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Exórdio
Depois do dia 2 de agosto de 1898, dia
em que me despedi de Santos, transferindo a minha residência para S. Paulo, não mais voltei aqui, senão após 9 anos, entre os quais atravessei, como
é natural a todo aquele desprotegido da sorte, algumas privações, a par de alguns desgostos, entre eles a perda da vista direita, pelo mal
"tracoma", que então manifestou-se em S. Paulo em caráter epidêmico, havendo necessidade de se instalar um hospital exclusivamente para o tratamento
daquela moléstia, e era dirigido pelo distinto médico oculista dr. Giovanni Pignatari.
Dentre os infelizes atacados do terrível mal, muitos salvaram-se, outros cegaram completamente, e
outros ficaram como eu: - com um olho só.
Levei a perda da vista para o ponto das coisas naturais, e como não fui a única vítima, mais
consolado fiquei.
Meses depois, livre completamente desse mal que me custou carradas de aborrecimentos e dores
terríveis, coloquei-me como tipógrafo no jornal A Noite, que obedecia à direção do falecido Nogueira de Carvalho e do sr. Samuel Porto, hoje
diretor proprietário do O Rebate, criado por Júlio Ribeiro.
As oficinas da A Noite funcionavam na Rua da Boa Vista, junto aos prédios que foram
demolidos para a construção da Galeria de Cristal.
Ainda nessa época, lendo o Estado de S. Paulo, deparo com um telegrama de Santos no qual
vinha a triste notícia do falecimento, por submersão, nas proximidades da Ilha Porchat, dos rapazes Hermenigildo e
José Ferreira (Jujuca e Gigi).
Senti, porque além de aparentados meus e conterrâneos, eram duas almas nobres, e a sociedade
santense teria neles dois homens de alto valor, pois ainda muito moços revelavam nobreza de caráter.
Imaginei pelo meu sentimento, após a leitura desse contristador telegrama, o que não iria na alma
da santa mãe dos desditosos rapazes, que é Lilia Botelho, verdadeiro modelo de virtudes e amantíssima em extremo dos seus queridos filhos. O meu
sentimento, portanto, diante do de Lilia, não podia ter comparação, é certo, mas a mágoa calou-me de rijo.
Dois dias depois dessa infausta notícia, estava eu lendo, para matar o tempo, um jornal espírita -
o Verdade e Luz - então dirigido pelo pai dos pobres (como o chamavam) que era o sr. Antonio Gonçalves da Silva Batuira, respeitável e
caridoso ancião, estimadíssimo em toda S. Paulo e venerado pela pobreza do Lavapés, bairro onde ele tinha a sua propriedade particular, as oficinas
onde era impresso o Verdade e Luz, e algumas pequenas habitações que alugava de preferência à pobreza, ou mesmo dava, livre de aluguéis,
conforme as condições do locatário, que muitas vezes era uma pobre viúva carregada de filhos menores, ou não era viúva porém tinha o marido enfermo,
entrevado há muito tempo, ou encostado na Santa Casa, curtindo longa enfermidade.
Dedicava-se também o sr. Batuira ao tratamento pela homeopatia, distribuindo medicamentos, todos
os dias, e desinteressadamente, a qualquer que a ele se chegasse.
Morreu pobre, o santo homem, mas deixou um tesouro de inestimável valor: - a sua memória sempre
venerada.
Mas, como antes ficou dito: lia então o Verdade e Luz, muito distraído, quando ouvi um
estrondo brutal. Saí à rua. Observei que do alto da cidade, em ponto que eu não podia calcular precisamente, elevava-se às nuvens, negra e compacta
coluna de fumo, manchando o céu, aterrorizando a terra.
- O que seria?! O que foi?! Eram as perguntas precipitadas que escapavam de todas as bocas.
Não demorou muito, em todo o Lavapés, circulava a notícia
do grande incêndio na Loja do Japão, à Rua de S. Bento, motivado pela explosão de matérias inflamáveis que existiam armazenadas nos fundos
daquele estabelecimento.
***
Morre o jornal A Noite e surge o O Imperio,
órgão de propaganda monárquica que também expirou logo. Nasceu na Rua do Carmo e morreu na Rua de S. Bento. Outros jornais desta época nasciam em S.
Paulo, um atrás do outro, e morriam da mesma forma: parece que todos eles traziam consigo o "mal de sete dias".
Por último, assisti uma charge pública exibida nas principais ruas da cidade. Acadêmicos da
Faculdade de Direito atravancavam as próprias bocas com rolhas de cortiça e, um deles, o mais alto, empunhava um estandarte de algodãozinho
ordinário, talhado a esmo e preso num cabo de vassoura.
Numa face do improvisado estandarte lia-se em letras garrafais, pintadas de preto, o lema
parodiando o de Dante, na sua obra O Inferno:
"Lacciare ogni speranza, voi che parlati"!
e na outra face do mesmo estandarte, a frase sentenciosa:
"Dura lex, sed lex"!
Compreendi o alcance destas legendas: - era em represália a alguém do cocuruto do poder estadual,
que um dia lembrou-se de mandar calar a imprensa e a mocidade acadêmica sobre qualquer coisa que politicamente tocasse na ferida do homem...
As rolhas foram arremessadas para dentro de uma redação e,
no dia seguinte, os estudantes davam "a última demão", para complemento do desagravo: fizeram em pleno Largo do Rosário, em frente à confeitaria
Castellões, o enterro do morto moral, ao som dum miserere estapafúrdio, e ali mesmo, antes que a polícia dispersasse o cortejo
fúnebre, incendiaram o pequeno ataúde, as coroas feitas com tranças que prendem cebolas (réstias) e abandonaram os círios que eram pequenas
velas de sebo.
***
Dos tipos populares que havia em São Paulo, o mais elevado
era o preto Leoncio, porque tinha entrada nas rodas da estudantada, fazia discursos à porta do palácio da presidência, dava ordens à polícia,
comparecia a todas as manifestações da alta e baixa estirpe, era distribuidor de avulsos, comandava a esmo, dormia (quando lhe apetecia) na Central
e saía pela manhã sem dar satisfações à sentinela; bebia muito para acalentar o frio de S. Paulo - como ele dizia - e, por último, antes da sua
morte que foi muito sentida, envergou o uniforme de porteiro da Casa Alemã, mas, um porteiro-reclame...
Leoncio, segundo os que o conheceram na sua mocidade, foi muito fiel aos seus e era de caráter
fino. Na questão do protocolo, Leoncio manifestou-se, no burburinho, um brasileiro a toda prova, o que lhe valeu receber uma facada nas
virilhas, ficando com o andar defeituoso.
Outro tipo era o Antonio Mulato, um idiota que tinha muita prática de lavar cavalos de estimação e
fazer compras para a vizinhança - isto em dias em que "a lua" não o apertava. Quando a crise da loucura se manifestava, aparecia o Antonio, no
Lavapés, a exclamar, sempre andando em passo acelerado, as palavras:
- Deus é Pai! Nossa Senhora é Mãe!
***
Dentre os fatos contristadores, realçou um, principalmente
no mundo artístico teatral:
Em outubro de 1902, chegou a S. Paulo uma jovem e bela rapariga que deveria estrear no Polytheama
Concerto, como exímia bailarina. Os cartazes do Polytheama, anunciando o aparecimento daquela estrela, andavam sendo distribuídos em profusão.
A estréia da rapariga não se deu, porque às 10 1/2 da manhã, circulavam notícias de que à Rua S.
João, numa pensão, suicidara-se uma mulher, a mesma que ia deliciar os habitués do Polytheama Concerto, a bela dançarina. E o suicídio fora
praticado com uma faca de mesa, propositalmente afiada para esse trágico fim, diziam os boatos.
Infelizmente, foi isso mesmo; e, segundo o médico-legista,
ocasionou esse ato de desespero a "mania de perseguição", de que era atacada a infeliz moça.
***
Tive a felicidade de entreter relações com Alfredo
Colombo, a quem fui apresentado quando entrei a trabalhar no jornal A Noite. Era e é o Colombo um belo rapaz, um amigo dedicado e um artista
gráfico de mão cheia.
Devido à amizade travada com o Colombo, fui por ele arrastado ao meio artístico-teatral. Por ele
fui proposto sócio da Sociedade Dramática Luso-Brasileira. Nesse meio, foram meus companheiros de cena, em diversas peças, os amadores Mario Porto,
Carlos Schortz (já falecidos), Pedro Quedinho, Joaquim Bandeira, Silvio Lage, Luiz Tino e outros.
Na peça O Guia da Montanha, conheci pela primeira vez a sra. d. Elvira De Camillis, e as
atrizes (que só trabalhavam para sociedades particulares) Maria Lima, Julia Gobert (falecida), Luiza de Souza, Alice Portugal (já era velha
conhecida), Medea Cintini e as irmãs Polonio.
No Braz, pertenci aos Alunos de Talma, cujo elenco era: Hugo Valeri, Manoel Vieira da
Costa, Joaquim Bandeira, Silvio Lage, Alfredo de Moraes etc. As damas eram sempre as mesmas: trabalhavam em quase todas as sociedades dramáticas.
O repertório da Luso-Brasileira era escolhido, constando dele as peças Falsa Adúltera,
Os Enjeitados, Estranguladores de Paris, Filha do Mar, O Conde de S. Germano ou O Diabo em Paris, Guia da
Montanha, Remorso Vivo, Médico das Crianças, Morgadinha de Val-Flor, Estátua de Carne, Poder do Ouro,
Vampiros Sociais etc.
Fiz a minha estréia, em São Paulo, em dois espetáculos no mesmo dia - matinée e soirée.
Na matinée representou-se a comédia em 3 atos O primeiro marido da França, na qual eu fazia o protagonista; Elvira De Camilles, a
criada; Julia Gobert, a caricata, e Luiza, a cocote.
À noite, levou-se Os Enjeitados. Joaquim Bandeira foi o galã; Gobert, a velha mãe, e eu
tomei conta de dois papéis: o capelão da casa da viscondessa, e o administrador da Santa Casa. Nunca vi o teatro Sant'Anna tão cheio como nesse dia
e na noite desse dia, que era um domingo.
De resto, entre o bom e o mau, tive a honra de assistir, e na capital, a passagem do século
1899-1900. Entre um século que expirava e outro que nascia, assisti à chegada de Santos Dumont a São Paulo,
entusiasticamente recebido por todas as classes sociais e mimoseado com flores e aplausos.
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Passei mais algum tempo em São Paulo, sempre contrariado por isto ou aquilo - coisas da pobre vida
de um pobre operário.
Resolvi então mudar-me para Santos; e, na manhã em que estava disposto e tinha alguns cobrinhos
para a passagem, dirigi-me à estação do Braz, comprei bilhete de 2ª, e, descendo a serra, atravessando os 13 túneis, deixei, quem sabe para sempre,
S. Paulo, a "capital artística", na frase de Sarah Bernhardt.
Carlos Victorino, em foto incluída no seu livro
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