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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
c.1800 - pelo marechal Arouche

"Na Barra Grande achei as portas podres e espedaçadas, o quartel muito arruinado e parte delle a cahir..."

Ao longo dos séculos, as povoações se transformam, vão se adaptando às novas condições e necessidades de vida, perdem e ganham características, crescem ou ficam estagnadas conforme as mudanças econômicas, políticas, culturais, sociais. Artistas, fotógrafos e pesquisadores captam instantes da vida, que ajudam a entender como ela era então.

No início do século XX, no lugar da capital paulista que depois seria conhecido como Largo do Arouche, foram encontrados, abandonados à intempérie, os papéis que formavam o vasto arquivo pessoal do Marechal José Arouche de Toledo Rendon, que era inspetor geral de milícias e comissionado para exame das fortificações existentes no litoral paulista.

Entre os documentos que foi possível resgatar, estava este manuscrito sem data, possivelmente o rascunho de um relatório do marechal Arouche sobre as fortalezas do litoral paulista, que pelo conteúdo se deduz ter sido escrito entre 1797 e 1815. Seu texto foi publicado em 1915 por Azevedo Marques, na série Documentos Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo, Vol. 44 - Diversos, Archivo do Estado de S. Paulo, Typ. Cardozo Filho & Comp., São Paulo/SP, páginas 303 a 308 (grafia mantida nesta transcrição):

Sobre as fortificações da costa maritima da capitania de S. Paulo

Ill.mo e Ex.mo Snr: - Os grandes temporaes que tem havido, desde que sahi dessa cidade, tem sido a causa de eu não ter concluido com maior brevidade a commissão de que V. Ex.ª me encarregou; porem não obstante este e os repetidos ataques da minha molestia, fui a ambas as barras e com todo o cuidado examinei todas as fortalezas, das quaes vou dar a V. Ex.ª uma exacta informação do seu estado.

Pela relação inclusa verá V. Ex.ª, em resumo, o numero de pessoas de que cada uma dellas é guarnecida e o estado actual em que se acham, as que estão montadas sobre reparos novos e o numero de carretas novas que se acham nos armazens desta villa e igualmente a quantidade de barris de polvora que há no armazem e nas fortalezas.


A Fortaleza da Barra Grande em 1880
Foto: Os Andradas, de Alberto Sousa, Vol. I, Typographia Piratininga, São Paulo/SP, 1922

Na Barra Grande achei as portas podres e espedaçadas, o quartel muito arruinado e parte delle a cahir, a casa da polvora por acabar; na bateria de baixo achei algumas peças montadas em carretas podres e outras no chão, muito mal tratadas, de sorte que toda esta bateria está impossibilitada de fazer fogo, sendo a melhor que tem esta fortaleza por serem os seus tiros quasi horizontaes, e pela curta distancia a que chegam os navios pode esta bateria servir-se de balas ardentes, de balas fixas, de balas encadeadas de planqueta, alem de ter velas e cartuxos de pinha, e até pelo ângulo que forma o canal, por onde necessariamente hão de passar os navios, offerecem estes á fortaleza o poder de metter-lhes balas de coxia. Esta bateria apresenta ao inimigo nove boccas de fogo recto e duas em cada flanco, que sendo bem providas podem fazer um grande damno.

Na bateria superior achei quatorze peças montadas em carretas novas; cuja bateria é inferior nas suas vantagens á de baixo por serem os seus tiros mergulhantes e só podem ser bons em maior distancia, ficando incertos pela falta de bons artilheiros. Pelo prolongamento da cortina, até á porta que dá sahida para o forte da praia do Goes, se acham tres peças montadas em carretas novas e nove desmontadas, algumas destas muito mal tratadas, de sorte que não poderão fazer fogo por se acharem cheias de escaravelhos e uma encravada.

Na bateria baixa há um telheiro encostado á muralha da bateria superior, o qual se pode accrescentar unindo a este a casa de um indio que serve á fortaleza; em cujo telheiro se pode ter recolhida a maior parte da artilharia, com os seus reparos, para se livrar dos grandes sóes e immensas chuvas que ha de ordinario neste paiz, e porque a plataforma está de nivel com o terrapleno da praça com facilidade vem esta artilharia ao seu logar na bateria em todo e qualquer repente.

Na mesma circumstancia se pode pôr a bateria superior, poupando Sua Magestade por este modo a immensa despesa que continuamente está fazendo com o carretamem, devendo ser este pintado a oleo de linhaça, e na falta deste com azeite de mamono, e uma terra que há em Cananea que é similhante ao roxo-terra da Italia.

No forte da praia do Goes se acham oito peças, quatro montadas e quatro desmontadas e muito mal tratadas, de sorte que algumas já estão em estado de não poder dar fogo. Este forte defende o único desembarque que há desde a barra até á fortaleza e este desembarque deve ser bem definido. O forte se acha em boa posição, porem se o inimigo consegue pôr o pé em tera com facilidade toma o dito forte e, por consequencia, a fortaleza da Barra Grande. Este forte tem capacidade para se lhe fazer um telheiro, onde se guarde a artilharia afim de a ter em bom estado quando a occasião o pedir servir-se della.

Na fortaleza da Trincheira se acham onze peças, todas desmontadas e algumas já sem serventia. A estacada está toda podre e o quartel bastantemente arruinado. Com pouca despesa se pode fazer na frente do quartel uma grande varanda, onde se recolha a artilharia, pois com facilidade vae a artilharia ao seu logar na bateria em qualquer repente. Este forte cruza os seus fogos com os da fortaleza da Barra Grande e como delle se descobre toda a barra e o mar grosso pode, por esta razão, fazer avisos aos mais para estes se pôrem em acção e promptos para o combate.

A fortaleza de Itapema se acha com seis peças, todas desmontadas, porem boa artilharia apezar de não ter tido quem lhe preste o minimo beneficio. Esta fortaleza, pela situação em que se acha, tem grandes vantagens pelo grande damno que pode fazer aos navios, apezar de lhe apresentar pouco fogo; porem, como o canal é muito proximo á fortaleza, pode esta pelo menos cortar toda a enxarcia e fazel-os desarvorar com planquetas, balas fixas e encadeadas, e pelo ângulo que forma o canal offerecem os navios a pôpa ao flanco, de cuja vantagem se podem aproveitar os da fortaleza, mettendo-lhes balas de coxias, e arrazar-lhes as obras mortas, fazendo-lhes ao mesmo tempo grande mortandade. Nesta fortaleza há logar para se fazer um telheiro em que se possam recolher quatro peças, com seus reparos, e o quartel precisa de grande concerto.


A fortaleza de São João em Bertioga, em cartão postal de meados do século XX
Imagem: acervo do professor e pesquisador santista Francisco Carballa

A fortaleza da Bertioga tem sete peças, todas desmontadas, e acho que só duas poderão dar fogo; o quartel está muito arruinado e por ser muito unido (N.E.: SIC: a palavra poderia ser úmido) não pode conservar um só barril de polvora, e nem tem parte onde se lhe possa fazer commodo para o ter sem grande risco. Nesta fortaleza por força a artilharia há de estar ao tempo e por isso precisa que o carretamem seja bem pintado para lhe poder resistir. Este reducto não tem vantagem alguma mais do que servir de registo na ponta da terra firme, porque alli não defende a entrada da barra e logo que qualquer embarcação entre da barra para dentro tem muito onde fazer desembarque e no caso de a quererem tomar (que não tem necessidade disso) quaesquer 40 ou 50 homens a tomam.

Pelo contrario, o forte de São Luiz, que defende bem a barra e não pode ser atacado por terra, tem capacidade para se lhe poder fazer uma "Casa da Polvora"; os seus quarteis estão principiados e não se fará grande despesa em acabal-os, porem acha-se sem uma só peça; em cujos termos sou de parecer que se tirem da Barra Grande duas peças de calibre 1, huma de 18 do forte da Vigia e huma de 8 da estacada e creio que com estas quatro peças fica uma força sufficiente para impedir a entrada a qualquer embarcação pequena, que são as que podem entrar neste porto.

Creio que com um conto de reis se poderão fazer todos os concertos das fortalezas, á excepção do carretamem que falta, porque desse não tenho pratica para poder fazer o orçamento; isto é, fazendo boa economia e havendo pessoa activa e intelligente, que se aproveite de todas as vantagens para a boa distribuição.

Em todos os mais portos para o sul, pertencentes a esta capitania, só podem entrar corvetas em Cananéa e fragatas em Paranaguá. Em Cananéa não ha defesa alguma e por este mar de Cananéa se vem a Iguape, onde tambem não há defesa; porem como estas duas villas tem duas companhias de Auxiliares, estes podem fazer resistencia a qualquer desembarque, não sendo grande o numero de embarcações.

É bem verdade que em Cananéa se precisa de um forte, edificado na bocca da barra, da parte do norte, tanto para livrar estas duas villas de algum insulto do inimigo como tambem para conservar e livral-as dos insultos que fazem muitas vezes os navios que entram e sahem deste porto, pertencentes ao commercio das mesmas villas, porque a maior parte dos criminosos fogem para bordo das sumacas e corvetas e estas fazem-se á vela quando querem sem ter quem lhe impeça a sua sahida.

Em Paranaguá há uma fortaleza dentro da barra grande, que está quasi nova e bem feita no que pertence a pedreiros e canteiros, porem com defeitos no que pertence ás máximas geraes da fortificação e não tem peças de artilharia, porque lh'as mandou tirar o Snr. Bernardo José de Lorena [1] e porque se lhe tirou tambem a guarnição estão os quarteis quasi todos no chão.

Esta fortaleza está situada na ilha do Mel, encostada a um morrinho que lhe serve de padrasto á cavalheiro, donde quaesquer 20 homens, com mosquetaria, a poem em estado de não poder parar um só artilheiro nas baterias, o que pode succeder muito facilmente porque da paragem onde ella se acha edificada não defende a barra e desta á fortaleza há uma enseada de mais de uma legua onde se podem fazer desembarques sem susto, e feitos elles está tomada a dita fortaleza. Porem, prescindindo destes desembarques, o canal fronteiro á fortaleza é bastantemente largo, por cuja razão podem passar as embarcações com bem pouca ou nenhuma offensa, o que não succederia se fizessem a fortaleza mais para cima 250 braças, em um ponto onde o canal é muito mais estreito; porem é certo que nesta paragem havia de custar mais de dez a doze mil cruzados a sua construcção.

Não obstante estes defeitos eu sou de parecer que se lhe restituam a sua artilharia e guarnição, porque se tiver bons artilheiros sempre há de offender e impor algum respeito a qualquer embarcação e juntamente com os seus tiros põe de accordo a villa, que é bastantemente populosa e tem cinco companhias de Auxiliares para acudirem aos seus postos e pôrem-se na melhor defesa que lhes for possivel, e no estado em que a fortaleza está pode com facilidade ser a villa surprehendida, porquanto podem os navios vir pela contracosta da ilha da Cotinga e apresentar-se defronte da villa sem serem vistos, fazendo logo desembarque sem darem tempo a poderem-se pôr em defesa pelas distancias em que moram muitos dos Auxiliares da dita villa, e por esta razão em outro tempo havia um forte na villa para a defender deste desembarque e que se acha hoje quasi demolido [2]


[1] Capitão-general de S. Paulo de 1788 a 1797. Aquella fortaleza foi construida pelo coronel Affonso Botelho de Sampaio e Souza, por ordem do general D. Luiz Antonio de Souza, nos annos de 1766 a 1775, e deu logar á muita despesa e á pratica de muita arbitrariedade; entretanto, vinte annos depois, estava abandonada e imprestavel para a defesa do porto. (N. da R.)
 

[2] Este manuscripto não tem data nem assignatura. Foi encontrado entre os papeis do marechal Arouche e vae transcripto aqui porque dá uma excellente idéa do que eram as fortificações de Santos e da costa paulista naquelle tempo. Pelos dizeres do manuscripto se vê que é posterior ao governo de D. Bernardo de Lorena, a que se refere como facto passado, e anterior á mudança do nome de "capitania" para "província" visto que fala do territorio como sendo ainda "capitania". Deve, portanto, ser dos anos de 1797 a 1815 e parece ser um esboço de officio dirigido ao capitão general do tempo pelo mesmo marechal Arouche, inspector geral de milicias e commissionado para o exame daquellas fortificações. (N. da R.)


Folha-de-rosto da obra Documentos Interessantes...
Foto: Carlos Pimentel Mendes, em 14/2/2007. Exemplar no Arquivo do Estado de São Paulo