Consegui escrever um resumo de sua vida, sem omitir os principais fatos que tanto a enriqueceram. O interesse de quantos ali compareceram deixou-nos surpresos.

As pessoas não se contentavam apenas em receber o livro, queriam o meu autógrafo. Alguns, ao cumprimentar-me, diziam alegremente: - "Quando chegar à sua idade, eu gostaria de ter a vitalidade, o entusiasmo que você demonstra por tudo o que significa arte e cultura". Autografei das dezenove horas a 01h30 do outro dia, sem nenhum intervalo. A verdade é que, quando se faz o que gosta, o corpo não se cansa. Uma força inexplicável nos renova as energias. Também não posso deixar de agradecer o apoio cultural que tivemos da Unimes, através dessa doce criatura que é Renata Viegas da Cruz.

Nunca pensei em enganar a minha idade, idade é um detalhe apenas, sem grande importância. Com meu apurado senso de observação percebo que existem velhos jovens e jovens velhos. Tudo decorre do seu comportamento, do seu posicionamento dentro da comunidade em que vivem. Para quem tem ânimo e vontade de colaborar, há sempre o que fazer e em qualquer lugar. Eu sempre mantive atividades assistenciais e acredito ter cumprido meu dever de auxiliar os menos favorecidos e os que necessitam da ajuda, que muitas vezes se traduz numa simples palavra amiga, de encorajamento, de estímulo.

Hoje, outras tarefas surgiram à minha frente e as tenho assumido com o desejo que jamais me abandona, o de servir.

Tenho me voltado mais para a cultura e é por esse motivo que escrevo mais este livro. O tempo passa, os costumes se modificam e o que ficou para trás é registrado no nosso arquivo de lembranças. Chega a ser um dever trazê-las para o presente, como se fossem fatos históricos. A vida será sempre uma história que tem de ser transmitida através das gerações. Não podemos esquecer que o valor de um povo se mede pela sua cultura e tradições.

Encerro aqui essas considerações necessárias para prepará-los  me acompanharem nessa viagem ao passado que, acredito, possa transformar-se num oásis em meio à caminhada vertiginosa que hoje empreendemos.

OS NASCIMENTOS

Durante muito tempo os partos eram feitos na residência das famílias e não me lembro de qualquer insucesso no trabalho das famosas parteiras. Não tinham cursos, e eram até chamadas de "curiosas", porém adquiriam uma prática inegável.

No final do século XIX a mais conhecida em nossa cidade era Maria Patrícia, uma criatura de alma nobre e dona de grandes virtudes. Tinha um enorme prestígio na sociedade santista. Quantos abriram os olhos para a vida terrena sob seus cuidados especiais! As famílias mais tradicionais tinham confiança absoluta na sua capacidade!

Podemos citar as famílias de Belmiro Ribeiro, Joaquim Fernandes Pacheco, Francisco da Costa Pires, Joaquim Feliciano da Silva, Adolfo Bastos, Manoel Augusto Alfaia, Lucas Fortunato, Adolfo Millon, Antônio Cândido Gomes, Arlindo Aguiar, Rodolfo Guimarães, Luiz Venâncio Rosa, Ricardo Pinto, dr. Malta Cardoso, dr. Luiz Porto Moretz de Castro e muitas outras pessoas ligadas à história da cidade.

Quando começaram a aparecer parteiras formadas na França e no Rio de Janeiro, como Elisabeth Pelessier, Catarina Maria de Jesus e Sophia Schaeler, algumas pessoas tentaram levar Maria Patrícia ao descrédito. Mas não o conseguiram. Ela contava com o apoio de dr. Silvério Fontes, que reconhecia a sua competência. Paulo Gonçalves, o grande poeta santista, era seu neto.

Referindo-me ainda a essa extraordinária criatura, lembro que, em sua residência, deu-se a fundação da Sociedade Espírita Anjo da Guarda. A caridade por ela praticada não tinha limites. Até falecer, aos 65 anos, mereceu o respeito e a consideração do povo santista. Plenamente justificada a colocação de seu nome em uma rua do bairro Santa Maria e na escola que funciona no bairro do Saboó.

Lembro aqui outras parteiras que se tornaram famosas e conhecidas: Madame Labarte, Esther Rivas e Maria Pergolizzi.

Na quarta década do século XX (1931/40), os partos começaram a se fazer nos hospitais. Surgiram as maternidades, caindo por completo o costume de ocorrerem nascimentos nas moradas das famílias. As bacias esmaltadas, onde eram banhados os bebês, foram substituídas pelas banheirinhas confortáveis e cada vez mais práticas.

Sempre o progresso e a criatividade procurando facilitar o modo de viver. Cueiros e cinteiros foram dando lugar aos macacões. A evolução, procurando tornar mais fácil o nosso dia-a-dia. Quem só conhece as fraldas descartáveis, não acredita que antes elas eram confeccionadas em tecidos apropriados e que dava muito trabalho lavá-las. O dia em que caía o umbigo era uma glória. Consolidava-se aquele frágil corpinho de bebê.

OS BATIZADOS

Batizar as crianças recém-nascidas, mais que um ato de fé, era uma tradição. A cerimônia revestia-se de um ar festivo. Não havia batizados coletivos, como os de hoje. Cada criança, o quanto mais cedo melhor, era levada para receber os santos óleos e as bênçãos divinas pela mão do pároco. As camisolas que vestiam eram alvas, simples ou ricamente bordadas, sempre de acordo com as condições econômicas da família, mas sempre passando por várias gerações. Após a cerimônia, eram lavadas e guardadas com o necessário cuidado, para serem usadas no próximo batizado em família.

Era um ritual conservado com muito orgulho. Era motivo de alegria, batizar um filho com a mesma camisola que servira aos antepassados. Isso sem falar na imprescindível touca, entremeada de rendas, que protegia e agasalhava a cabecinha do recém-batizado, depois de receber a água benta que o tornava cristão. Ainda pude manter essa tradição com meus netos, mas com os bisnetos ela foi quebrada. Os macacões se tornaram os grandes vencedores.

Hoje se batiza em série, o ritual perdeu seu ar solene, tornando-se quase uma banalidade.

Quando olho para a pi batismal da Basílica de Santo Antônio do Embaré, lembro-me dos inúmeros sobrinhos e meus filhos, que nela foram batizados. Ela foi um presente de meu pai, na terceira década do século passado (1921/30). Toda em mármore esculpido, a pia batismal é uma obra de arte, que se tornou peça de museu!... Como as célebres camisolas que hoje estão no fundo de algum armário, até serem consumidas pelo tempo e pela falta de conservação. Um fim melancólico!...

Era costume naquela época, as mães não comparecerem ao batizado do filho. Talvez uma superstição. Mas certamente era porque as crianças eram batizadas logo, e as parturientes durante quarenta dias eram consideradas como convalescentes, obrigadas a algum repouso e ao célebre caldo de galinha, ora com arroz, ora com farinha de mandioca, levando um galhinho de hortelã para torná-la mais saborosa. Como se parto tivesse algo a ver com estômago!

Igreja do Embaré, antes de 1928

Foto: acervo de Carmen Cabral e sua avó Sylvia Pires Faria de Paula,
imagem enviada a Novo Milênio em 31/5/2006