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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - HOSPITAIS - BIBLIOTECA
Hospital Anchieta (4-f25)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEste hospital santista foi o centro de um importante debate psiquiátrico, entre os que defendem a internação dos doentes mentais e os favoráveis à ressocialização dos mesmos, que travaram a chamada luta antimanicomial. Desse debate resultou uma intervenção pioneira no setor, acompanhada por especialistas de todo o mundo.

Um livro de 175 páginas contando essa história (com arte-final de Nicholas Vannuchi, e impresso na Cegraf Gráfica e Editora Ltda.-ME) foi lançado em 2004 pelo jornalista e historiador Paulo Matos, que em 13 de outubro de 2009 autorizou Novo Milênio a transcrevê-lo integralmente, a partir de seus originais digitados:

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Na Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros

ANCHIETA, 15 ANOS (1989-2004)

A quarta revolução mundial da Psiquiatria

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25

1989: A QUARTA REVOLUÇÃO MUNDIAL DA PSIQUIATRIA

 A HISTÓRIA DA INTERVENÇÃO NO ANCHIETA

 os 15 anos no dia-a-dia da imprensa

 

1989 : Hora da ação

 

Em março de 1989, existiam 543 pacientes em precárias condições de vida. Surras, suicídios, mortes – 50 em 3 anos. A lei federal exigia 6 pacientes por metro quadrado, só cabiam 219, mas lá subsistia mais do que o dobro. Sem terapias, andavam de um lado para um outro em áreas lotadas, Em que eles mesmos faziam a limpeza. Era essa a "terapia" aplicada, pelo que ganhavam coisas como maços de cigarros e afins e, através a qual, se economizavam funcionários...

 

Eram só 200 camas, o resto era o "leito chão", ironia para pacientes desprovidos de tudo e jogados no chão mesmo, colchonetes insuficientes. quadro de pessoal reduzido, quase nenhum com formação superior. Ao invés de 28 enfermeiras e 116 auxiliares, havia apenas uma e 3 auxiliares, uma assistente ao invés das 7 exigíveis, um psicólogo em meio-período, ao invés das 8 normatizadas.

 

O absurdo da inexistência de prontuários para a maioria, quando existiam eram incompletos e mal-elaborados, pessoas com baixo nível intelectual mas sem nenhum problema de transtorno mental. Pacientes nus, nenhum farmacêutico, nutricionista ou terapeuta ocupacional. Não havia sabonetes ou pastas dentais, o mau cheiro dominava, sarna e piolhos. Faltavam profissionais em todas as áreas.

 

Faltavam médicos, dentistas, faltavam camas, acomodações, comida, remédios – mas sobravam torturas e sofrimentos. E o dinheiro, claro, que vinha do SUS para os donos e determinava o apego à estas práticas. Com base neste relatório, a Prefeitura deu um ultimato para correção das irregularidades, sob pena de medidas imediatas, sendo atendida pela instituição com uma maquiagem, com reformas de fachada com cal e creolina, em que permaneceu o fétido ambiente em que viviam centenas de pessoas humanas entre lixo e fezes. A Secretaria de Saúde do Estado, a quem cabia a fiscalização, nunca havia se manifestado.

 

Mas no início de 1989, em março, chegou às mãos da prefeita - e de seu secretário de Saúde, David Capistrano Filho, um nome nacional em assunto de saúde pública -, um relatório do SUDS-52 que atestava a completa irregularidade no atendimento, uma barbárie em termos higiênicos. Tudo isto insuflava e até criava loucura e revolta, acirrando o clima de guerra interna que produzia vítimas, gerando loucura. O dentista só arrancava dentes, não os tratava, os tratamentos cruéis lembravam a Idade Média. Eletrochoques como punição, não - terapêuticos, fármacos poderosíssimos, o sossega-leão, que prostrava o paciente por dias -, toda a espécie de procedimentos ao revés dos direitos humanos eram praticados.

 

Edmundo Maia, do Anchieta e de Jânio

 

Não era mesmo diferente dos psiquiatras da tradição institucional Pinel e Rush o psiquiatra Edmundo Maia, um dos antigos donos do Anchieta e seu ideólogo, já falecido, defensor destes métodos autocráticos que, para Basaglia, eram a falência da psiquiatria. Basaglia quem ele, Maia, disse que "não entendia nada" da ciência. É significativa a presença deste que foi proprietário da "Clinica Maia" na capital, em Taboão da Serra. Até há pouco se aplicavam nessa clínica eletrochoques "terapêuticos".

 

Maia foi assessor de Saúde Mental do ex-presidente Jânio Quadros, assim como quando este era governador do Estado de São Paulo. Tanto era de confiança do ex-presidente renunciante que um dia sua filha Tutu foi internada à força na Clinica Maia, em face de discussões hereditárias, já que Maia era amigo de seu marido, Mastrubuono.

 

Aqui no Anchieta, em 40 anos de existência foram internados cerca de 80 mil pessoas com transtornos mentais. Quantos mais o seriam? Conceituado professor da Faculdade de Medicina de Santos e chefe do Departamento de Psiquiatria da Faculdade, ele representou no Conselho Regional de Medicina contra psiquiatras e psicólogos (Domingos Stamato e Catulo César Pestana Magalhães), que o denunciavam e ao Anchieta, isto já em 1978. Autor de um livro-base de seu pensamento psiquiátrico, os resultados da ciência de Maia estão expostos e relatados.

 

Contra o horror do manicômio, a estratégia  pragmática de Zanetta

 

O médico Sérgio Zanetta, sanitarista, ex-diretor do Guilherme Álvaro e assistente do então secretário de Saúde David Capistrano à época, teve uma postura estratégica na resposta que ofereceu ao ex-diretor do Anchieta Edmundo Maia, publicada no jornal A Tribuna em 1990.

 

O antigo dirigente sugeria reabrir o Anchieta e Zanetta, respondendo a um extenso artigo do médico psiquiatra em que este lembrava "a caminhada histórica da Saúde Mental" e os "serviços prestados" pelo Anchieta, em um "tratamento modelar", indicava que este deveria se preservar nos seus interesses, já que tinha uma clínica análoga na Capital, bem diferente da selvageria praticada aqui.

 

"Só que esta era uma clínica para ricos", explica Zanetta, "era humanizada, tinha terapias, tratamentos alternativos, até homeopatia. Fosse mantida a selvageria que havia no Anchieta seria prejudicial para sua imagem", explica.

 

Pragmaticamente, nos livrava dela. O texto, intitulado Clamor das Trevas, revela seu autor, Sérgio Zanetta, estarrecido com o longo artigo em que o ex-diretor discorre, como mestre que foi, sobre os doentes mentais em Santos, atacando a intervenção, citando o caos existente nos idos de 1947, quando ainda não existia o manicômio da Rua São Paulo.

 

O médico sanitarista contesta o psiquiatra com sua experiência de 1982, quando visitou o hospital e assistiu às barbaridades existentes. "Eu vi o tratamento que o Dr. Maia considera modelar e que era instituído aos pacientes. Eu e dezenas de pessoas vimos a face da violência, abuso e desumanidade, que segundo o Dr. Maia compõe ‘uma respeitável folha de serviços públicos’ da então Casa de Saúde Anchieta", escreve o ex-diretor da Casa dos Horrores.

 

"Ora, se o Dr. Maia considera castigos físicos, medicação indiscriminada e descontrolada, eletrochoques como instrumento de punição e subalimentação de pacientes como ‘relevantes serviços prestados à humanidade’, devo dizer-lhe que a sua humanidade não pode ser a minha". Zanetta lembra Maia da denominação dada pela consciência nacional de Casa dos Horrores, das celas-fortes ou chiqueirinhos, pacientes convivendo dias e dias com seus excrementos. E pergunta: "Isto é terapêutico?".

 

A pretexto do oponente "tentar esconder-se através do embate entre duas escolas da Psiquiatria", Zanetta o desmente: "A escola de Tykanori é a inspirada em Basaglia, sim, mas a de Maia é inspirada em quem? Mesmo a psiquiatria organicista e tradicional, argumenta, não aplica eletrochoques ao rés do chão por atendentes". Entrevistado, explica que mesmo os psiquiatras que aceitam o método criado para amansar porcos "para conter crises", como dizem, o aplicam com anestesia anterior, não como punição.

 

"Que psiquiatria é essa que apregoa?", pergunta Zanetta no texto, a que obriga os pacientes à sub-alimentação. "Só lamento que o Dr. Maia queira associar seu nome ao horror e desumanidade que era o atendimento na Casa de Saúde Anchieta", desabafa. "Dos parias trancafiados ontem, submetidos a atrocidades, hoje emergem cidadãos", escreve.

 

Segue o texto argumentando que "As afirmações do Dr. Maia em seu artigo, que procuram instalar o preconceito contra o ‘doente mental’ ao falar com intolerância sobre sua livre circulação na comunidade, são um verdadeiro ‘clamor das trevas’ que teima e insiste intentar contra a luz do dia. Não há como apagar o passado mesmo que reescrevendo a "história" em longos artigos. Tudo o que se passou e passa na casa de saúde Anchieta está registrado pela imprensa, em vídeos e depoimentos vários, o que dificulta o esquecimento e o retorno às trevas e me autoriza a pensar que a primavera iniciada no Anchieta é inexorável", conclui.

 

Quinze anos depois, a ex-funcionária D. Elza conta a a barbárie do Anchieta, 15 anos antes da intervenção. Cantar dava cela forte e eletrochoque

 

Dona Elza Maia já tem 69 anos e há 30 trabalhou no Anchieta, de 1974 a 1982. Vinda de Aracajú, Sergipe, chegou aqui em 29 de janeiro de 1955. Em 1º de novembro nasceria sua filha, relaciona as datas e assim lembra com precisão, embora queira esquecer daqueles dias.  Por seu trabalho na instituição, teve depressões e até hoje não se livra delas.

 

"Bastava o paciente ser pego cantando e era trancado no ‘quartinho’ (a cela forte) e depois levado para o eletrochoque. Eu tinha que ajudar a pegar eles, amarrá-los. Tomávamos chutes, eles se debatiam, apavorados. Era 4 ou 5 todos os dias", conta Elza. Os médicos que aplicavam eram, segundo ela, o Dr. Wilson Cortes, o Dr. Sebastião, o Dr. Aníbal e o Dr. Orlando Vaz. Eram aplicações curtas, de 3 segundos", conta – em que o paciente saia desacordado. Dona Jária, chefe da enfermagem, já falecida, instruía os funcionários: era só pegar alguém cantando.

 

Ela lembra também da enfermeira Regina. "A gente tinha que dar uma ‘gravata’ nas rebeldes, que não queriam ir para o eletrochoque. Era molhar o algodão, passar nas frontes, nos dois lados – e choque neles. Pedi várias vezes para sair disso, paguei metade dos meus pecados ali", diz.

 

Ela lembra do Dr. Maia ("não é meu parente; vinha 3 vezes por semana para atender clientes com hora marcada", diz) e do Dr. Cirillo. Elza trabalhou na Legião Brasileira de Assistência em Aracajú, onde aplicava injeções e fazia curativos. Daí sua ida para o Anchieta, para serviços de limpeza e auxiliares de enfermagem. Enfermagem? Não era aquilo que fizera antes. Ela levava comida para os pacientes presos nas celas-fortes, "sempre lotadas", lembrando que era sem garfo e nem faca, onde eles ficavam meses a fio, entre excrementos.

 

"Alguns, tinha que dar insulina às cinco da manhã e depois trancar o banheiro para eles não poderem beber água", conta. "A coisa mais horrível da minha vida foi aquilo, quando mandavam a gente dar choque, eu passava o resto do dia derrubada, arrasada". "Anestesia antes? Exames? Não, não tinha nada disso", recorda. Ela diz que as pessoas mais agressivas tomavam mais, os mais calmos menos. E da "disciplina rígida" imposta aos funcionários, que eram proibidos de comer no local. "Certa feita", diz a filha Ângela, de 46 anos, minha mãe foi advertida por ser flagrada beliscando pão. Na outra vez, foi suspensa", diz.

 

A reação humanitária

 

Mas, autorizada pela Constituição federal de outubro de 1988, a intervenção veio em maio de 1989, no dia 3 de maio. Combinava as prerrogativas afirmadas pela nova Constituição de 1988 e o antigo Código de Posturas Municipais. Era a redenção de décadas de crueldade na cidade libertária.

 

A intervenção no Anchieta foi produzida legalmente pelos Decretos municipais 863, de 3/5/1989, e 1.021, de 6/12/1989. Durou 10 anos e 24 dias essa situação, de 3 de maio de 1989 até 27 de maio de 1999, quando - já no Governo do sucessor de Telma e David -, foi suspensa por uma Ação Civil Pública promovida pelo Promotor de Justiça João Carlos Meirelles Ortiz, da 2ª Vara de Fazendas Públicas, através do decreto municipal 3.350. A intervenção foi comandada pelo psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, ex-diretor do Programa de Saúde Mental de Bauru – em alguns momentos no início pelo enfermeiro e integrante da equipe de intervenção, Luiz Antonio Melhado.

 

Tykanori pediria exoneração ao final do governo do prefeito David Capistrano, em 2 de janeiro de 1997 – quando era empossado o prefeito que, no governo por dois mandatos e com perfil de direita, autoritário, destruiu a autonomia dos conselhos populares criados na gestão do PT.

 

Mas este governo não destruiu a essência da descentralização do Programa de Saúde Mental, implantado nos dois governos da Frente Democrático-Popular. Conquistado com participação popular e engajamento social, era impossível revertê-lo e voltar ao manicômio – e essa sua maior característica. Com a intervenção, foram implantados 5 núcleos de apoio psico-social, lar abrigado Manoel da Silva Neto, o Centro de Convivência Tam-Tam, a retaguarda de atendimento psiquiátrico às emergências/urgências no PS Central e  núcleo de apoio ao tóxico-dependente, na estrutura do setor.

 

A tragédia anterior e o processo de transformação

 

Desde 1983 só havia uma instituição para atendimento de pacientes com  transtornos mentais em todas as 10 cidades da região: a Casa de Saúde Anchieta, uma fortaleza cujas notícias só escapavam nos lacônicos avisos de mortes, por espancamento ou maus tratos, torturas, lá ocorridas durante sua existência de quase quatro décadas – em que lá estiveram cerca de 80 mil pessoas.

 

Em 22 de abril de 1989 morreu um pedreiro de 54 anos, por espancamento. Em 4 de março um estudante de Agronomia se suicidara, no dia 6 de abril também um ajudante de pedreiro tivera o mesmo fim. De janeiro de 1986 a abril de 1989 foram 50 os mortos. Era  esse o quadro aterrador.

 

Já no dia 22 de abril de 1989 o Diário Oficial do Município anunciava possível intervenção, em face da precariedade das condições dos pacientes. E é concedido um prazo até o dia 28 para solução. Dia 27 o secretário de Saúde David Capistrano distribui à imprensa [comunicado] denunciando a precariedade das celas-fortes, com pequenos orifícios de 5 x 20 centímetros e sem sanitários, em que os internos passavam semanas e meses trancados. Telma envia telex ao governador Orestes Quércia pedindo providências imediatas. No dia 3 de maio, o anúncio é que a prefeita Telma vistoriaria o hospital a partir das 9 horas. São apenas 4 pias, 38 chuveiros frios e 59 privadas para 531 pacientes. É "prioridade zero" o equacionamento da questão para a nova direção municipal.

 

O médico Sérgio Zanetta conta da noite anterior à intervenção, na reunião ocorrida na Secretaria de Saúde, "em que muitos dos nossos aliados, psiquiatras, gente nossa, foi contra aquela medida naquele momento. Diziam: "'vão levantar a cidade contra nós', considerando que a população não queria ver a sua realidade", lembra. Zanetta opinou que a intervenção deveria ir adiante, sim: "Nós vamos abrir um esgoto, vamos purgar uma ferida, ninguém gosta de uma chaga". Para ele, mesmo os que internavam seus parentes lá carregavam um remorso de que procuravam se livrar.

 

O Anchieta precisava ser aberto. E destruído, para construir um novo paradigma. O ato, enfim, encontrou certa resistência: "Não vale a pena lembrar quem foi contra, mesmo porque depois estes foram os mais abnegados operadores, os que mais se envolveram no processo." No dia 3 de maio, ao meio-dia, reunida toda a comunidade organizada santista – da Ordem dos Advogados às sociedades de melhoramentos e sindicatos - e todos os órgãos de imprensa da cidade na rua São Paulo, em que ficava o Anchieta, foi feita a "invasão saudável".

 

Eram cinqüenta pessoas que tiveram a oportunidade de conferir, naquela hora, o absurdo da situação, que descrevemos, daqueles seres. A intervenção não foi apenas um ato burocrático da prefeita em seu gabinete, mas ao inverso, declarada e concretizada no local após a invasão ao meio-dia  do dia 3 de maio e só horas depois, assinada em seu gabinete.

 

O documento foi assinado por ela e pelos psiquiatras Tykanori Kinoshita e Domingos Stamato e pelos psicólogos Luiz Antonio Guimarães Cancello e Antonio Lancetti, entre outros. Era uma libertação real e comparável à demolição das paredes do manicômio de Trieste por Basaglia e seus clientes, como diria a psiquiatra Nise da Silveira, que nos anos 20 pôs em prática as modernas teses da psiquiatria, substituindo os pacientes.

 

O anúncio da intervenção sai no dia 4, decretada no encontro em que estavam juntos a prefeita e seu secretário de Saúde, além do diretor substituto do SUDS-52, Dario Campregher Filho, os integrantes da OAB e da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos. O interventor nomeado é o psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, ex-diretor do Programa de Saúde Mental de Bauru e ex-estagiário de Franco Basaglia, com prazo de 120 dias para as soluções que se exigem. A comissão interventora se reuniria com os funcionários para as novas determinações resultantes da nova filosofia de serviço.

 

Na entrada no hospital da equipe de Governo ao hospital, acompanhada de um exército de jornalistas, fotógrafos, câmaras de TV e membros de entidades, os internos ficaram pasmos diante da cena, da visão daqueles personagens que entravam porta adentro. Agradeciam de joelhos e saudavam em lágrimas a mudança que, percebiam, chegava, aplaudindo e gritando - em atos de lucidez. As manchetes dos jornais paulistanos refletiram a importância do fato no dia posterior.

 

Até ali fora só surra, fome e privação: iria mudar. A imprensa descreve o quadro encontrado: homens e mulheres caminhando em círculos ou deitados pelo chão. Sob as telhas de amianto o calor é insuportável e na TV ligada o Show da Xuxa, na rotina dos internos. A maioria não presta atenção e nem tem condições de manter os olhos abertos, por culpa dos medicamentos fortíssimos e eletrochoques. Um homem contou já ter tomado 240 deles, uma mulher nem consegue falar, treme toda. Um negro alto diz que quer a alta para poder ter um emprego – mas nas entrevistas com os médicos não consegue lembrar o dia em que está e a alta é cancelada.

 

"Existem técnicas terapêuticas modernas", diz Telma no D.O., diferentes desta degradação, explica. O episódio do Anchieta repercutiria nacional e internacionalmente, mas é particularmente interessante ressaltar os fatos noticiados na imprensa local,  pelo diário local.

"O cachorro também é um ser humano"

O jornal A Tribuna do dia 1º de maio de 1989, Dia do Trabalhador, traz a manchete: "Ulysses é dono da festa do PMDB", noticiando a escolha do "Senhor Diretas" para concorrer pelo Partido à presidência da República. Paraguaios vão às urnas para eleger seu presidente. A tradicional coluna social de Tereza Bueno Wolff mostra o aniversário de Giusfredo Santini, já passado dos 90 anos, o cap e patrono da família proprietária deste que é o principal jornal da cidade.

 

"CGT elege Antonio Magri após violenta pancadaria". Era o Congresso da Central Geral dos Trabalhadores, na Praia Grande, escolhendo aquele que, depois, seria ministro e ficaria famoso por suas sandices no cargo - notoriamente pela frase que expôs para o país após ser flagrado transportando seu cachorro em carro oficial:  "O cachorro também é um ser humano", disse ao país. Talvez o cachorro dele fosse mais do que os pacientes do nosso Anchieta, cujo quadro retratado na imprensa, nos dias seguintes à intervenção que abriu as muralhas do hospital, era pior do que a condição desses animais sem dono - estavam sujos, esfomeados e jogados no chão.

 

Foi com base da Lei de Proteção aos Animais que a defesa do advogado Sobral Pinto livrou Luiz Carlos Prestes da cadeia e das torturas, em 1935, após a tentativa revolucionária da Aliança Nacional Libertadora, que pretendia mudar a estrutura social do país. E aqui seria a retomada do estado democrático de direito após 4 décadas de ditadura, assim que as leis permitiram - com a democratização e a descentralização resultante da Constituição de 1988, que devolveu a legalidade ao Brasil, saneando a barbárie da Ditadura Militar que assumiu o poder no país em 1964. "No primeiro dia – conta Sérgio Zanetta -, não tinha médico para dar plantão, fiz o primeiro plantão sozinho com a equipe de enfermagem. Eles haviam abandonado o hospital, se é que se pode chamar assim aquele lugar".

 

"Nesta noite, fugiram 14 pacientes que, para mim, tinham dado atestados para si mesmos de sanidade, ou não fugiriam. O pessoal brincava que ninguém tinha dado alta a tantos pacientes a mesmo tempo". A nova Constituição dava poder aos municípios e a capacidade para agir, no caso do Anchieta. E foi isso o que permitiu a intervenção.

 

Este novo cenário encontrava um Governo com a vontade política de aplicá-las  e o poder foi exercido em defesa do povo. As coisas haviam mudado: era a mesma maneira em que a Constituição municipalizava as verbas do SUS e permitia aos municípios instalarem redes de saúde, o que poucas cidades fizeram – e Santos fez nesta época.

 

Notícias - "Para o Exército, bomba é reação da direita". A AIDS tomava conta da cidade

 

É a manchete de A Tribuna do dia 3 de maio, o Dia "D" da Intervenção Municipal, após a ameaça no dia anterior. O monumento aos trabalhadores em Minas Gerais, assassinados em uma greve recente, havia sido detonado por uma bomba. Estatística do SUDS revela crescimento da AIDS na cidade, campeã brasileira no setor, na cidade que seria exemplo mundial de assistência às vítimas. "Greves e manifestações no Dia do Trabalho", reportavam. Autoridades visitam a Casa de Saúde Anchieta: a direção do SUDS-52, mais a equipe multiprofissional que havia elaborado um relatório atestando as más condições do sanatório voltava ao local, acompanhada de outros dois representantes da Secretaria de Saúde do Estado.

 

Advertidos pela Prefeitura das falhas encontradas, superlotação e carências gerais, os dirigentes do Anchieta tinham promovido uma maquiagem no manicômio, revelada nesse dia, reduzindo de 525 para 379 o número de internos – próximo do limite permitido, mas para os quais não dispunham de funcionários, médicos ou enfermeiras - e proibido novas internações "pela porta", apenas aceitando as que vinham encaminhadas pelo PS Psiquiátrico do Guilherme Álvaro, pelo PAM-Centro e pelo Centro de Saúde de São Vicente, como declaram. Afirmam ainda os dirigentes do Anchieta  que cerca de 170 vagas tinham sido conseguidas com um hospital de Sorocaba e do ABC, reduzindo s superlotação.

 

A equipe estadual era chefiada pelo psiquiatra Moysés Aron Gotryfrid, que dizia ser aquele – o caos encontrado - "um problema crônico, que se arrasta desde 1968". O santista e médico Paulo Ricardo Assis era o chefe do SUDS-52, o órgão estadual, uma indicação do ex-prefeito Oswaldo Justo, do PMDB, que tinha antecedido Telma. E Ronaldo Formento Aguiar era o coordenador do Programa de Saúde Mental do SUDS-52.

 

Ao meio-dia da quarta-feira 3 de maio, após a vistoria da Prefeitura, que não considerou suficiente a maquiagem no hospital, acontecia a invasão saudável do Anchieta, a intervenção municipal. As reformas feitas pelos antigos donos tinham sido para inglês ver, julgara o novo governo da cidade – e interveio. O jornal mostrou e mostraria fotos de seres humanos em situação lastimável, tal como relatado na Idade Média e nos campos de concentração alemães na Segunda Guerra Mundial, jogados no chão e privados de tudo.

 

No dia 4 de maio, no alto da página um, a capa do jornal A Tribuna, no canto esquerdo, a notícia do dia anterior: "Anchieta está sob intervenção da Prefeitura". Após visita de inspeção de mais de duas horas, a prefeita Telma de Souza decretou a intervenção por tempo indeterminado, sendo quase louvada pelos internos, que na sua entrada no hospital choravam e cujos olhos assumiam o brilho inexistente há tanto tempo: "Você veio nos salvar", gritavam para ela.

 

Eram 12 celas fortes, noticiam, médicos e enfermeiras insuficientes, 3 mortes nos últimos meses, 50 nos 3 últimos anos. O diretor do Anchieta Milton Sabbag nega, na imprensa, a existência de celas fortes, dizendo que aqueles cubículos de 2 x 2 metros eram apenas "para conter os pacientes em estado de agressividade, até que terminassem" - o que poderia durar até 40 dias. Desmentia, confirmando.

Intervenção "antipática"?

Sabbag diz ainda que a medida interventora "não era simpática" e que um simples ato jurídico "não modificava normas técnicas", declarou - o que é interessante denotar em face das transformações que viriam em função desse ato jurídico e da imensa repercussão nacional e mundial que causaria e pela repercussão que causaria em todos os jornais do país. Nesse dia, o jornal noticia "13 celas-fortes" na capa. Ou seriam 12, como diz a contra-capa?  Não importava: a brutalidade era a mesma. Prestam seu apoio à medida diversas personalidades do mundo da Psiquiatria e do mundo político.

 

O jornal noticia: Sidney Costa Gaspar, do Movimento Nacional dos Trabalhadores da Saúde Mental; Ana Lúcia Pastores Schritz Meyer, advogada e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo; Cenise Monte Vicente, psicóloga, da Comissão de Direitos Humanos Teotônio Vilela. Fotos mostram pacientes pelo chão e a prefeita conversando com aqueles que diziam ser "violentos e perigosos". O diretor Milton Sabbag justifica a inexistência de camas e sanitários tal como justificara as celas-fortes: diz que os sanitários foram retirados "porque as peças de louça podiam ser quebradas e ferir os pacientes". Os quartos não tinham camas "porque os pacientes poderiam se ferir com os estrados de madeira". E também não tinham luz, porque os pacientes "podiam levar choques".

 

Não bastavam os eletrochoques, de potência muito maior? O Anchieta, declara, recebia  "apenas" NCZ$  - cruzados novos, a moeda de então - 4,03 por hospitalização-dia, mas o custo real era 2,6 OTN's, alegando que custavam, no entanto, 0,6 OTN's. A insuficiência de recursos, justificava, era a razão daquele quadro. No dia 5, a notícia continua em A Tribuna: "SUDS discutirá intervenção no Anchieta". "Comissão Especial de Vereadores se reunirá para debater Anchieta", presidida pelo vereador do PT e líder de Telma na Câmara, Altino Dantas. No dia 6: "Sehig e SUDS debatem intervenção no Anchieta". Presentes os psiquiatras Tykanori e Lancetti.

 

No dia 7, a notícia é que pacientes do Anchieta conseguiram fugir pelo telhado. A resposta do Coordenador de Hospitais e Pronto Socorros da SEHIG santista não poderia ser melhor, comprovando a violência da internação compulsória que perdurava há quase 40 anos. Para ele, não havia problema na fuga, ocorrida no plantão de Zanetta quando os médicos haviam ido embora, pois as características dela "eram a prova de que eles estavam em estado mental satisfatório".

 

"Eles não fugiram, se deram alta" (Dr. Zanetta, segundo Melhado)

 

Notícia: a comunidade se mobiliza para apoiar a intervenção humanitária, doando 14 caixas de laranja, 70 dúzias de banana, roupas, sapatos, 30 quilos de carne do Eldorado. Era a festa do povo e foi feita uma grande churrascada, reunindo familiares, vizinhos, pacientes, médicos, enfermeiros, atendentes. Populares doavam sabonetes, pastas dentais, medicamentos. Era outro o tempo.

 

No dia 23, anuncia o jornal, estaria na cidade o padre Quevedo, famoso por suas experiências de parapsicologia. Aqui, se fazia o dia-a-dia da psiquiatria, com face humana, apenas, muito bom-senso, uma ação de cara humana. Os pacientes, que eram tratados como lixo do mundo, deixavam de ser pessoas humanas, espancados, agredidos, presos, acorrentados e submetidos a choques elétricos. A ação para mudar essa realidade seria o marco inicial da política do governo democrático-popular santista.

 

A fonte de inspiração para a intervenção foi o exemplo de Trieste, na Itália, pioneira na eliminação dos manicômios, eixo do Programa de Saúde Mental desenvolvido em Santos. As novas medidas da intervenção são anunciadas no dia 5 de maio de 1989, a avaliação clinica individual dos pacientes, que não existia – quando da primeira internação, era diagnosticado ou inventado um problema e isso nunca mais se alteraria; o arquivo era uma monte de fichas velhas e sem acompanhamento.

 

São introduzidas visitas diárias aos pacientes, abertura das enfermarias, incorporando-se novos médicos e paramédicos, reuniões com os funcionários. Chegam 4 médicos de clinica geral para avaliação do quadro de cada um, 4 enfermeiras, 24 auxiliares de enfermagem, 5 psiquiatras, 15 psicólogos, 3 dentistas, 2 nutricionistas e assistentes sociais. A junta interventora se reúne com os médicos do SUDS-52 para encaminhar os pacientes em excesso.

 

Zanetta: na ação inédita, as "Brigadas Internacionais" no Anchieta

 

Segundo Zanetta, "no primeiro momento havia pouca gente para intervir, equipe pequena, fomos construindo as pessoas. Veio gente de todo o país trabalhar na intervenção, foi um verdadeiro chamado nacional de sentimentos afinados com as idéias da luta antimanicomial, nesta que foi a primeira intervenção em um hospital psiquiátrico, aliás em qualquer hospital, na história do País". Foi como o movimento de solidariedade internacional na Revolução Espanhola de 1938 contra os fascistas de Franco.

 

A suspensão judicial da Intervenção e a voz de prisão a David

Rubens Lara e Clara Ant apóiam a intervenção

 

Mas a batalha humanitária tem adversários poderosos: no dia 11, chega a suspensão da intervenção pela liminar concedida pelo juiz da 1ª Vara de Fazendas Públicas, Ricardo Almeida Dias - em função do mandado de segurança impetrado em 3 de maio de 1989 -, apesar da contestação do vice-prefeito e advogado Sérgio Sérvulo da Cunha e do interventor Tykanori junto ao magistrado. O então secretário David Capistrano, no calor do processo em que centenas de pessoas estavam sendo libertadas dos maus-tratos e da tortura, se exalta na audiência e diz que aquilo "é uma palhaçada", recebendo voz de prisão, suspendida momentos após.

 

Volta o que era antes: no dia seguinte, empossados os antigos dirigentes, voltam os problemas originais, as prisões nas celas-fortes, as restrições as visitas. Seguranças tentam impedir as fotos da tragédia, enfermarias trancadas, cadeados, pacientes desesperados.

 

No dia 13, o D.O. Urgente desmente que os oficiais de justiça, que tinham ido comunicar a liminar às autoridades municipais, tenham surpreendido o vice-prefeito Sérgio Sérvulo da Cunha saindo por uma porta lateral para entregar-lhe o documento, esclarecendo o advogado que recebeu o representante judicial em seu gabinete. Mas no dia 18 volta a intervenção, em face do despacho do desembargador Nereu César de Moraes, comunicada às 15.30 horas ao diretor-clínico do Anchieta, José Tosso Marins Filho.

 

Na volta da intervenção, a prefeita é recebida com palmas e declara que a notícia fora "...uma das melhores que recebera nos últimos anos". No dia 19, um debate movimenta a cidade e joga a questão no cenário: na Faculdade de Serviço Social se discute a política de Saúde Mental e a intervenção. No dia 23, os deputados Rubens Lara (PSDB) e Clara Ant (PT) hipotecam seu apoio à intervenção. No dia 16 de maio, o Governo federal ameaça descredenciar a Casa de Saúde Anchieta do SUS e no dia 17 volta a intervenção, derrubada a liminar.

 

A sabotagem, como denuncia o secretário David Capistrano no dia 3 de junho, explica o ocorrido no dia anterior, quando eclode um movimento de funcionários  que abandonam o trabalho reclamando da insegurança diante dos pacientes soltos, reclamando maior controle. David mostra que o movimento é articulado com a entrada concomitante de uma petição na 1ª Vara de Fazendas Públicas, para ser anexada ao Mandado de Segurança impetrado em maio para sustar a intervenção. "É manobra", conclui.

 

Mortes naturais são noticiadas com sensacionalismo e existem ações, como denuncia David, para desestabilizar a intervenção humanitária. A Prefeitura reforça a equipe médica. No dia 7 de junho chegava o decreto tornando o Anchieta equipamento de utilidade pública, abrindo caminho para a desapropriação do imóvel. No dia 7 de junho de 1989, Telma assina decreto desapropriando o Anchieta e se anuncia a presença no dia 17 do diretor do serviço psiquiátrico de Trieste, na Itália, Franco Rotteli. É aventado o primeiro intercâmbio com o Ministério das Relações Exteriores italiano. No dia 9, os funcionários do Anchieta têm 100% de aumento, para equiparar seus salários aos funcionários municipais. Rotteli faria palestras na Faculdade de Filosofia da Unisantos.

 

Vem a Santos, no dia 13 de julho, o diretor da Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Marcos Pacheco de Toledo Ferraz, para fazer uma palestra, conhecendo o trabalho e aprovando a intervenção. No dia 24, o boato sobre a concessão, no dia anterior, de uma nova liminar pelo juiz Ricardo Almeida Dias suspendendo a  intervenção, pela segunda vez em 45 dias, quando tem lugar um ato público com mais de cem pessoas entre entidades e familiares dos internos.

 

É inaugurado o primeiro Ambulatório de Atenção Psico-Social para dar assistência aos pacientes que tiveram alta. A Prefeitura não fora notificada da comentada liminar ao mandado de segurança, concedida no dia 23 de junho de 1989, que no entanto é suspensa outra vez no dia 4 de julho pelo desembargador Nereu César de Moraes. A intervenção esteve ameaçada pelos proprietários do estabelecimento, através de ações judiciais e, por três vezes, foi mantida pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, na pessoa de seu presidente, desembargador Nereu César de Moraes. Que em seu último despacho, noticiado no dia 1º de agosto, considerou "um retrocesso inadmissível o retorno da Casa de Saúde Anchieta à administração particular".

 

No dia 14 de agosto, o D.O. Urgente publica uma edição especial com inúmeras fotos e depoimentos de técnicos e internos, com a foto da faixa estampada na porta do Anchieta: "Sob intervenção municipal – em defesa da dignidade humana". Ocorrem manifestações de apoio de todo o país e do exterior. No dia 2 de setembro é noticiado o convênio que traz mais de 600 mil dólares para a Saúde Mental, fruto do convênio com a Itália, aprovado pelo Ministério da Saúde, e Telma prorroga por 90 dias o prazo da intervenção.

 

A condição de ser dirigida por um ex-estagiário do Programa de Saúde de Trieste, Tykanori, foram fatores que favoreceram a obtenção deste acordo, já feito em outras localidades no mundo. O acordo internacional tinha 3 pontos básicos para seu desenvolvimento: 1. Criação de um centro de documentação e informação; 2. formação de profissionais na área da Saúde Mental, inclusive com intercâmbio entre profissionais brasileiros e italianos; 3. Implantação de projetos específicos. No dia 22 de setembro, é anunciada a inauguração do primeiro hospital-dia, no dia 29, é o NAPS da Zona Noroeste.

 

Repercutindo a notícia, no dia 30 matéria do D.O. Urgente traz a frase do vice-prefeito Sérgio Sérvulo, antigo militante da causa dos direitos humanos: "Há pouco tempo, éramos protagonistas de uma tragédia, hoje de uma epopéia. Estamos entendendo tudo o que representa o fim do Anchieta".

 

Novas conquistas

 

O Programa de Saúde Mental de Santos, pioneiro no atendimento de pacientes fora do manicômio, foi um dos 3 programas brasileiros a aperfeiçoar seu registro de dados, o que fez com a consultoria da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, com o número preciso de casos, tipos de doenças mentais, evolução no tratamento e métodos terapêuticos utilizados.

 

Além de Santos, apenas a Secretaria de Estado da Saúde e o Hospital Cândido Ferreira, de Campinas, foram escolhidos para receber a consultoria. Estiveram em Santos para firmá-la o coordenador interino de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Alfredo Schechtman, o representante da OPAS, Itzhac Levaz ,e o diretor do Sistema de Informação em Saúde Mental do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, Ronald Nanderscheid.

 

1990 : A rádio Tam-Tam entra no ar da cidade

 

No dia 2 de maio, Telma anistia trabalhadores municipais punidos por questões políticas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. No dia 3, um ano após a intervenção, já não existem mais as celas de confinamento e só permanecem internados os pacientes que não têm para onde ir. O secretário David vai a Brasília pedir o repasse direto das verbas SUS.

 

A "Radio Tam-Tam" entra no ar em 1º de junho de 1990, na rádio Universal, programa feito por pacientes inédito no mundo e que foi exemplo para várias cidades e países. No dia 30, o professor holandês Dieter Besch elogia as mudanças no Anchieta. No dia 7 de novembro desse ano, a notícia é que o programa desenvolvido no Anchieta iria ser exposto no exterior, em conferência em Caracas, Venezuela – quando David e Tykanori levarão vídeos e fitas de programas radiofônicos. No dia 4 de novembro, a rádio Tam-Tam e o Anchieta estão no programa do Jô Soares, na televisão, um programa de dimensão nacional.

 

1991: Tykanori: o primeiro Programa de Saúde Mental a sair do papel. O lobie contra a Saúde Mental humanizada

 

Em abril de 1991, a matéria do jornal da Faculdade de Comunicação de Santos, o Entrevista, intitulada "Santos abre perspectivas à psiquiatria mundial", colhe o depoimento do psiquiatra Roberto Tykanori. Que sintetiza a ação santista, dizendo que "não é nada de novo o que fizemos aqui, apenas o que a Psiquiatria ensina", declara.

 

Conta que esse projeto é discutido desde 1940 e que surgiu na Inglaterra, que o projeto de Santos segue a linha italiana, que processos semelhantes de reforma psiquiátrica ocorreram na França e nos Estados Unidos – na visão de quem deve cuidar dos problemas sociais que originam o problema não é o hospital, mas a sociedade, como faz com a miséria. "O programa santista já foi observado pessoalmente por psiquiatras da Holanda, Alemanha, França, Suécia, Itália e Alemanha. E Santos é um dos poucos lugares em que o programa saiu do papel", diz.

 

Em maio de 1991, no dia 17, a notícia é que o psiquiatra Valentim Baremblitt, consultor da Organização Pan-Americana de Saúde, órgão de assessoramento da OMS, declaro que "Santos é um marco para a Saúde Mental". Dia 4, o programa radiofônico Rádio Tam-Tam estréia na Rádio Clube, ampliando de 10 para 50 mil watts sua transmissão.

 

No dia 12, a notícia é que um lobby tenta derrubar o projeto de lei do deputado do PT mineiro Paulo Delgado, o projeto de lei 3.657/89, no Congresso. Ele extingue os manicômios, fonte de renda para muita gente importante inclusive no Congresso Nacional. No dia 15 de maio Santos se torna outra vez o centro da luta antimanicomial no país, quando vem aqui Austregésilo Carrano Bueno – no "Bar da Praia", autor do livro O canto dos malditos, que dera origem ao filme O bicho de 7 cabeças, o mais premiado do Brasil e que denunciava um manicômio e seu papel, por uma vítima de internação arbitrária. O Washington Post estampa o Anchieta na primeira página, em 6/8/1991.

Acusações: gravidez e empreguismo

O psicólogo Eustázio Pereira volta a carga em 4 de junho, com denúncias de

empreguismo no Anchieta. Em 9 de junho, 1991: 26 pacientes do serviço de Saúde Mental integram o Núcleo de Trabalho da Casa de Saúde Anchieta e se reintegram à sociedade. Acusações no dia 26 do ex-diretor Edmundo Maia de promiscuidade entre os pacientes, pois haviam surgido internas grávidas.

 

Em 12 de junho: "Lobby contra a Saúde Mental humanizada", é a notícia do D.O. Urgente sobre a ação da Federação Brasileira dos Hospitais que, por razões "puramente mercantilistas", quer derrubar o projeto de lei 3.657/90 do deputado federal Paulo Delgado, que humaniza e abre as portas da extinção dos manicômios.

 

Jornal do Brasil, 28 de julho de 1991: "Médica muda manicômio que foi o terror de sua infância". O depoimento de Sandra Lia Chioro dos Reis. Era uma das mais fortes recordações que ela trazia de sua infância, a ameaça aos filhos desobedientes: "Te mando para o Anchieta". Um silencio sinistro que emitia gritos de horror, recorda Lia, na reportagem do jornal nacional editado no Rio de Janeiro, quando ela então comandava o hospital de tantas tragédias.

 

No final de junho a OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde fizera um workshop na cidade, que emitiu uma Carta de Princípios intitulada Crítica radical à sistemática do manicômio, elaborada junto com a participação de profissionais brasileiros e italianos e distribuída em todo o país.

OPAS, A Carta de Santos

A Carta de Santos destaca o projeto de lei do deputado Paulo Delgado (PT-MG), de extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos, em tramitação no Senado, já aprovado pela Câmara. Propõe a substituição dos manicômios por internações em hospitais-gerais, hospitais-dia ou hospitais-noite, a criação de centros de convivência e atenção. Regulamenta a internação psiquiátrica compulsória por desejo da família, como ocorreu com a deputada Tutu Quadros, filha do ex-presidente da República  Jânio Quadros – que ocorrera há cerca de dois anos.

 

"Aliás na clínica de Edmundo Maia na capital, quem era amigo do marido de Tutu, o Mastrubono", lembra o médico Sérgio Zanetta, "internada à força", diz. Com esse tratamento, "o doente adquire identidade de doente, mas não se enquadra mais nas doenças clássicas", lembra Sandra. "Fica com cara de esquizofrênico, mesmo não sendo esquizofrênico", acrescenta. O projeto de lei de Delgado representa a ruptura de um velho modelo, analisa a Carta de Santos, é um ponto de partida na mudança de tratamento do doente mental.

Lancetti: "perversidade"

Segundo um dos participantes do encontro, o psicólogo Antonio Lancetti, um dos inovadores que interpuseram a ação interventora no Anchieta, os manicômios gastam muito dinheiro, cronificam a doença e são perversos do ponto de vista ético. Ele e Sandra - conta a reportagem - têm um repertório de perversidades cometidas atrás dos muros dos hospitais psiquiátricos tradicionais, como a internação de uma psicótica nordestina - em função da sua linguagem floreada incompreendida - e de eletrochoques em um paciente que se despira por causa do calor.

 

Segundo Lancetti, "o pobre é internado porque é pobre e o rico porque a família quer tomar seu dinheiro", diz – na declaração que o jornalista que escreve a matéria considera "exagerada", mas que reportava com perfeição o caso de Tutu Quadros, a filha do presidente da República Jânio Quadros, e dos fatos que decorreram.

Saúde Mental é orgulho para Santos

Em 22 de agosto de 1991, a chamada do D.O. Urgente é: Saúde Mental "é um orgulho para Santos" . Mostrando sua foto, a declaração é de Gregório Franklin Baremblitt, que terça-feira, dia 20, havia estado em Santos para conhecer o Programa de Saúde Mental desenvolvido desde 1989 pela Prefeitura, tendo debatido com o público o tema "Amor, loucura e repetição", no Bar da Praia de Eduardo Caldeira, junto com o então secretário de Saúde David Capistrano.

 

Na ocasião, ele autografou dois de seus últimos livros Cinco lições sobre a transferência e Lacantroças. Entrevistado pela rádio Tam-Tam, Baremblitt foi professor da Faculdade de Buenos Aires e diretor da área de docência de Plataforma, primeiro grupo que cortou relações com a Internacional Psicanalítica por divergências políticas, tendo dirigido a Escola de Psicologia Psicoanalítica y Socioanálise e o Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições.

 

A Tribuna publica em 5 de dezembro: "Advogado denuncia irregularidades no Anchieta". São acusações de que o hospital se tornara "uma casa de libertinagem, prática de homossexualismo, estupro, agressões físicas a funcionários e entre pacientes e transmissão de doenças contagiosas". Nobel quer responsabilizar David e Telma e ainda a diretora Sandra Chioro.

A resposta das acusações de "erotização" dos pacientes

"Capistrano nega irregularidades no Anchieta", é a reportagem do dia 6 de dezembro. Lancetti negou a existência de "libertinagem", "acontecendo, porém - diz -, que muitas vezes os problemas mentais estão relacionados à questão da sexualidade" e que parte do trabalho está voltada à erotização, ou seja, fazer com que os pacientes discutam seus bloqueios para revitalizar a capacidade de se relacionarem. "Isto não significa estimular a prática de relações sexuais entre os pacientes, explicou o psicanalista, pois todo o trabalho é acompanhado e fiscalizado por técnicos", disse.

 

Tykanori depôs que "há um equivoco dos leigos em querer interpretar que o método que desenvolvemos é de liberdade absoluta, mas sim uma liberdade regrada para execução de um trabalho extremamente delicado no sentido de promover a reinserção do paciente na sociedade".

 

"Comissão Especial de Vereadores acompanha o caso do Anchieta", é a notícia do dia 11 de dezembro de 1991, quando o vereador Mantovani Calejon pediu sua formação para investigar com base nas denúncias de Nobel, que acusava a "promiscuidade sexual". O promotor Wallace Paiva Martins Júnior declara que poderia até mandar vistoriar o Anchieta por peritos.

 

1992: Anchieta é manchete nos Estados Unidos. Telma responde a acusações

 

No dia 9 de janeiro de 1992, a reportagem do D.O. Urgente é que órgãos de imprensa do mundo todo falam do Anchieta e da ação renovadora das políticas de Saúde Mental, entre eles o Miami Herald, em artigo da jornalista Stah Lehman, é a reportagem "Brazil mental patients run radio show as form as therapy", destacando a rádio Tam-Tam.

 

Em 20 de abril de 1992 o jornal Diário do Litoral publica um texto da deputada federal Telma de Souza, prefeita da cidade até 1992, no qual responde as acusações do jornal A Tribuna, com respeito ao gasto de 11 milhões no Anchieta, na manchete que estampou no dia 15 de abril. "Fizemos a intervenção porque como Poder Público, que tem que zelar pela cidadania e dignidade – e não ser apêndice de interesses privados –, não podíamos fechar os olhos para o que estava acontecendo dentro dos macabros muros do hospício.

 

"Aliás, foi o que muitos fizeram, sendo cúmplices e coniventes destas barbaridades", declara, explicando que o volume gasto foi pago em salários aos funcionários "que fizeram um trabalho reconhecido internacionalmente" - acusando "tanto o jornal como os que tentam deturpar a questão da intervenção". Na Casa de Saúde Anchieta defendem o tratamento cruel anteriormente dispensado às pessoas ali internadas."

 

O ano de 1992 foi aquele em que o Ministério da Saúde concede algumas alterações na legislação federal de Saúde Mental aos movimentos organizados, que pressionam. E edita a portaria 224/92, que submete os hospitais a normas de atendimento psiquiátrico mais respeitoso com os pacientes. "Saúde Mental é modelo em Minas Gerais", publica o D.O. Urgente em 30 de junho de 1992, falando da experiência de Barbacena, quando estiveram em Santos, Luiz Eduardo de Oliveira, chefe da Divisão Assistencial do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena – que veio conhecer "este parâmetro nacional de Saúde Mental". Além do vice-diretor clínico, estiveram aqui um psiquiatra e dois residentes em psiquiatria, três psicólogas e igual número de assistentes sociais, duas enfermeiras e uma professora do curso de Psicologia da faculdade de São João Del Rey.

 

Los Angeles Times: "Serviços de saúde de Santos são mesmo impressionantes"

 

Em 25 de julho o D.O. Urgente noticia que "Saúde Mental será destaque nos EUA": "Os serviços públicos de saúde de Santos são mesmo impressionantes", comentou o jornalista Jeb Blount, após conhecer várias frentes do programa de Saúde Mental no dia 21, que seria objeto de reportagem no Los Angeles Times, o maior jornal da Costa Oeste dos Estados Unidos e um dos cinco maiores do país, com 800 mil exemplares por dia. Blount foi entrevistado pela Rádio Tam-Tam.

 

A reportagem sobre a portaria 224/92 da revista Reforma Manicomial escreve sobre as "estruturas inéditas", preconizadas pela medida legal em seu anúncio, desmentindo este caráter: diz ela que já existiam o CAPS - Itapeva desde 1986 na cidade de São Paulo e os NAPS de Santos desde 1989, o HD do Cândido Ferreira de Campinas desde 1990.

 

"Anchieta expõe números e contesta deputado"

 

É a chamada da matéria de A Tribuna em 20 de agosto de 1992. "Para cuidar de 80 pacientes, em média, a Casa de Saúde Anchieta, sob intervenção desde maio de 1989, mantém uma equipe de 120 profissionais, o que representa na prática 1,5 funcionário à disposição de cada interno", informa a Assessoria de Comunicação da Prefeitura, como publica a reportagem, contestando dados mostrados pelo deputado federal e então candidato a prefeito pelo PSDB Koyu Iha, em um debate no Sindicato dos Médicos – quando disse que "os gastos são bem superiores a todos os índices que a classe médica e a rede hospitalar consideram normais". Para Tykanori, na publicação, "Koyu tomou como parâmetro a sucateada rede hospitalar conveniada com o SUS-INAMPS".

 

"Neste caso, diz, o Anchieta destoa, pela assistência que presta aos pacientes e às suas famílias", explica, detalhando que metade do custo de US$ 20 (Cr$ 104 mil) e US$ 25 (Cr$ 130 mil) é ressarcida pelo SUS-INAMPS, que atende mais de mil pacientes e que não poderia ser analisado de forma isolada de toda a estrutura de atendimento do programa.

 

A Revista Ligação, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, de agosto a outubro de 1992, traz a matéria "Loucos nas ruas, praças, rádios..." - "Santos troca violência pelo respeito aos chamados doentes mentais, que voltam a conviver em sociedade".

 

Conta toda a história do Anchieta e entrevista Tykanori, mostra o "Gel Gomes" da Rádio Tam-Tam e mostra uma imagem de seus estúdios em ação, fala das resistências enfrentadas e traz um texto sobre o projeto de lei de 1989 do deputado Paulo Delgado, criticando a política de saúde dos anos 60 e 70, que criara mais de 100 mil leitos psiquiátricos pagos pelo SUS, fora os 20 mil privados. A reportagem é de Victor Nuzzi, com fotos de Januário Silva.

 

O psiquiatra italiano Franco Rotelli, que esteve aqui pela terceira vez no dia 20, elogia os avanços de Santos na Saúde Mental, é a notícia do D.O. Urgente no dia 24 de  novembro de 1992.

 

1993: A extinção gradual, reduzem-se as internações

 

Apenas 29 pacientes são atendidos na enfermaria de doentes crônicos do Anchieta em 31 de janeiro de 1993 e o hospital dispõe de mais 60 leitos na ala de internação. Em 6 de fevereiro de 1993, o jornal A Tribuna noticia que a intervenção gerara duas ações até aquela data, que seriam julgadas pelo STF, uma pedindo a anulação da intervenção, impetrada logo após o ato, e outra pedindo a desapropriação indireta.

 

A entrevista do psiquiatra Roberto Tykanori é a matéria no dia 21 de fevereiro de 1993 no Jornal da Orla: "Núcleos substituem hospital com vantagem", diz o titulo, atestando que as internações caíram de 360 em 1989 para menos de 80 menos de 4 anos depois, dizia Tykanori, enaltecendo os NAPS e a descentralização do atendimento.

 

No dia 20 de março de 1993, a notícia é que psicóloga argentina faz estágio em Santos. Era Gabriela Mendin, docente da Universidade de Buenos Aires em Saúde Pública e Saúde Mental. "Anchieta pode ser desativado em definitivo" é a matéria do jornal Entrevista da faculdade de Comunicação da Unisantos em abril. Telma e Tykanori dizem que ele se tornará desnecessário, assumindo seu papel os NAPS. Maria Aparecida Linhares Pimenta, então secretária de Saúde, diz que o fechamento da casa de Saúde Anchieta "irá coroar o processo de humanização do atendimento psiquiátrico na região".

 

Para Tânia Maria Schdmit Rezende, médica psiquiatra citada na matéria, trabalhando há dois anos no Anchieta, fechar o hospital é medida essencial "para que deixem de existir lugares onde se depositam loucos", afirma. Comenta Tânia que a grande maioria dos hospitais psiquiátricos hoje está em mãos de particulares, que não se importam com a saúde do doente, mas com o lucro.

 

Ao reverso, o psiquiatra Benedito Carlos Weltson, responsável pelo Departamento de psiquiatria da Associação Médica de Santos e professor de Psicologia Médica na faculdade de Medicina não concorda com o fechamento da casa, pois segundo ele, "os carentes é que serão prejudicados". Na matéria assinada por Nádia Regina, o médico diz "não entender" como o Governo municipal considera o Anchieta um "manicômio comum", após "todos os investimentos injetados e os avanços atingidos".

 

"A atitude da Prefeitura está sendo simplesmente política", diz. "Ela não leva em conta o atendimento da população", declara. As 50 mortes em 3 anos foram "mera fatalidade", diz Sabbag. É importante o registro.

 

"Prefeitura vai acelerar desativação do Anchieta" é a matéria de A Tribuna no dia 18 de julho, do jornalista Francisco La Scala. Eleito sucessor de Telma, David Capistrano promete acelerar o processo de substituição por uma rede alternativa.

 

Analisando o debate entre a velha e a nova Psiquiatria que advoga a demolição dos manicômios, um bloco da matéria critica a extinção dos hospícios e alerta para os "casos graves", escreve que a lei italiana estava sendo reformada "por não conseguir se sustentar", apenas se mantendo na região de Trieste – o que seria desmentido por Tykanori no bloco posterior, explicando que a Lei italiana estava sendo reformada sim para ampliar os institutos lançados e as casas-abrigo para recolher o que o manicômio havia produzido.

 

"Nós temos a visão do indivíduo mais dono de si, não aceitamos a tutela do estado. estamos buscando uma psiquiatria mais sensata, conciliando os avanços tecnológicos possíveis com escolhas éticas, mostrando que a tutela ainda que temporária não é ideal", diz. "O ideal é que a sociedade gere pessoas produtivas", acrescenta Tykanori.

 

Edmundo Maia, apontado como torturador, alerta para o que os loucos podem fazer soltos. Torturar pessoas?

 

Entrevistado, o antigo dirigente do Anchieta apenas "até 1961", como diz a matéria, Edmundo Maia, alerta para a "a responsabilidade civil e penal" dos atos praticados pelos pacientes libertos, com a desativação do hospital. Para ele, "a antipsiquiatria não teve êxito nos Estados Unidos e nem na Itália", contando que Anchieta foi um dos hospitais mais modernos do Brasil, "o primeiro sem grades", conta. Repete que a Lei italiana está sendo revista (o que foi desmentido por Tykanori). Em outros tempos, o que é curioso é que Maia foi um impulsionador da humanização psiquiátrica, diz ele, "e apesar disso fui apontado como torturador  por esse pessoal que segue a linha do Basaglia". Sabbag, outro sócio, insiste na tese de que o município não poderia intervir.

 

Experiência santista aprovada

 

Em agosto de 1993, no dia 13, o D.O. Urgente noticia que os pacientes psiquiátricos haviam fundado um cine-clube, exibindo o filme O Garoto, de Charles Chaplin. "A rádio Tam-Tam estréia na rádio Cacique AM" é a notícia no dia 18 de setembro, agora todos os dias das 20 às 21 horas, menos domingo – e está lançando um concurso de locução. "Doentes crônicos têm alta no Anchieta" é a notícia do D.O. Urgente no dia 20 de outubro de 1993. "Hospital psiquiátrico adota nova forma de tratamento, reintegrando estes pacientes na sociedade", diz o texto, que alerta para o fato de que é um caso raro na literatura médica.

 

A matéria conta do paciente W.A.M., de 35 anos, que se tornara um cidadão independente e auto-sustentado após ser interno em orfanatos e instituições por toda a vida. O caso foi apresentado pela psicóloga Lygia Cascabulho no 5º Encontro de Psicólogos da Área Hospitalar realizado em Rio Quente, em Goiás, em 22 a 25 de agosto e nos dias 10 e 11 em Buenos Aires, durante o 5º Congresso Internacional de Psicopatologia e Saúde Mental, onde foi aprovado pela Comissão Científica.

 

"Santos exporta sistema de saúde para 300 cidades" era a notícia na Folha de São Paulo no dia 7 de novembro de 1993. Em novembro, no dia 10, a notícia do D.O. Urgente é que seria inaugurado oficialmente nesse dia o primeiro Lar Abrigado para pacientes psiquiátricos, cujas vidas haviam sido limitadas pelos longos anos de reclusão na Casa dos Horrores.

 

A "República Manoel da Silva Neto", a "Casa Manequinho", já contava com 14 pacientes com idade média de 55 anos e muitos já tinham passado mais de 30 anos internados. Ficava na avenida Pinheiro Machado 364 e a diretora é Fabiana Maria del Bon, que declarou que era "a 15ª moradora", pois residia no local.

 

"Santos sedia encontro nacional antimanicomial", dia a notícia do dia 9 de dezembro de 1993 no D.O. Urgente, debatendo o tema O Brasil sem manicômios no ano 2000. É o III Encontro Nacional de Entidades e usuários, de 9 a 12 desse mês no ginásio do Sindicato dos Metalúrgicos na rua Paraná. No dia 9, na abertura, seria exibido o filme O alienista, da obra de Machado de Assis, e no dia seguinte a abertura seria feita pelo prefeito e médico David Capistrano.

 

No dia 16: "Santos exporta experiência em Saúde", escreve o D.O. Urgente, falando da ida do prefeito David Capistrano para contar a experiência santista em Quixadá, no Ceará, onde abriu uma jornada em Saúde Mental no Instituto de Orientação Vocacional Pio XII. Além de Quixadá, outras duas cidades, Iguatú e Canindé, estão implantando o programa santista.

 

1994: Santos na BBC de Londres. Pacientes fundam cooperativa de trabalho

 

A BBC de Londres, uma das principais rádios do mundo, transmitida para vários países, vem a Santos com o repórter Jean MC Neal. Ele esteve aqui no dia 18, noticia o D.O. Urgente no dia 21 de maio de 1994, para fazer entrevistas sobre os programas santistas na área de Saúde Mental e AIDS. Reportagem no jornal Espaço Aberto, em 27 de maio de 1994, intitulada "A loucura nas ruas de Santos", faz críticas à intervenção em artigo de página e traz, além do depoimento do médico Sérgio Prior, diretor do Pronto-Socorro Psiquiátrico do Hospital Guilherme Álvaro, que se diz contra a "erotização" que estaria sendo levada aos pacientes do Anchieta.

 

A reportagem fala da representação iniciada pelo advogado Nobel Soares de Oliveira em 1991 nessa direção. Em 17 de setembro de 1994, o Jornal da Orla noticia que ex-pacientes do Anchieta fundam cooperativa. "A intervenção me salvou", diz José Roberto dos Santos, que junto com Arthurmiro Dechiaro foram os fundadores da cooperativa - e que reconstruíram suas vidas através do trabalho na Unidade de Reabilitação Psico-social, "pois acabou com a Casa dos Horrores e eu pude começar a trabalhar".

 

"Doentes mentais já têm uma cooperativa"", repete a matéria do Diário do Litoral em 7 de novembro de 1994, quando os usuários do Programa de Saúde Mental da Prefeitura haviam fundado a Cooperativa Paratodos de marcenaria, jardinagem, brechó, lixo reciclável, doces, salgados e trabalho braçal.

 

"Santos ganha menção honrosa por trabalho no Anchieta", diz a notícia no D.O. Urgente no dia 24 de novembro de 1994, quando a cidade foi uma das cinco premiadas na I Mostra de Experiências Municipais sobre a defesa da mulher contra a violência, promovida pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal. A representante santista foi a psiquiatra Suzana Robortella, do NAPS II, que lembrou que um dos pontos mais importantes da experiência foi perceber "o efeito positivo da liberdade". Até o dia 26 ela participaria de uma mostra sobre o tema, expondo o trabalho de Santos no Rio de Janeiro.

 

No dia 30 desse mês de novembro, o D.O Urgente noticia que a SEHIG assumia o Ambulatório de Saúde Mental da Zona Noroeste, na Areia Branca, o que reivindicava desde 1989. O diretor Nilson Ferraz Páscoa, do RSA/52, entregava as chaves.

 

1995: a Argentina vem conhecer a Saúde Mental de Santos

 

"Escritor argentino vem conhecer o programa santista", estampa o D.O. Urgente no dia 1º de dezembro: Mário Testa, um dos principais formuladores do método de planejamento a OPAS - Organização Pan-Americana de Saúde, reuniu-se no dia 28 com técnicos das áreas sociais e desenvolvimento urbano e, no dia seguinte, com diretores do serviço municipal de saúde. Autor do livro Pensar em saúde, é conhecido como um pensador latino-americano que vê a saúde como prática social: "Um governo racional – diz -, só pode ser construído sob a base de um processo realmente emancipador, que aumente a motivação e a vontade política na consciência do povo".

 

O Jornal do Brasil expõe matéria com o titulo "Santos trata seus loucos com qualidade de vida", no dia 26 de junho de 1995, contando todo o processo de intervenção e construção do Programa de Saúde Mental, dizendo que "reforma do sistema psiquiátrico obtém sucesso ao estimular convívio com a família, evitando internações prolongadas e ineficazes".

 

No dia 19 de dezembro de 1995, a notícia do D.O. Urgente era que o Programa de Saúde Mental de Santos iria contar com o apoio da Organização Mundial de Saúde, que recomendou o exemplo santista a 190 países. A notícia era comunicada na visita do diretor de Saúde Mental da OMS, Jorge Alberto Costa e Silva. No dia 18, profissionais cubanos haviam conhecido pessoalmente o Programa de Saúde Mental santista, quando estiveram aqui o coordenador de Saúde Mental de Cuba Guilhermo Barricatas, na vista patrocinada pela Organização Pan Americana de Saúde – OPAS.

 

"Teatro é usado para reintegrar doentes mentais", diz a manchete da reportagem do jornal O Estado de São Paulo do dia 20 de novembro de 1995, reportando o trabalho do Grupo Biruta com os internos. O olho (N.E.: destaque) da matéria fala que o Anchieta "foi o primeiro manicômio brasileiro a trocar, em 1989, o excesso de medicamentos, tratamentos com eletrochoque e confinamento dos internos pelo atendimento descentralizado e aberto nos núcleos espalhados pelos bairros de Santos".

 

1996: Pasquale, de Trieste, elogia a ação santista

 

O psiquiatra Evaristo Pasquale, do Serviço de Trieste, elogia a ação santista, é a notícia. No dia 6 de janeiro de 1996, médicos do Hospital Phillipe Pinel, no Rio de Janeiro, fazem estágio em Santos. O programa local seria apresentado na Semana de Luta Antimanicomial promovida pelos institutos Phillipe Pinel e Franco Basaglia. Em 29 de março, o pesquisador Paulo Amarante, da Fundação Oswaldo Cruz, relatava que o Brasil teria mais 100 Núcleos de Atenção Psico-Social até o final do ano, fora os 100 que já existiam  no exemplo de Santos, que "...iniciou a reforma psiquiátrica no Brasil", disse na ocasião, como relata o D.O. Urgente, endossando as teorias aplicadas.

 

Em 1996 é baixada a Norma de Orientação Básica (NOB 96), que só começaria a funcionar em grande número nas cidades a partir de abril de 1999, quando efetivamente o Ministério da Saúde começou a oferecer efetivamente verbas aos municípios que assumissem os serviços psiquiátricos até então sob comando da União e dos Estados. De posse desses novos recursos e das diretrizes ditadas pela Portaria 224/92, os municípios ganharam grande impulso para realizar, de fato, uma reforma de base no sistema psiquiátrico nacional, pois a portaria previa a criação de estruturas inéditas de atenção aos doentes, que haviam surgido aqui, como os CAPS/NAPS ou Hospitais-Dia oferecendo a mediação entre laboratório e a internação, oferecendo aos pacientes atendimento clinico e psicoterapêutico, também lares abrigados (as repúblicas de pacientes) e oficinas terapêuticas, proibindo terminantemente a reclusão em "espaços restritivos" como as celas-fortes.

 

Em São Vicente, o exemplo do Anchieta. Mito e loucura

 

A Semana de Luta Antimanicomial de 1996, reportando a conquista que irradiava para São Vicente a partir de 1993, com a criação do Núcleo Mater de Atenção Psicossocial, então com 5 mil pacientes cadastrados, teria uma apresentação nessa cidade do evento Mito e Loucura – um ritual cênico, no dia 18, no Instituto Histórico e Geográfico, baseada na história de Demeter e Perséfone, um texto da mitologia grega – que surgiu depois que uma usuária do serviço foi morta pelo próprio filho, um ex-bombeiro, dentro da unidade.

 

O diretor Sérgio Penna lembrou que a mitologia é extremamente rica em simbologias e que grande parte de nossos atos é fundamentada nestes mitos, uma pesquisa temática feita pelo psicólogo Haroldo Tuyoshi Sato, que atua desde 94 no NAPS vicentino e na Associação Maluco Beleza e Mokiti Okada.

 

O evento Mito e Loucura contou com a coordenação psiquiátrica de Domingos Antonio Stamato, produção da "Pazzo a Pazzo Projetos de Arte e Loucura", com assistência de direção de Guido Leonarduzzi, colaboração de Fred Maia e a música de Wilson Sukorsky, com o patrocínio do Serviço de Saúde de São Vicente.

 

Haveria ainda um ciclo de debates e a projeção do filme O profeta das cores, de Leopoldo Nunes, premiado no festival de Brasília. Em 22 de abril de 1996, o Diário Popular noticia que a Universidade de Boston, que mantém um órgão vinculado à OMS, aprova modelo de saúde de Santos, escolhido como um dos 3 melhores do mundo, contendo as melhores práticas de reabilitação psicossocial, que seriam exibidos na Holanda, para onde foram Tykanori e Fernanda Nicácio.

 

É esta a manchete do Diário da Cidade no dia 10: "Saúde Mental de Santos é destaque internacional". Junho, 26: o D.O. Urgente noticia a visita da cientista social Franca Ongario Basaglia, um dos destaques do cenário social e político italiano e participante da luta pela reforma sanitária e psiquiátrica. Ex-senadora pelo Partido Comunista Italiano, com atuação destacada em defesa dos direitos da mulher, ela veio convidada pela Fundação Oswaldo Cruz, USP e Conselho Nacional do Desenvolvimento Cientifico e tecnológico (CNPq). Franca não é senão a esposa do psiquiatra inovador e exemplar para Santos Franco Basaglia, fazendo várias conferências. Sua obra literária publicada no Brasil é Mário Tommasini: vida e feitos de um democrata radical, editada pela Editora Hucitec.

 

Novembro, 1996: no dia 12, o D.O. Urgente noticia a inauguração do NAPS da Zona Noroeste, no andar térreo da rua Agamenon Magalhães s/nº, Jardim Castelo, onde funcionava o Pronto Socorro que mudou para o recém-inaugurado Hospital da Zona Noroeste, denominado "Ernesto Che Guevara".

 

No dia 19 de dezembro de 1996, o D.O. Urgente diz que "Programa de Saúde Mental de Santos vai contar com apoio da Organização Mundial de Saúde, que o recomendou a 190 países como exemplo". Autoridades cubanas elogiam o trabalho santista. Estiveram aqui Guilhermo Barrientos, diretor de Saúde mental de Cuba, e Jorge Rodriguez, seu equivalente em Havana. O jornal Diário Popular escreve, no dia 25 de dezembro de 1996, matéria em que noticia "Atendimento psiquiátrico santista é modelo mundial", em reportagem de Marcus Fernandes que fala do aval recebido pelo diretor de Saúde Mental da Organização Mundial de Saúde Jorge Alberto Costa e Silva.

 

1997: A direita, agora no poder, faz a hora da revanche

 

Empossado o governo de direita que sucedera às administrações de Telma (1989–1992) e David (1993–1996), a intensa campanha que se fizera contra a intervenção no Anchieta precisava se traduzir concretamente e se inicia uma revanche a partir do Governo municipal e de seus aliados, negando o papel inovador, humanitário e de repercussão mundial que se promovera no Anchieta.

 

"Comissão Especial de Vereadores vai apurar empreguismo no Anchieta", diz a matéria de A Tribuna no dia 14 de março de 1997. No dia 13 havia sido instalada a CEV com os vereadores Marinaldo Mongon, Fausto Figueira, Thomas Sorderberg e Manoel Constantino, Mantovani Calejon, Martinho Leonardo e Sérgio Bonavides. É forte a pressão da imprensa contra o governo do sucessor de Telma que deixara a Prefeitura, já que em 1997 assumira a oposição malufista na Prefeitura.

 

No judiciário as acusações fracassariam, mas eram seguidamente estampadas na imprensa. No dia 11 de abril, o psicólogo Eustázio Pereira, que fora demitido por seus correligionários do Núcleo de Apoio ao Toxico-dependente, que funcionava no Anchieta, denuncia o empreguismo na época do PT e que continuava: "Tinha funcionário até de Moscou", dizia, tentando aplicar a velha cantilena anticomunista, falando da enfermeira Mariana Ribeiro Prestes, filha do herói brasileiro que dirigiu o Partido Comunista.

 

Contratada pela lei 650 de 1993 a 1995, recontratada em 26 de novembro e demitida em 25 de fevereiro, a profissional foi citada também na reportagem sobre o episódio no dia 4 de junho. Pereira reconheceu a necessidade de intervenção, mas "discordou de seus rumos", dizia. O Anchieta está sem responsável desde o início da atual gestão", se queixava o Secretário de Saúde Odílio Rodrigues em depoimento na Comissão Especial de Vereadores que apurava o empreguismo no Anchieta.

 

Tykanori agredido moralmente: "Ainda há juízes em Berlim?"

 

Em 19 de agosto de 1997 o Diário Oficial do Governo municipal que sucedera o PT mostra a revanche e publica edital abrindo inquérito administrativo contra Tykanori, por suposta destinação ilegal do dinheiro do Fundo Municipal de Saúde, aberto em função de um documento enviado em 21 de janeiro desse ano e sem a assinatura do ex-interventor.

 

Em 23 de agosto o Jornal da Orla publica a matéria "Linchamento moral na PMS", a propósito da acusação sobre o ex-interventor do Anchieta, objeto de duas acusações transformadas em inquéritos administrativos. O crime de Tykanori era ter concedido três gratificações que valeriam hoje dois mil reais, naquela época, "Para gente que trabalhava, e duro - e que ganhava muito menos do que os R$ 5.400,00 que o governo Mansur paga para seus assessores símbolo C-1", explicou Tykanori. "O prefeito Beto Mansur – diz o texto -, não foi capaz de pronunciar uma só palavra sobre a situação de seu grande líder e padrinho político Paulo Maluf, atolado em mais dois escândalos, o dos precatórios e o frangogate, mas está sendo valente o suficiente para promover um linchamento moral de um cidadão de bem". "Ainda há juízes em Berlim?", termina o texto.

 

Desse fato resultou um "Ato de Desagravo" publicado no Jornal da Orla em 13 de setembro de 1997, com mais de 500 assinaturas com gente de todo o país em apoio ao psiquiatra Kynoshita. Escreve a publicação: "Cidade de Santos, maio de 1989: a intervenção na Casa de Saúde Anchieta rompe com a violência e a segregação das pessoas com transtornos mentais pelo modelo asilar. A data marca o início do projeto de saúde mental da secretaria de saúde reconhecido nacional e internacionalmente pelo atendimento público digno, humano e efetivo. A coordenação do dr. Roberto Tykanori Kinoshita, decisiva nesse processo, foi pautada pela ética, garantia de igualdade de direitos e a recusa de exclusão social das pessoas com sofrimento psíquico".

 

Continua o texto: "Agosto de 1997: o Diário Oficial de Santos expõe publicamente a figura do Dr. Tykanori e fere a sua integridade pessoal e profissional. Convidamos as pessoas que se identificam com os pressupostos da transformação da assistência psiquiátrica realizada em Santos e que discriminam o método de perseguição política e ideológica a manifestarem sua solidariedade na data de 16 de setembro, às 21 horas, no Bar do Torto, na avenida Siqueira Campos 800 – Embaré, Santos". Foram médicos psiquiatras, psicólogos, vereadores, enfermeiros, terapeutas, economistas e zootecnistas, governadores de Estado, deputados estaduais e federais, advogados, engenheiros, dirigentes de empresas públicas e privadas e órgãos governamentais de todo o país a apoiar Tykanori.

 

1998: revanches não param

 

Março, 1998: A Tribuna noticia, no dia 25, que "A Câmara pretende ver a situação da Casa de Saúde Anchieta". Comissão Especial de Vereadores que apura o empreguismo foi reativada e se reuniria na segunda-feira. A reportagem fala das ações judiciais em outubro de 1989 e julho de 1997, julgadas favoravelmente à Prefeitura em outubro de 1991 e outubro de 1997 pelo juiz Eleutério Dutra Filho.

 

Em dezembro, dia 20: a noticia do jornal A Tribuna é que, segundo informações do advogado Afonso Vitalli, que representa os herdeiros de um dos antigos sócios do Anchieta, antigos sócios minoritários entram a desapropriação indireta do Anchieta. É a ação 7379, junto ao Tribunal de Justiça.

 

1999: Telma responde acusações. Lula nos dez anos da intervenção. Ufa! Nova interpelação ameaça obrigar a devolução do prédio e cassar de Telma e David. A boa notícia: Maia revela que não quer reativar a Casa dos Horrores

 

No dia 8 de abril de 1999, a notícia é a da decisão do Juiz da 2ª Vara de Fazendas Públicas de Santos, Márcio Kammer de Lima, obrigando a devolução do prédio – na ação impetrada pelo promotor de Justiça João Carlos Meirelles Ortiz, que propõe a cassação política do ex-prefeitos Telma de Souza e David Capistrano, além das penas ao ex-secretário, o médico Cláudio Maierovich, e ao psiquiatra Roberto Tykanori - com perda da função pública que eventualmente exerçam e suspensão dos direitos políticos por dez anos, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio e seu ressarcimento, além de multa, em hipóteses não-decididas pelo Juiz.

 

O Magistrado cita as 522 contratações feitas durante o período e o gasto de 11 milhões. E a boa notícia é que Edmundo Maia, o ex-proprietário, garantiu que não havia a intenção de reativar a clínica psiquiátrica. A resposta do ex-prefeito David é que os argumentos do Promotor são "absurdos e monstruosos", argumentando que Prefeitura não poderia ter posto fim ao Anchieta e no dia seguinte liberar todos os pacientes, sem gastar um tostão e sem executar um programa de reintegração como foi feito.

 

"Desafio a qualquer um indicar o nome de um parente meu, da Telma, do Maierovich ou do Tykanori que tenha sido contratado pelo Anchieta", diz o ex-prefeito no Jornal da Orla no dia 18 de abril de 1999. David fala dos concursos para contratação de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. "Não fizemos absolutamente nada de irregular", expõe David, classificando os argumentos como "tolices para impressionar pessoas desinformadas".

 

Ele diz que "tentam mostrar que o PT tem as mesmas práticas dos partidos de direita, do Mansur, do Maluf e do Pita. A força motriz desse processo é uma mentalidade retrógrada, reacionária e conservadora de algumas pessoas desta cidade que são contra iniciativas novas e progressistas na área de Saúde Mental".

 

O ex-prefeito que sucedeu Telma de 1993 a 1996 disse ainda, em 1º de maio de 1999, no jornal Diário do Litoral, que o "interesse econômico" é elemento predominante nessa questão, citando as pressões contra o projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que tentava eliminar os manicômios. E também que o promotor "não entende nada do assunto", tendo classificado o ato como uma "malfadada intervenção", que foi feita com base em relatório endossado pelo próprio ex-secretário de Saúde do prefeito de Santos Oswaldo Justo, então diretor local da Saúde estadual, "que não tem nenhuma afinidade conosco".

 

E questiona em números: "Cinco psiquiatras bastavam para atender quase 550 pacientes que existiam lá? Antes de fazermos a intervenção – segue David - existiam apenas ‘meia’ assistente social (trabalhava em meio-período), um psicólogo, também em meio-período, não havia farmacêutico, apenas uma cozinheira com duas auxiliares. Enquanto o relatório estadual exigia 28 enfermeiras, 116 auxiliares de enfermagem, havia apenas uma enfermeira e 3 auxiliares. Contratamos menos do que o relatório recomendava. Esta história que contratamos muita gente não é bem assim", diz.

 

Ele explica que foram pagos medicamentos, comida, pessoal. Sobre a questão, Telma explica que a intervenção foi feita porque o Poder Público tem a obrigação de zelar pela cidadania e pela dignidade: "Não podíamos fechar os olhos para o que estava acontecendo no Anchieta, dentro dos macabros muros do hospício. Aliás, foi o que muitos fizeram durante anos, sendo cúmplices e coniventes com estas barbaridades", coloca.

 

Para ela, as maiores testemunhas de que os profissionais contratados foram dignos e que obedeceram a critérios técnicos para implantar uma nova política de Saúde Mental são os seus usuários. O então secretário de Saúde Edmon Atik diz, na Câmara, durante a audiência realizada para debater a questão, que a intervenção "foi necessária". Telma expõe que os R$ 11 milhões gastos representam cerca de R$ 110 mil mensais, "uma quantia pequena se comparada aos benefícios que trouxe à cidade", lembrou - e que o programa foi aprovado pela opinião pública, que foi defendido por Lula no exterior "e não poderia ser criticado apenas aqui".

Lula no Anchieta

"Prazo para desocupação é prorrogado", diz a manchete do jornal A Tribuna em relação à determinação judicial para que a Prefeitura deixasse o Anchieta. No dia 3 de maio de 1999 Lula vem a Santos para o aniversário da intervenção no Anchieta, que teve um ato com performances teatrais, exposição de fotos, exibição de vídeos e debate sobre a luta antimanicomial na primeira cidade brasileira a desenvolver um revolucionário Programa de Saúde Mental, tornando-se referência nacional no processo de humanização do atendimento psiquiátrico.

 

O Movimento "Saúde e Cidadania" desenvolveria a partir das 12 horas na Praça Mauá, com a participação dos integrantes da rádio Tam-Tam, grupos de teatro amador e artistas plásticos, que simbolizariam o drama vivido pelos pacientes psiquiátricos nos tempos anteriores à intervenção no Anchieta.

 

A partir das 18 horas, a programação seguiria no foyer da faculdade de Economia: exposição de fotos e representação de um trecho da peça Na sala de espera do Dr. Sigmund, de Renato Di Renzo, que faz uma leitura poética da loucura, além de uma mesa-redonda sobre a luta antimanicomial em Santos, com a presença de Lula e dos deputados Paulo Delgado e Telma de Souza, além do deputado estadual Roberto Gouveia e da coordenadora de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Ana Pitta, do ex-prefeito Capistrano e de Tykanori, dos representantes da Comissão Nacional de  Reforma Psiquiátrica Geraldo Peixoto e Geraldo Francisco – entre depoimentos dos usuários da Saúde Mental de Campinas, São Paulo, Santo André, Betim (MG) e de outras cidades.

 

A comemoração da primeira década da intervenção, em 3 de maio de 1999, reuniu vereadores, deputados, membros e representantes de partidos políticos e organizações não-governamentais. E mais ex-prefeitos, médicos e técnicos, enfim – junto os ex-internos, fazendo seus depoimentos, ocasião em que foram exibidos vídeos mostrando os episódios de 10 anos antes. O evento ocorreu no  auditório do campus da Vila Mathias da Unisantos e teve a presença do então presidente de honra do PT, Lula. Diferentes entre si, cada um com um tempo de internação e experiências trágicas, provocando lágrimas com suas histórias. Como Alzira Pajara, mãe de Sandra, que narrou os tempos que implorava na porta por uma visita sempre negada, em que a filha estava no chiqueirinho, nua, sem comida nem água, só saia para os choques.

 

Torturas no Anchieta, descritas por quem sofreu

 

O Jacaré, como é apelidado José Gonçalo de Araújo (segundo ele mesmo, "porque comia muito"), relata o que viu e sentiu nos espancamentos, mutilações, mortes e suicídios no tempo que passou lá. Ele conta que o eletrochoque, que experimentou, dado como castigo, era aplicado indiscriminadamente, "colocavam um negócio na boca dele para não gritar e ligavam o elétrodo na cabeça para dar a descarga". "Em seguida", diz, "o cara apagava".

 

"O pior tratamento era dado aos pacientes que ficavam nas celas-fortes, trancadas e sem contato com os funcionários, sem latrinas ou camas, sem ver a luz do sol. Sedado logo quando chegou, antes de qualquer consulta, fala que apenas soja era dada pelo orifício da cela-forte. David Araújo Barbosa, outro ex-interno, depois paciente do NAPS-II, disse que viver no Anchieta "era pior do que estar preso" – e que diversas vezes foi ajudar os pacientes, que acordavam depois do eletrochoque, com dores por todo o corpo, que chegavam cambaleando como bêbados e tinham que ser amparados para não caírem.

 

Lula disse que o programa aplicado em Santos serviu como modelo em outros países, sendo defendido por ele mesmo em congressos em Roma e Madri, como reporta o jornal Diário do Litoral em 4 de maio de 1999.

 

"Eu te amo! Por favor, não me dá choque não! Era isso o que eu gritava para o dr. Miguel, meu médico lá no Anchieta. Eu tinha dezessete anos e estava apaixonada por ele. Foi meu pai que decidiu me internar no Anchieta, onde tomei muito eletrochoque e fiquei em cela forte. Tomei choque grávida e fiz um voto a Deus que se meu filho nascesse perfeito eu daria a ele um nome bíblico. Nasceu Sarah, hoje com seis anos. Acho que a intervenção ajudou muito". É Zulmira Maria Xavier, 27 anos, depois atendida pelo NAPS.

 

A história de Nádia, de 33 anos, desde os 17 em instituições psiquiátricas, é exemplar. "Diziam que eu era "revoltada demais, como motivo da minha internação", declara. "Quando cheguei no Anchieta, reclamava prá burro e tomava eletrochoque direto. Dói prá burro. A gente desmaia. Agora está melhor, parece que o pessoal entende melhor a gente. Eu continuo reclamona, mas não me dão mais porrada nem eletrochoque".

 

Hoje ela ajuda as equipes no controle de funcionamento do hospital. Olha para as celas-fortes e conta que ficou um mês inteiro lá dentro, lúgubres lembranças do sofrimento imposto a seres humanos. Em 9 de maio, os frutos: "Projeto ajuda pacientes a viverem na sociedade", quando A Tribuna reportava os programas iniciados sob o governo do PT e que seguiam reintegrando pacientes. É quando tem lugar a uma polêmica entre antigos setores opositores à intervenção, o médico Gilberto Elias Simão e o ex-prefeito Oswaldo Justo, que na campanha eleitoral de 1992 desferira duras críticas ao ato da prefeita Telma, para ele "uma invasão do bem privado".

 

"As internações são retomadas" é a notícia em 6 de maio de 1999, anuncia A Tribuna, para os casos crônicos. Historiando a intervenção desde 1989, quando ela ocorreu, a matéria entrevista o médico Benedito Carlos Weltson, que expõe a carência de vagas na região. Também defensor das internações, o psiquiatra e chefe do NAPS III Sérgio Chigo diz que "os hospitais são necessários porque muitos transtornos são resultado de complicações como tumor, diabete e insuficiência renal", afirmando que o próprio Basaglia defendia o uso de enfermarias para estes casos.

 

Respondendo aos defensores da internação e críticos da extinção do hospital, o ex-secretário de Saúde Cláudio Maierovich declarou que "as internações só ocorriam em último caso" e que o NAPS as fazia limitadas em 5 dias. Aproveito para dizer que a qualidade do atendimento havia decaído com limitações ao livre acesso dos NAPS durante a noite, apenas com pré-agendamento, onde faltam alimentos e 3 pacientes já haviam se suicidado".

 

A polêmica dos opositores

 

"A intervenção poderia ter sido evitada", declara o dr. Gilberto Elias Simão ao jornal A Tribuna em 6 de maio de 1999. Para ele, se tivesse sido seguida a orientação do Ministério da Saúde, "pois a cidade gerenciava o setor no sistema semi-pleno do SUS e poderia romper o contrato, esgotando a capacidade do Hospital de continuar a prestar serviços", disse Gilberto. Ele atribui a ausência da ação à uma falta de "visão política" do então dirigente do DIR-19, o médico e ex-secretário de saúde de Justo e seu indicado, Paulo Ricardo Assis, que não tomou qualquer atitude e a Prefeitura interveio.

 

Para Elias, em 1989 a internação psiquiátrica "já entrava em desuso" como alternativa definitiva, concluindo que "acabaram tirando um monstro e colocando outro", disse. No dia 9, a resposta enfurecida do ex-prefeito de 1984 a 1988 é reportada em A Tribuna: "Oswaldo Justo faz críticas à opinião de  Elias", o denominando "deselegante e covarde" por atacar alguém "que já morreu". Como resposta, Elias diz que em nenhum momento atacou a honra de Assis e que, se fosse assim, ninguém poderia criticar Getúlio Vargas – o ex-ditador e presidente da República, 1930 a 1945 e 1950 a 1954.

 

O fim da intervenção

 

No dia 28 de maio, decreto põe fim à intervenção no Anchieta, revogando os decretos 863 de 3 de maio de 1989 e 1.021, de 6 de dezembro desse ano, quando o secretário era o médico Edmon Atik. Em junho, no dia 10, a notícia ainda é que os donos do Anchieta movem ação indenizatória contra a Prefeitura. Até agosto de 1999, dez anos e meio da intervenção no Anchieta, foram internadas nos manicômios do país para atendimentos psiquiátricos 276 mil pessoas, em uma média de 34 mil internações por mês, segundo informações do SUS. Nessa época, há uma tendência à unanimidade nos partidários de uma reforma psiquiátrica, em tempos que tramitava há dez anos o projeto de lei do deputado do PT mineiro Paulo Delgado nessa direção.

 

Surgiram depois diversas propostas e o ministério da Saúde já criara uma comissão para debater o tema, como mudar. Vigora ainda a lei de 1934, que permite o seqüestro de qualquer pessoa que tenha sido diagnosticada como portadora de transtorno mental, uma medida cada vez mais condenada nos meios médicos. No dia 16 de agosto de 1999, a chamada da reportagem de A Tribuna é  que o juiz da 2ª Vara da Fazenda, Márcio Kammer de Lima, decidiu que a Prefeitura  não está obrigada a indenizar os donos do Anchieta. "Caso da (sic) Anchieta gera ação indenizatória", insiste A Tribuna.  É a chamada da matéria do dia 27 de setembro em A Tribuna, que anunciava que os advogados dos herdeiros dos proprietários do Anchieta iriam recorrer ao Tribunal de Justiça, à segunda instância, para conseguir a indenização.

 

2000: a Caravana Nacional dos Direitos Humanos e a realidade manicomial brasileira. A intervenção é apenas um "incômodo"

 

Continua A Tribuna a destacar a situação do prédio do Anchieta abandonado, que se tornara um "foco de problemas", como diz a matéria do dia 21 de fevereiro, em editorial. A matéria inicia com uma frase característica da verdadeira intenção da notícia, que é criar antagonismo em relação ao ato humanitário de repercussão nacional e mundial, mas que aqui sofreu forte oposição, muitas vezes dissimulada, dos setores dominantes: "A intervenção na Casa de Saúde Anchieta em 1989 e seu posterior fechamento acabaram gerando um imenso transtorno para os moradores da Rua São Paulo e adjacências" - como se a questão de restringisse ao bairro ou à rua e não tivesse um significado institucional.

 

A notícia é repetida no dia 18 de fevereiro, como fora no dia 21 e 25 de outubro de 1999. A imprensa reporta as ações do Governo federal e de diversas entidades na Caravana Nacional dos Direitos Humanos, inspecionando manicômios.

 

Em julho de 2000, a matéria do jornal Entrevista, da Faculdade de Comunicação de Santos, traz a manchete "Trancar não é tratar" – com o subtítulo "Resgate da dignidade humana: esse fator levou os pacientes ao convívio em sociedade", na matéria de André Ferreira e Débora Encarnato. Fala da "antena paranóica", da "Rádio Pancada" e da "Fabricação da Loucura", termos da rádio Tam-Tam, historiando a atitude da intervenção e o projeto Tam-Tam e trazendo um desenho da "TV Pinel" com um boneco plantando bananeira e uma frase "Por uma sociedade sem manicômios". Uma foto da porta do Anchieta e seu letreiro, dizendo que o SENAPS – Seção de Apoio Psico-social, da Prefeitura, que assumiu o lugar do Tam-Tam, é a versão careta.

 

Uma foto de Di Renzo, outra de uma camiseta produzida e uma descrição da trajetória heróica. "Pacientes fazem arte" é a chamada da reportagem do Diário Oficial em 1º de dezembro de 2000, mostrando os frutos de um trabalho iniciado com a aplicação de terapias alternativas aos pacientes antes trancafiados, sedados e submetidos a eletrochoques.

 

A secção de reabilitação psico-social da Prefeitura, diz a matéria, está investindo cada vez mais na melhora de seus 200 usuários com trabalhos manuais, dizendo que isto "os traz de volta ao mundo" e amplia seus conhecimentos, elevando sua auto- estima  psicológica no trabalho de psicólogos, terapeutas e pacientes que avaliam e esclarecem suas dúvidas. O caminho estava certo.

 

2001: A vitória antimanicomial no país com a lei Paulo Delgado

 

Em 6 de abril de 2001 é aprovada a Lei de Reforma Psiquiátrica no Brasil, a Lei 10.216. Em 30 de maio, a notícia é da anulação da sentença de primeira instância do Anchieta em favor da Prefeitura, no Processo 7.379, que corre na 2ª Vara da fazenda desde 1997. Em 30 de outubro de 2001 A Tribuna anuncia a I Conferência Regional de Saúde Mental, dias 30 e 31 na Associação dos Médicos, preparando a Conferência estadual.

 

Ação contra a intervenção: "Ministério Público pede a improcedência", é a notícia no dia 13 de dezembro em A Tribuna. Promotor diz não ter encontrado provas para responsabilizar os ex-prefeitos Telma de Souza e David Capistrano, o então secretário Cláudio Maierovich Peçanha Henriques nem o psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, no processo 14.776/99 que transcorre na 2ª Vara da Fazenda com o juiz Márcio Kammer de Lima.

 

"Não há imoralidade ou legalidade", disse Clever Rodolfo Vasconcelos, o promotor. "No Brasil – diz Paulo Delgado à revista Ligação, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo -, os efeitos danosos da política de privatização da saúde nos anos 60 e 70 incidiram violentamente sobre a Saúde Mental, criando um parque manicomial de quase 100 mil leitos remunerados pelo setor público, além de cerca de 20 mil leitos estatais. A interrupção de crescimento desses leitos é imperativa para inicio efetivo de uma nova política, mais competente, eficaz, ética, de atendimento aos pacientes com  distúrbios mentais".

 

2002: prossegue polêmica judicial

 

"Anúncio de mudança do NAPS preocupa", é a notícia de 29 de janeiro de 2002. A decisão da Prefeitura de demolir as instalações do NAPS 1 na Zona Noroeste e transferir o atendimento para um imóvel alugado causou reação e um abaixo-assinado contra a medida. Em 3 de abril: "Justiça definirá valor do Anchieta", diz o titulo da matéria de A Tribuna. Prédio já havia sido devolvido em 1999.

 

2003: Justiça conclui que as ações contra intervenção são improcedentes. Lula destaca ação santista

 

Em maio de 2003 seria a audiência do processo contra Austregésilo Carrano, o autor do livro que resultou no filme O bicho de 7 cabeças que denunciou o sistema psiquiátrico no Paraná. A batalha continua, no espírito de 1989. Em 30 de maio A Tribuna noticia que "Imóvel passou a servir de moradia", falando do prédio do Anchieta na Rua São Paulo, trazendo o depoimento do advogado sobre o processo de indenização iniciado em 1997. no dia 9 de julho: "Ação contra Telma julgada improcedente". No Diário do Litoral, a notícia: "Lula destaca a experiência santista". Em 11 de julho, A Tribuna estampa a notícia de que "Hospital ainda tem outro processo", quando o advogado João Paulo Guimarães Silveira, defendendo a família dos proprietários do Anchieta, diz que o caso "está em fase de perícia". A matéria diz ainda do Processo 14.776/99, que acusava Telma e David e foi julgado improcedente.

 

Em 3 de outubro de 2003, o autor do livro O canto dos malditos, que deu base ao filme, venceu o processo movido pelos denunciados que o prenderam e maltrataram no hospício, no maior sucesso de premiações do país. Sua sentença foi proferida a 15 de outubro. Era uma vitória do Movimento Antimanicomial Brasileiro. Em maio de 2003, o presidente Lula lança o programa De volta para casa, o projeto de lei que cria o auxilio reabilitação psico-social para esvaziar os manicômios. Era a vitória da cidade que plantou a idéia de uma nova sociedade. O Jornal do Brasil de 29 de maio de 2003, com a chamada "Governo lança política para a Saúde Mental", escreve que segundo o Ministério da Saúde, um terço dos 55 mil internados em hospitais psiquiátricos no Brasil não necessitam de internação, cerca de 18 mil pacientes. Na verdade, 100% dos pacientes não necessitam de grades, mas de tratamento.

 

2004: Iniciativa santista indica ação nacional para extinção dos manicômios. O balanço da blitz nos manicômios brasileiros

 

"Ministério da Saúde quer reduzir número de leitos psiquiátricos no país", ampliando a rede extra-hospitalar, é a notícia de A Tribuna, mostrando as razões da atitude de 15 anos antes, agora disseminada por todo o país e cientificamente confirmada e aplicada: a extinção dos manicômios é uma meta. "Dois pacientes por dia são levados para Itapira", diz a médica Carolina Ozawa, da SEHIG, no Diário Oficial, também em 6 de fevereiro de 2004. A assessoria de imprensa informa que até 2002 passaram mais de 16 mil pacientes pelos NAPS. Nos dias 18, 19 de fevereiro e 12 de março é a notícia que o Lar Abrigo mudou-se para a praça Washington, consolidando a criação do governo democrático-popular na intervenção.

 

Dos 18 pacientes, 13 são remanescentes do Anchieta, que agora vão poder passear à beira-mar, que tem um extraordinário poder de recuperação. Em 4 de março de 2004, A Tribuna escreve que Dulce Edie dos Santos e Geraldo Peixoto, antigo diretor da Fundação Franco Rottelli, estão denunciando o CAPS Saquaré, em São Vicente, que tem 1.600 pessoas cadastradas e está em condições "precaríssimas".

 

A Tribuna publica no dia 19 que os usuários do programa de Saúde Mental foram levados a um passeio no Centro Histórico, quando 50 pacientes repetiram a experiência inédita de 1989, tão duramente contestada, mas levada adiante.  Maio, 21, 26 e 28 de 2004: "Saúde Mental, balé emociona pacientes". São as comemorações do Mês da Luta Antimanicomial, com coreografia de Renata Pacheco no espetáculo O Jardim Encantado.

 

O que foi motivo de batalha é agora é de comemoração, em promoção da Secretaria de Saúde do governo municipal. No dia 18, o pequeno editorial do jornal Folha de São Paulo escreve sobre o enterramento definitivo das teses que obrigavam a internação dos pacientes. Apesar dos avanços da psico-farmacologia não serem absolutos, escreve o texto, "grande parte dos pacientes psiquiátricos não precisa passar a vida em um leito de manicômio".

 

Era uma expressão nacional da imprensa, que valorizava o atendimento ambulatorial, a volta para as famílias, as residências terapêuticas, defendendo estruturas mais humanas de atendimento. É o enterro dos defensores do passado.

 

Mas o texto, apesar de lembrar que o projeto do Governo federal contempla estes aspectos, cobra sua plenitude e lamenta o adiamento por 120 dias das exigências para a redução dos leitos psiquiátricos nos 25 Estados. É a saudável cobrança de um futuro melhor para tantos, que nasceu aqui, sem os exemplos de uma sociedade cruel que transporta seus valores para dentro do manicômio.

 

Em setembro de 2004, o psiquiatra Domingos Stamato assumiu a psiquiatria da Beneficência Portuguesa em Santos, no rumo de novos tempos.