...de todos os lados, de todas as tocas, de todas as calhas, surgiam dezenas, centenas
de ratos, de todos os tamanhos, rodeando o velho, trepando-lhe pelas pernas...
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Quem era o velho Munguata, o maior protetor de animais que Santos teve
Revivendo, na crônica da cidade, a existência do excêntrico amigo de bichos e
bicharocos
Quem não conhecia, na Santos de 1880, seo Maneco
Munguata? Era um homem predestinado, todos o conheciam e estimavam, apesar das suas extravagâncias, homem de uma bondade que tocava o absurdo,
figura humanizada da caridade.
Não contente em dividir quanto tinha e não tinha entre os que precisavam, levava os
extremos do seu carinho a todos os animais, até mesmo os imundos. Contam que já naquela época fora cogitação da Câmara instituir a "Carrocinha dos
cachorros", para aliviar a cidade das maltas de cães errantes que infestavam as ruas, mas o protesto do seo Munguata, aos jornais, ao
presidente da Câmara e aos políticos conservadores, impedira a consumação daquele "crime".
Quando ele morreu, um cão de estimação que possuía, apaixonado com o desaparecimento
do amigo e dono, não quis mais viver também, e, deitando-se sobre a sua campa, no Paquetá, deixou-se morrer à fome,
obstinadamente, embora tentassem impedi-lo disso muitas vezes.
Gatos estropiados, cães cegos e paralíticos, aves doentes e lepradas, animais de toda
a casta, quem os tivesse velhos, doentes, imprestáveis, mandava-os diretamente à casa de seo Munguata, ou mandava soltá-los junto à sua
porta, uns por pena, muitos por pilhéria, e o bom velho santista recolhia-os todos, como num seio de Abraão, para a cura ou para a morte descansada
e suave.
Foi assim, nessa caridade amplísima, que ele se tornou a figura mais
curiosa de Santos, na época, tornando-se o pai dos ratos, os imundíssimos e detestáveis bicharocos, que assombravam a cidade, a cada passo, com o
fantasma da bubônica [1].
Quem passasse pela escuridão da antiga Rua dos Quartéis, a
atual Xavier da Silveira, naquele tempo em que não havia cais, e as águas vinham marulhar nos lodos da velha rua, junto
às raras casas daquele ponto, veria todas as noites, pelas oito horas, um quadro estranho e verdadeiramente dantesco.
Dois negros chegavam, tirando aos ombros um varal de onde pendia uma grande vasilha de
comida e restos de cozinha, depositavam no lajedo velho da calçada a carga trazida, e o seo Munguata, que os seguia pouco atrás,
aproximava-se, chafurdava as mãos na lavagem sórdida, pronunciando com sua voz cava e soturna, alguns nomes, aparentemente cabalísticos:
- Timóteo! Catarina! Sizenando! Lofredo! Tó... tó... tó...
Seguia-se um segundo de impressionante silêncio e, subitamente, um pouco ao longe, um
guincho longo e fino, soava na treva, por detrás dos muros, como um toque de corneta liliputiana.
Era a trombeta dos murideos [2]...
o toque de reunir dos ratos santistas.
Um primeiro ratão surgia, indeciso, e de repente, de todos
os lados, de todas as tocas, de todas as calhas, de todas as raízes, e de todos os muros, surgiam dezenas, centenas, talvez milhares de ratos, de
todos os tamanhos, rodeando o velho, trepando-lhe pelas pernas acima, escalando a vasilha, cuinhando [3],
lastrando [4], ondeando o passeio largo, saltarelhando em disputa aos melhores
lugares.
- Seu maganão! Você ontem não veio! E você, Catarina! E você, seo Timóteo!...
Ah... seus malandros!
Aquela vara imensa era uma família para ele, e seo Munguata afagava os
pequeninos amigos, paternalmente, com pena de que o mundo não os compreendesse assim... como ele compreendia.
Quando julgava terminado o festim de todas as noites, seo Munguata batia as
palmas, era o "até amanhã"... e a rataria, em massas, cuinhando, desaparecia como por encanto.
Isso durou anos. Depois, a cidade expandiu-se, veio o cais, veio a Saúde Pública, e o
velho Munguata desapareceu com a cidade velha, levando com ele um uso em que não teve sucessor. Os homens da sua Santos o esqueceram. O velho
Munguata ficou apenas na tradição, que é o baú velho do progresso. Teriam-no esquecido seus protegidos, os ratos? |