Em 1964, militares tinham como prioridade controlar o Porto de Santos, na época marcado por
frequentes greves de trabalhadores
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Em 64, o plano secreto dos EUA para Santos
Há 48 anos, nos primeiros dias do golpe militar, o governo dos Estados Unidos decidiu enviar
navios de guerra para o Porto de Santos
Samuel Rodrigues
Enviado ao Rio
O
golpe militar que mudou a história do Brasil é um desses períodos envoltos em uma névoa difícil de
dissipar. Mas de tempos em tempos, com a segurança que somente a distância dos anos é capaz de proporcionar, novos capítulos são revelados e lançam
luz sobre esse período obscuro. É o caso da operação empreendida pelo governo dos Estados Unidos (EUA)
para o envio de uma esquadra de guerra para Santos, em 1964, confirmada por documentos tornados públicos e que podem ser consultados no site do
Departamento de Estado norte-americano.
Centenas de telegramas e transcrições de ligações telefônicas e chamadas de teleconferência antes
mantidas em sigilo relatam os diálogos entre membros do governo estadunidense e seu embaixador no Brasil no período que antecedeu o golpe militar de
31 de março de 1964. Desclassificados da condição de "confidenciais", 40 anos depois de serem redigidos, eles deixam claro o apoio do país aos
conspiradores que se sublevaram contra o então presidente João Goulart. E, o que é mais intrigante, revelam que
Santos receberia uma esquadra norte-americana, incluindo um porta-aviões, para apoiar o movimento revolucionário.
Com base nesse material, A Tribuna conta como a Cidade esteve nos planos de uma conspiração
de Washington em apoio à tomada do poder pelos militares exatos 48 anos atrás.
Partiu do embaixador dos Estados Unidos no Brasil à época, Lincoln Gordon, o pedido para envio de
navios petroleiros e armamentos com o objetivo de apoiar as forças militares que planejavam tomar o poder havia meses. De sua embaixada, no Rio de
Janeiro, ele relatava a Washington o que lia nos jornais e, principalmente, informações recebidas de fontes
graúdas.
Gordon tinha acesso ao alto escalão das Forças Armadas e entendia que o Brasil vivia uma situação
perigosa para as pretensões norte-americanas perante o mundo, imerso na Guerra Fria. O receio era que o imenso país de 75 milhões de habitantes
(menos da metade da população atual) se aliasse à União Soviética.
O diplomata recomendou em 28 de março de 64, conforme o telegrama 187 do governo norte-americano, o
início da "preparação para entrega de armas clandestinas de origem não-estadunidense para que estejam disponíveis aos homens de
Castello (sic) Branco" tão logo fosse possível. Segundo o relato, as armas
poderiam ser entregues em "submarino não identificado, com desembarque à noite em um ponto isolado da costa do Estado de São Paulo, ao Sul de
Santos, provavelmente próximo a Iguape ou Gananeia (SIC)".
Gordon ainda traçou, antes mesmo do golpe, uma estratégia para o que chamou de "segundo estágio",
que seria iniciado após a declaração da tomada de poder ao mundo. Tratava-se de uma medida "contra a possibilidade de uma ação soviética, para dar
suporte ao lado com tendência comunista" no Brasil. E explicou que "para minimizar possibilidades de uma prolongada guerra civil e assegurar a
adesão" dos brasileiros ao novo governo, "pode ser crucial nossa habilidade para demonstrar comprometimento e força com grande velocidade".
O momento no Brasil era conturbado. Os Estados Unidos mantinham muitas empresas no País, dada a
relação comercial desenvolvida antes mesmo da assunção dos militares.
Ação soviética – Foi com o argumento da tal "ação soviética" que Gordon pediu, no mesmo
documento, o "despacho de uma força-tarefa naval para manobras no Atlântico Sul, deixando-os (navios) a alguns dias de navegação de Santos". E
acrescentou, logo abaixo: "Um porta-aviões pode ser o (navio) mais importante pelo efeito psicológico".
O Brasil era governado por João Goulart, alçado à Presidência porque
Jânio Quadros, eleito pelo povo, renunciara e resolvera deixar o País em 1961, via Porto de Santos. Jango
era o vice-presidente de Jânio e, portanto, tinha o dever constitucional de governar o País. O fato de o Brasil ter um presidente empossado
democraticamente gerou, no Departamento de Estado dos EUA, resistência quanto à ideia de apoiar as forças "revolucionárias", como pedia Lincoln
Gordon.
Isto está expresso em um memorando de conversação datado de 28 de março de 1964, no qual um grupo
de generais norte-americanos discutiu particularmente a situação do Brasil e, em especial, o pedido de Gordon para envio de uma força naval ao País.
Segundo o documento, o então assistente especial da presidência dos EUA para Relações de Segurança Nacional, McGeorge Bundy, declarou que "a punição
não é compatível com o crime". A expressão deixou claro que o envio de uma esquadra era demais, em sua opinião, para uma nação até então com modesta
participação no jogo político mundial.
Na mesma reunião, o general Andrew Goodpaster, assistente do chefe do Estado Maior dos EUA, afirmou
"não entender claramente como este movimento pontual (envio da esquadra) poderia ajudar as forças anti-Goulart" naquele momento.
Bundy redigiu uma série de recomendações a Gordon e a enviou para aprovação do presidente dos
Estados Unidos à época, Lyndon Johnson. Uma delas era "informar Gordon que nem a atracação de submarino, nem força-tarefa naval, soam corretos para
nós e pedir maior precisão do que ele está pensando". Johnson era o presidente norte-americano havia quatro meses. Assumiu em 23 de novembro de
1963, no lugar de John Kennedy, assassinado no dia anterior.
Operação Brother Sam |
"Os jornais falavam a respeito. E até por isso descemos a Serra em direção a Santos,
quando assumi a Capitania, correndo para chegar antes dos americanos" |
Almirante de esquadra Julio de Sá Bierrenbach,
ex-capitão dos Portos de São Paulo, nomeado em 31 de
março de 1964 |
Almirante Julio de Sá Bierrenbach
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Argumentação – Frente a esta dificuldade para ter sua preocupação reconhecida, Gordon não
hesitou em usar um argumento infalível para o contexto da época. Em novo telegrama, enviado no dia seguinte, 29 de março, ao Departamento de Defesa,
afirmou: "Nós precisamos também considerar seriamente a alternativa possível, que eu não estou prognosticando, mas posso considerar um perigo real,
de derrota da resistência democrática e comunicação do Brasil". Gordon tratava como "democrático" o movimento que depôs o presidente da República e
instalou por mais de 20 anos uma ditadura no Brasil.
A esta declaração, seguiu-se uma conversa telefônica entre Johnson e seu secretário de Estado, Dean
Rusk, em 30 de março de 1964. Os trechos atribuídos ao presidente não foram revelados. Rusk avisou Johnson acertadamente que "a crise virá à tona em
um ou dois dias, talvez durante a noite". Relatou que a sublevação tinha apoio de mineiros e paulistas e que, se houvesse união deles com as forças
armadas brasileiras, "penso que é algo que teremos que acompanhar e estar em contato".
Rusk falou ao presidente sobre a preocupação demonstrada por Lincoln Gordon a respeito dos
soviéticos e que aquela era "uma oportunidade que não se repetirá e que, se não for pega agora, dará a Goulart uma chance para minar sua oposição e
colocar o Brasil no caminho para uma ditadura comunista".
Apesar de as falas do presidente Johnson não terem sido desclassificadas do status de
"confidencial", uma declaração atribuída a ele veio à tona por meio de Desmond Fitzgerald, diretor da agência de inteligência e espionagem dos
Estados Unidos, a CIA, e deixa claro a ordem dada naquela ligação. Segundo Fitzgerald, Dean Rusk lhe disse que "o presidente o instruiu a, sob
nenhuma circunstância, permitir que o Brasil se torne comunista".
Dúvida |
Segundo documentos do Governo dos Estados Unidos divulgados na última década, inicialmente
a Casa Branca tinha dúvidas quanto à decisão de enviar navios militares ao Brasil. Somente após a argumentação do então embaixador
norte-americano no País, Lincoln Gordon, de que o Brasil podia se tornar uma nação comunista, caso o presidente João Goulart conseguisse ficar
no poder, as embarcações receberam ordens de seguir para Santos. |
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A ordem é dada – A determinação de Johnson foi transmitida exatamente em 31 de março de 1964
pelo Departamento de Estado dos EUA, no telegrama 198, enviado à Embaixada norte-americana no Rio de Janeiro: "Despachar imediatamente força-tarefa
naval para exercícios públicos na costa do Brasil. Força consistirá em porta-aviões e dois destróieres equipados com mísseis teleguiados (chegada na
área estimada em 10 de abril), mais quatro destróieres e tanques força-tarefa (todos com chegada estimada quatro dias depois)".
A mensagem, assinada por Rusk, disfarçava o nome da Operação Brother Sam (Irmão Sam, em inglês) com
o termo "task force" – força-tarefa, na tradução livre. O codinome famoso nunca foi mencionado em documentos oficiais, mas tornou-se público
por meio de pessoas que dela participaram e por outros documentos secretos, revelados há mais tempo pelo Congresso dos EUA. É citada com riqueza de
detalhes no livro João Goulart: Uma Biografia, escrito por Jorge Ferreira e publicado no ano passado.
Em 1º de abril, o secretário de Defesa dos EUA, Robert McNamara, reportou ao presidente e colegas
do Departamento de Estado o status da força-tarefa. "Ela (esquadra) navegou esta manhã e poderá estar na vizinhança de Santos em 11 de
abril", declarou.
A frota chegou até Antigua, segundo os telegramas. Sua
movimentação era de conhecimento apenas dos oficiais mais graduados das Forças Armadas do Brasil.
Questionado sobre a intervenção norte-americana no golpe de 64, o almirante de esquadra Julio de Sá Bierrenbach, ex-presidente do Superior Tribunal
Militar (STM) e capitão dos Portos de São Paulo nomeado em 31 de março de 1964, pelo então governador Adhemar de Barros, disse desconhecer a
operação no meio militar.
"Os jornais falavam a respeito. E até por isso descemos a Serra em direção a Santos, quando assumi
a Capitania, correndo para chegar antes dos americanos", afirmou.
Tal declaração demonstra que a operação, tornada pública pelo próprio governo dos EUA, não era de
conhecimento de oficiais que não ocupassem o alto escalão. Em tempo: em nenhum documento estadunidense é mencionado o nome de oficiais ou políticos
que soubessem da operação naval.
Como a história contou, João Goulart não quis resistir ao golpe. Preferiu deixar o País, rumo a
Montevidéu, no Uruguai, à medida que os militares ganhavam reforço de outras tropas militares para seu
movimento. Por conta disso, dois dias depois do golpe, McNamara e Rusk concordaram que era hora de "retornar com a força-tarefa". McNamara daria a
ordem após autorização do presidente Johnson. E os navios da Operação Brother Sam jamais chegariam a Santos.
Imagem: reprodução da página com a matéria
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