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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (2)

Pessoas que marcaram o cotidiano da cidade em várias épocas
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Esquivo, este ermitão chegou a ser uma lenda (muitos não acreditavam que existisse), até ser entrevistado pela reportagem do jornal A Tribuna, resultando nesta matéria publicada naquele jornal santista em 20 de janeiro de 1980:
 


O ermitão em fuga pelos recantos da cachoeira, integrado à paisagem

O ermitão da Caneleira

Ele vive nas pedras da cachoeira. Há 20 anos

Paulo é um homem simpático e foge quando está diante de seus semelhantes. Nada pode ser feito por ele. Esta é exatamente a vida que ele quer e que escolheu por opção, segundo os parentes. Isso acontece numa cidade de 400 mil habitantes, com gente morando sobre gente, no concreto construído pela mão do homem. Paulo vive só, em companhia das andorinhas e das aranhas, e com o silêncio que, para os filhos da civilização tecnológica, chega a ser angustiante. Nada pode ser feito por ele. Acredite: Paulo vive bem lá, no alto da cachoeira, tendo uma paisagem sem fim pela frente.

Texto de José Carlos Silvares e de Lane Valiengo
Fotos de Carlos Marques

Ninguém sabe como tudo começou, nem por que ele foi parar ali, em local tão insólito. Só se sabe que Paulo trocou tudo pela paz. E tem hoje, como companheiros de solidão, as aranhas, o intenso barulho da água batendo nas pedras da cachoeira, a imensidão do verde, milhares de andorinhas e uma visão de sonho, que não se pode alcançar.

Ele não usa barbas brancas, nem suas unhas são compridas. Moreno, forte, olhos de gato, Paulo se veste com bermudas e chinelos e passaria despercebido em qualquer lugar, como um homem comum. ALimenta-se de restos de feira, de folhas estranhas, de sanduíches de pão com pimentas vermelhas. Dizem até que ele aproveita os frangos e as comidas deixadas nas pedras como oferenda a Xangô. Tudo isso é regado com uma mistura de pinga e água, temperada por um galhinho de louro. Essa mistura ele oferece aos intrusos que raramente o visitam no retiro. Uma mistura difícil de engolir.

Paulo foi descoberto após uma escalada de 50 metros, cachoeira acima, depois de se cruzar todo o terreno de um ferro-velho, na Caneleira, e um vasto bananal. Lá estava ele, de cócoras, numa toca moldada em pedras pela natureza, mastigando o nauseante sanduíche de pão com pimentas vermelhas.

"Olá!" - dizem os intrusos.

Paulo larga o sanduíche e fixa os olhos nos intrusos, levantando a mão com um aceno.

"Você vive só por aqui?" - indagam.

"Sim senhor..." - responde humildemente o ermitão, agachando-se em direção à saída da toca.

Depois, como se ele é quem estivesse atrapalhando a presença dos intrusos, rasteja pelas pedras, por entre as árvores, e desaparece pelo mato adentro, ágil como um coelho assustado. E deixa para trás o sanduíche, abandona peças de roupa, um cobertor, várias latas, um copo, uma colher e dois sacos - com pães, pimentas e limões -, que estavam ajeitados sobre uma pedra, como se estivessem numa despensa.

Durante alguns dias, Paulo percorre o caminho pelo mato e se esquiva pelas pedras, ressabiado, como contam antigos moradores do Morro de Nova Cintra.


Paulo, um homem comum que vive como quer

Passada uma semana, num segundo contato, Paulo está mais sorridente. E oferece aos intrusos a mistura de pinga e água temperada com louro, intragável. Mas é assim que se faz o novo contato. E ele fala aos goles, baixinho, atrapalhado, enfatizando que está trabalhando numa pedreira da região, como britador.

"Olá, Paulo" - dizem os intrusos.

Com o mesmo gesto e segurando a garrafa de pinga, Paulo faz um breve cumprimento, erguendo o copo na direção dos seus semelhantes.

"Vai um gole aí?" - diz.

(Um gole difícil de engolir)

"Você mora aqui há muito tempo?"

"Não... só uns dias".

"E o que você faz para se sustentar aqui?"

"Eu trabalho na pedreira. Britador..."

Paulo ameaça ir embora e, como pretexto para ir até a saída da toca, faz rodeios e oferece novo gole da intragável mistura, que ninguém aceita.

"Você dorme aqui?"

"É sim senhor... trabalho na pedreira... britador..."

"E faz tempo que mora aqui?"

"Eu sou de 30. Trabalho na pedreira. É, sim senhor..."

Depois de revelar a idade (50 anos) e insistir que trabalha como britador (embora não trabalhe), Paulo consegue transmitir, com gestos e um leve tremor das mãos, a firme sensação de que teve o lar invadido, a solidão violada. Foi exatamente o que aconteceu. Paulo, então, deixa a garrafa e o copo numa pedra, pede a todos que fiquem à vontade ali, e foge rapidamente pelo caminho do mato.

E novamente abandona tudo para trás: uma espécie de sopa de legumes e verduras sujas, que bóiam em água rala dentro de uma caneca amassada; um fogo de lenha, que solta fumaça por entre as copas das árvores - único sinal de que há gente ali nas escarpas da cachoeira; e um pedaço de isopor, onde passa seus momentos sentado. Numa outra pedra, onde aparentemente dorme, deixa uma tábua, o cobertor e um plástico branco.

O caminho do mato por onde Paulo sempre foge dá na Estrada Nova Cintra, que liga o morro à Caneleira. E ele fica pelos arredores, espreitando os intrusos de longe, de mais perto, de longe novamente... Até que se sinta seguro para voltar.

Talvez seja esta a primeira vez, em mais de 20 anos, que Paulo tem a sensação de estar sendo vigiado. Alguns moleques, que têm medo do ermitão, e até mesmo o dono do ferro-velho da Caneleira, dizem que policiais sobem até a toca, com freqüência. Provavelmente seja esta a razão de Paulo dizer com insistência que trabalha como britador na pedreira. Os moradores do morro, como dona Ana - que mora ali há 30 anos e que conhece o ermitão há pelo menos duas décadas - dizem que Paulo já é conhecido da polícia e que é um homem pacífico. O mesmo diz dona Dalva Aparecida, que o conhece desde que se casou e mudou para o morro, também há 20 anos.

Mas o tempo certo que ele vive como ermitão e as razões que o levaram a essa opção de vida não são conhecidos nem pelo sobrinho mais velho, Zezinho, filho de uma irmã de Paulo. O rapaz, de 19 anos, sabe que o tio vive na cachoeira desde que se conhece por gente. Sabe também que Paulo separou-se da mulher e que tem dois filhos - um deles criado pela irmã - e que há muito tempo não há um relacionamento mais estreito entre ele e seus irmãos. Todos já quiseram ajeitar sua vida, mas as tentativas foram rejeitadas. Nem documentos ele quis. Zezinho diz que o tio só não recusa dinheiro, e não relaciona o fato de ter se separado da mulher com o modo de vida escolhido pelo tio: "Só acho que se ele quer essa vida, a gente deve deixar ele assim. Se tá bom pra ele, então deixa..."

Ninguém sabe o que poderá acontecer num terceiro contato com Paulo, na toca da cachoeira. Não se pode prever se ele receberá os intrusos com a intragável mistura de pinga e água, ou se ele reagirá. Afinal, Paulo vive ali há mais de 20 anos, e tem o direito de continuar buscando a paz junto às aranhas, às andorinhas, ao barulho da cachoeira e à imensidão do verde, numa visão de sonho que, ele sim, pode alcançar.


Da pedra onde passa seus momentos, ele vê o mundo que rejeitou

A solidão é igual para todas as pessoas, só muda de endereço. Tanto faz que seja em um porão da General Câmara, numa mansão na Ponta da Praia, num apartamento no Gonzaga ou em um buraco de pedras no meio de uma cachoeira. Só que neste último caso a solidão não é obra do destino ou da era tecnológica, mas sim uma escolha, a escolha de Paulo.

Há tão poucas coisas que podemos escolher livremente hoje em dia que chega a ser assustadora, incrível e perturbadora, a maneira que Paulo escolheu para viver, ao mesmo tempo tão longe e tão perto da civilização, escondido entre as rochas da cachoeira da Nova Cintra. É como um jogo de sombras, o claro e o escuro: de lá, ele assiste a tudo, à vida da Cidade, ao mar, as pessoas correndo e trabalhando. Mas ninguém pode vê-lo.

"Pode ficar à vontade", disse ele naquele seu jeito ao mesmo tempo simpático e misterioso, como se estivesse em uma mansão com lareira ou em uma casa de campo. Só que estava no alto de uma cachoeira, cercada de pedras por todos os lados. Ele passou pelos visitantes - ou melhor, intrusos - como se andasse com o vento -, de tão rápido, mas ainda teve tempo para sorrir, mostrando os dentes pequenos e cariados, enquanto respondia ao cumprimento com um "como vai?", acompanhado de ligeiros e amistosos tapinhas nas costas. E desapareceu no meio do mato parecendo fazer parte daquele verde todo, andando rápido, encurvado, com a agilidade de quem conhece cada segredo do lugar onde vive há 20 anos.

Fica difícil aceitar a idéia de que alguém viva ali, escondido de tudo e de todos, o barulho da água caindo entre as pedras e a Cidade lá embaixo, depois dos bananais. Dali, Paulo enxerga o mundo e mais um pouco, além de Cubatão, e escuta todos os sons do silêncio.

Viver com o silêncio, apesar de tudo, é algo quase impossível para nós, os filhos da civilização tecnológica, que habitamos as cidades de concreto construídas pelo homem. O silêncio, para quem convive diariamente com o ruído, o barulho, acaba gerando a angústia, a tristeza, o desespero, até chegar ao fantasma da solidão. E já somos solitários o bastante, por natureza, para agüentar essa dose extra.

Já o ermitão da cachoeira escolheu outro caminho, saltou do bonde andando e foi se esconder no meio das pedras, das rochas, das andorinhas. Há alguns anos, muitas pessoas pensaram em pular fora, criar meios de vida paralelos, uma alternativa, um sistema menor dentro do nosso próprio sistema, fundando comunidade e coisas deste tipo. Até que chegou alguém e disse que o sonho havia acabado, e todos voltaram, as cabeças baixas, fazendo as mesmas coisas de sempre.

Ele, o ermitão, não. Ele continua lá, fiel à sua proposta de isolamento, no meio da cachoeira, dentro de seu sistema individual, sem maiores preocupações. Vivendo a vida, simplesmente, como pregavam os milenares sábios orientais.

Paulo não é nenhum profeta, não é uma figura que impressione. Não há carisma algum, nenhuma clarividência ou lampejo místico. Trata-se apenas de um homem que fez uma opção, e foi morar no meio das pedras, para espanto dos que vivem nas cidades.

E então, surgem as dúvidas: será que é correto mostrar quem ele é e, principalmente, como vive? Perderá ele definitivamente a tranqüilidade, com as pessoas tentando descobrir de qualquer maneira quem é o ermitão da cachoeira, fazendo peregrinações até o morro, como quem quer conhecer algum animal raro ou uma inusitada atração turística? Será que as luzes faiscantes das câmaras da televisão irão cegar seus olhos pequenos em algum fantástico da vida, e mostrá-lo ao mundo como quem apresenta um autêntico exemplo de mundo cão?

Será que ele vai acabar sendo obrigado a fugir de sua toca e procurar outro lugar onde a sua solidão seja só sua, maldizendo o momento em que respondeu ao cumprimento com tapinhas nas costas dos intrusos? Ou será que vão deixá-lo em paz, respeitando e aceitando a escolha feita há 20 anos?


Os poucos utensílios, arrumados como em uma despensa

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