O ermitão em fuga pelos recantos da cachoeira, integrado à paisagem
O ermitão da Caneleira
Ele vive nas pedras da cachoeira. Há 20 anos
Paulo é um homem simpático e foge quando está diante de seus semelhantes. Nada
pode ser feito por ele. Esta é exatamente a vida que ele quer e que escolheu por opção, segundo os parentes. Isso acontece numa cidade de 400
mil habitantes, com gente morando sobre gente, no concreto construído pela mão do homem. Paulo vive só, em companhia das andorinhas e das
aranhas, e com o silêncio que, para os filhos da civilização tecnológica, chega a ser angustiante. Nada pode ser feito por ele. Acredite:
Paulo vive bem lá, no alto da cachoeira, tendo uma paisagem sem fim pela frente. |
Texto de José Carlos Silvares e de Lane Valiengo
Fotos de Carlos Marques
Ninguém sabe como tudo começou, nem por que ele foi
parar ali, em local tão insólito. Só se sabe que Paulo trocou tudo pela paz. E tem hoje, como companheiros de solidão, as aranhas, o intenso barulho
da água batendo nas pedras da cachoeira, a imensidão do verde, milhares de andorinhas e uma visão de sonho, que não se pode alcançar.
Ele não usa barbas brancas, nem suas unhas são compridas. Moreno, forte, olhos de
gato, Paulo se veste com bermudas e chinelos e passaria despercebido em qualquer lugar, como um homem comum. ALimenta-se de restos de feira, de
folhas estranhas, de sanduíches de pão com pimentas vermelhas. Dizem até que ele aproveita os frangos e as comidas deixadas nas pedras como oferenda
a Xangô. Tudo isso é regado com uma mistura de pinga e água, temperada por um galhinho de louro. Essa mistura ele oferece aos intrusos que raramente
o visitam no retiro. Uma mistura difícil de engolir.
Paulo foi descoberto após uma escalada de 50 metros, cachoeira acima, depois de se
cruzar todo o terreno de um ferro-velho, na Caneleira, e um vasto bananal. Lá estava ele, de cócoras, numa toca moldada
em pedras pela natureza, mastigando o nauseante sanduíche de pão com pimentas vermelhas.
"Olá!" - dizem os intrusos.
Paulo larga o sanduíche e fixa os olhos nos intrusos, levantando a mão com um aceno.
"Você vive só por aqui?" - indagam.
"Sim senhor..." - responde humildemente o ermitão, agachando-se em direção à saída da
toca.
Depois, como se ele é quem estivesse atrapalhando a presença dos intrusos, rasteja
pelas pedras, por entre as árvores, e desaparece pelo mato adentro, ágil como um coelho assustado. E deixa para trás o sanduíche, abandona peças de
roupa, um cobertor, várias latas, um copo, uma colher e dois sacos - com pães, pimentas e limões -, que estavam ajeitados sobre uma pedra, como se
estivessem numa despensa.
Durante alguns dias, Paulo percorre o caminho pelo mato e se esquiva pelas pedras,
ressabiado, como contam antigos moradores do Morro de Nova Cintra.
Paulo, um homem comum que vive como quer
Passada uma semana, num segundo contato, Paulo está mais sorridente. E oferece aos
intrusos a mistura de pinga e água temperada com louro, intragável. Mas é assim que se faz o novo contato. E ele fala aos goles, baixinho,
atrapalhado, enfatizando que está trabalhando numa pedreira da região, como britador.
"Olá, Paulo" - dizem os intrusos.
Com o mesmo gesto e segurando a garrafa de pinga, Paulo faz um breve cumprimento,
erguendo o copo na direção dos seus semelhantes.
"Vai um gole aí?" - diz.
(Um gole difícil de engolir)
"Você mora aqui há muito tempo?"
"Não... só uns dias".
"E o que você faz para se sustentar aqui?"
"Eu trabalho na pedreira. Britador..."
Paulo ameaça ir embora e, como pretexto para ir até a saída da toca, faz rodeios e
oferece novo gole da intragável mistura, que ninguém aceita.
"Você dorme aqui?"
"É sim senhor... trabalho na pedreira... britador..."
"E faz tempo que mora aqui?"
"Eu sou de 30. Trabalho na pedreira. É, sim senhor..."
Depois de revelar a idade (50 anos) e insistir que trabalha como britador (embora não
trabalhe), Paulo consegue transmitir, com gestos e um leve tremor das mãos, a firme sensação de que teve o lar invadido, a solidão violada. Foi
exatamente o que aconteceu. Paulo, então, deixa a garrafa e o copo numa pedra, pede a todos que fiquem à vontade ali, e foge rapidamente pelo
caminho do mato.
E novamente abandona tudo para trás: uma espécie de sopa de legumes e verduras sujas,
que bóiam em água rala dentro de uma caneca amassada; um fogo de lenha, que solta fumaça por entre as copas das árvores - único sinal de que há
gente ali nas escarpas da cachoeira; e um pedaço de isopor, onde passa seus momentos sentado. Numa outra pedra, onde aparentemente dorme, deixa uma
tábua, o cobertor e um plástico branco.
O caminho do mato por onde Paulo sempre foge dá na Estrada Nova Cintra, que liga o
morro à Caneleira. E ele fica pelos arredores, espreitando os intrusos de longe, de mais perto, de longe novamente... Até que se sinta seguro para
voltar.
Talvez seja esta a primeira vez, em mais de 20 anos, que Paulo tem a sensação de estar
sendo vigiado. Alguns moleques, que têm medo do ermitão, e até mesmo o dono do ferro-velho da Caneleira, dizem que policiais sobem até a toca, com
freqüência. Provavelmente seja esta a razão de Paulo dizer com insistência que trabalha como britador na pedreira. Os moradores do morro, como dona
Ana - que mora ali há 30 anos e que conhece o ermitão há pelo menos duas décadas - dizem que Paulo já é conhecido da polícia e que é um homem
pacífico. O mesmo diz dona Dalva Aparecida, que o conhece desde que se casou e mudou para o morro, também há 20 anos.
Mas o tempo certo que ele vive como ermitão e as razões que o levaram a essa opção de
vida não são conhecidos nem pelo sobrinho mais velho, Zezinho, filho de uma irmã de Paulo. O rapaz, de 19 anos, sabe que o tio vive na cachoeira
desde que se conhece por gente. Sabe também que Paulo separou-se da mulher e que tem dois filhos - um deles criado pela irmã - e que há muito tempo
não há um relacionamento mais estreito entre ele e seus irmãos. Todos já quiseram ajeitar sua vida, mas as tentativas foram rejeitadas. Nem
documentos ele quis. Zezinho diz que o tio só não recusa dinheiro, e não relaciona o fato de ter se separado da mulher com o modo de vida escolhido
pelo tio: "Só acho que se ele quer essa vida, a gente deve deixar ele assim. Se tá bom pra ele, então deixa..."
Ninguém sabe o que poderá acontecer num terceiro contato com Paulo, na toca da
cachoeira. Não se pode prever se ele receberá os intrusos com a intragável mistura de pinga e água, ou se ele reagirá. Afinal, Paulo vive ali há
mais de 20 anos, e tem o direito de continuar buscando a paz junto às aranhas, às andorinhas, ao barulho da cachoeira e à imensidão do verde, numa
visão de sonho que, ele sim, pode alcançar.
Da pedra onde passa seus momentos, ele vê o mundo que rejeitou
A solidão é igual para todas as pessoas, só muda de
endereço. Tanto faz que seja em um porão da General Câmara, numa mansão na Ponta da Praia, num
apartamento no Gonzaga ou em um buraco de pedras no meio de uma cachoeira. Só que neste último caso a solidão não é obra
do destino ou da era tecnológica, mas sim uma escolha, a escolha de Paulo.
Há tão poucas coisas que podemos escolher livremente hoje em dia que chega a ser
assustadora, incrível e perturbadora, a maneira que Paulo escolheu para viver, ao mesmo tempo tão longe e tão perto da civilização, escondido entre
as rochas da cachoeira da Nova Cintra. É como um jogo de sombras, o claro e o escuro: de lá, ele assiste a tudo, à vida
da Cidade, ao mar, as pessoas correndo e trabalhando. Mas ninguém pode vê-lo.
"Pode ficar à vontade", disse ele naquele seu jeito ao mesmo tempo simpático e
misterioso, como se estivesse em uma mansão com lareira ou em uma casa de campo. Só que estava no alto de uma cachoeira, cercada de pedras por todos
os lados. Ele passou pelos visitantes - ou melhor, intrusos - como se andasse com o vento -, de tão rápido, mas ainda teve tempo para sorrir,
mostrando os dentes pequenos e cariados, enquanto respondia ao cumprimento com um "como vai?", acompanhado de ligeiros e amistosos tapinhas nas
costas. E desapareceu no meio do mato parecendo fazer parte daquele verde todo, andando rápido, encurvado, com a agilidade de quem conhece cada
segredo do lugar onde vive há 20 anos.
Fica difícil aceitar a idéia de que alguém viva ali, escondido de tudo e de todos, o
barulho da água caindo entre as pedras e a Cidade lá embaixo, depois dos bananais. Dali, Paulo enxerga o mundo e mais um pouco, além de Cubatão, e
escuta todos os sons do silêncio.
Viver com o silêncio, apesar de tudo, é algo quase impossível para nós, os filhos da
civilização tecnológica, que habitamos as cidades de concreto construídas pelo homem. O silêncio, para quem convive diariamente com o ruído, o
barulho, acaba gerando a angústia, a tristeza, o desespero, até chegar ao fantasma da solidão. E já somos solitários o bastante, por natureza, para
agüentar essa dose extra.
Já o ermitão da cachoeira escolheu outro caminho, saltou do bonde andando e foi
se esconder no meio das pedras, das rochas, das andorinhas. Há alguns anos, muitas pessoas pensaram em pular fora, criar meios de vida paralelos,
uma alternativa, um sistema menor dentro do nosso próprio sistema, fundando comunidade e coisas deste tipo. Até que chegou alguém e disse que o
sonho havia acabado, e todos voltaram, as cabeças baixas, fazendo as mesmas coisas de sempre.
Ele, o ermitão, não. Ele continua lá, fiel à sua proposta de isolamento, no meio da
cachoeira, dentro de seu sistema individual, sem maiores preocupações. Vivendo a vida, simplesmente, como pregavam os milenares sábios orientais.
Paulo não é nenhum profeta, não é uma figura que impressione. Não há carisma algum,
nenhuma clarividência ou lampejo místico. Trata-se apenas de um homem que fez uma opção, e foi morar no meio das pedras, para espanto dos que vivem
nas cidades.
E então, surgem as dúvidas: será que é correto mostrar quem ele é e, principalmente,
como vive? Perderá ele definitivamente a tranqüilidade, com as pessoas tentando descobrir de qualquer maneira quem é o ermitão da cachoeira, fazendo
peregrinações até o morro, como quem quer conhecer algum animal raro ou uma inusitada atração turística? Será que as luzes faiscantes das câmaras da
televisão irão cegar seus olhos pequenos em algum fantástico da vida, e mostrá-lo ao mundo como quem apresenta um autêntico exemplo de mundo cão?
Será que ele vai acabar sendo obrigado a fugir de sua toca e procurar outro lugar onde
a sua solidão seja só sua, maldizendo o momento em que respondeu ao cumprimento com tapinhas nas costas dos intrusos? Ou será que vão deixá-lo em
paz, respeitando e aceitando a escolha feita há 20 anos?
Os poucos utensílios, arrumados como em uma despensa
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