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A
CARAVANA NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
uma
visão dos manicômios no Brasil de hoje
Realizada pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos em 2000, a Caravana Nacional dos Direitos
Humanos percorreu - levando deputados e médicos por 12 dias, comandados pelo Coordenador Nacional de Saúde Mental Pedro Delgado, junto com os
deputados Paulo Delgado e Marcos Rolim e profissionais de Saúde Mental - os principais manicômios brasileiros, baseados nas denúncias recebidas.
O relatório apresentado é uma obra-prima que descreve a tragédia a que (ainda) estão submetidos
milhares de cidadãos brasileiros em diversos Estados. Por exemplo, em Goiânia (Goiás), em que a prática de neurocirurgias era unanimidade, como na
Clínica Bom Jesus – em que os eletrochoques eram práticas usuais, junto com repressão e excesso de remédios.
Era também a realidade da Cínica Isabela, naquela cidade. Longas internações, pacientes cronificados.
Em Manaus, Amazonas, era a realidade do Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. O Manicômio Judiciário de Manaus, apesar de ostentar a palavra
"tratamento" no titulo, não o oferecia, era a realidade do Centro de Custódia e Tratamento Psiquiátrico naquela capital do Amazonas, com pacientes
em condições de miséria e maus-tratos com um único psicólogo, o diretor. A situação foi classificada como "gravíssima".
Em Pernambuco, 4 instituições foram visitadas. Superlotada, no Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico de Itamaracá e os pacientes não têm qualquer tratamento. Foi sugerida interdição imediata, face às condições de precariedade humana que
se encontravam os 336 internos. No município de Paulista, o Hospital Psiquiátrico do Paulista S/A, uma clínica privada, conveniada com o SUS, foi
observada a ausência de motivos para internação da maioria dos que estavam ali, empurrados para lá pela miséria. Um dos mais antigos
hospitais deste Estado é o Ulysses Pernambucano, localizado no bairro nobre da Tamarineira, com 208 pacientes – mais abandono.
Também em Pernambuco o Hospital Alberto Maia, em Camaragibe, com mil leitos, 99% sustentados pelo SUS.
A visão foi positiva, apesar das deficiências. Na Bahia, o Hospital Colônia Lopes Rodrigues, em Feira de Santana com mais de mil pacientes sem
projetos de ressocialização. A Clínica São Paulo foi chamada, no relatório, de O calabouço de Salvador, com instalações terríveis e ausência
de qualquer serviço aos pacientes. No Rio de Janeiro, foi vistoriada a Clinica de Amendoeiras, em Jacarepaguá, com 140 pacientes, chamada a primeira
boa surpresa da Caravana.
Foi ainda visitada no RJ a Clínica da Gávea, com 318 internos, onde foram ouvidas queixas de
maus-tratos, ausência de terapias, más instalações e abandono. "Um manicômio típico, em síntese", diz o relatório. E em Minas Gerais, na Clínica
Pinel, com 240 internos e tentativas de impedir a entrada dos inspetores, como em outros hospitais. Maus-tratos. Na Clinica Serra Verde, também em
Minas Gerais, em que maus-tratos se misturam às más condições de vida dos internos e um comando autoritário da instituição. Já na Clínica da
Mantiqueira, em Barbacena, com 229 leitos, 218 pelo SUS, existia um trabalho de ressocialização. Também em Barbacena, a Clínica Xavier, com 120
leitos, pacientes cronificados em longas internações. E em São Paulo o Juquery, "a realidade do abandono", classifica o relatório, situado em Franco
da Rocha – com 1.500 internos com intensa repressão, pacientes confinados.
No Manicômio Judiciário de Barbacena, que aloja 621 pessoas em 400 vagas, a situação só seria pior se
não houvesse um local para "alta progressiva" dos internos. E em Taubaté, outro Manicômio Judiciário, com 404 internos confinados em celas fechadas.
Os presos, como em muitos destes hospícios, sofrem a pena acrescida e não estipulada em lei que lhes impõe a negação da prática da sexualidade, com
seus resultados conhecidos. "Fim da tortura humana", gritava um paciente à saída dos inspetores.
Diante da barbárie existente ainda 11 anos após o Anchieta, em 2000, as sugestões encaminhadas por
este relatório ao Ministério da Saúde foram cumpridas em parte: a Reforma Psiquiátrica foi aprovada no ano seguinte, como pediam os subscritores; a
III Conferência de Saúde Mental está sendo convocada; a auditoria nos hospícios é uma meta. O desenvolvimento de políticas que desestimulem as
internações psiquiátricas foi cumprida com o programa De volta para casa, assim como a atenção às famílias dos pacientes.
Hipermedicalização e eletrochoque, a violência
O fortalecimento dos serviços alternativos (CAPS e NAPS) e um levantamento sobre o consumo de
medicamentos, para evitar os abusos, foram medidas sugeridas. A regulamentação e a fiscalização rigorosa do eletrochoque, restringindo-a. Lares
abrigados, fim do preconceito, campanhas. Separação dos dependentes químicos, proibição das neurocirurgias, imposição de normas para concepção
prisional e asilar sob pena de descredenciamento. Que as clínicas visitadas sejam as primeiras a serem vistoriadas, com seu possível rebaixamento. A
interdição imediata da Clinica São Paulo. Que o Ministério da Saúde, em ação conjunta com os estados, elabore um diagnóstico preciso sobre a
realidade dos manicômios Judiciários brasileiros, foram as principais reivindicações da Caravana.
Junho, 2000, dia 30: a Folha de São Paulo mostra reportagem no Cotidiano que, segundo
relatórios de deputados entregue ao ministro José Serra, pelo menos 6.366 pessoas passam por maus-tratos: "Câmara aponta crise em manicômios". Em
reportagem de Soraya Agége, a matéria fala em "cirurgias cerebrais, eletrochoque, maus-tratos, isolamentos em locais insalubres ou abusos
medicamentosos são os tratamentos (grifo original) a que 6.366 pessoas estão sendo submetidas em pelo menos 19 hospitais públicos,
particulares e judiciários, existentes em sete estados brasileiros" - em informações levantadas nos últimos dez dias pela Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados. Foi o resultado de uma blitz feita em 20 dos 100 hospitais denunciados pelas entidades civis nas duas
últimas semanas.
Gastos com a indústria psiquiátrica
Consumindo 11% das verbas do SUS, a segunda depois dos partos, fora gastos R$ 467 milhões com estas
internações em 1999, 71.800 pessoas em 260 hospitais psiquiátricos que são, para o deputado Marcos Rolim, "campos de concentração", "uma década
depois do país iniciar diversos projetos para humanização e extinção dos manicômios criados para funcionar como depósito de pessoas indesejáveis no
final do século passado (XIX)". Os deputados pediram a interdição de um hospital em Salvador (Clinica São Paulo) e de Itamaracá, em Pernambuco
(Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Itamaracá). A aplicação de neurocirurgias, com efeito semelhante às lobotomias, mais a aplicação
de eletrochoque, revoltou os deputados.
Na Clínica Bom Jesus de Goiânia foram verificados casos de 5 neurocirurgias em um ano. Um doente teve
alta mas, como não foi retirado pelos familiares, foi aplicada nele uma neurocirurgia, o que destaca a falta de parâmetros para essa violência. O
paciente passou a lamber o chão, completamente idiotizado, como resultado que já apontara há 60 anos a psiquiatra Nise da Silveira. O Juquery ainda
abriga 1.400 internos. Desses, 125 vivem entre a sujeira e quartos com 30 colegas e disputam 1 psiquiatra e 11 funcionários por turno.
Era o quadro nacional em que 12,5 mil doentes crônicos brasileiros foram abandonados pela família e
ficaram debilitados por continuas aplicações de eletrochoque, revela a reportagem da Folha. Sem obrigação de manter prontuários clínicos, o
texto diz da proibição das celas-fortes de 92/93, tendo os hospitais caído de 313 para 260 e os leitos de 86 para 62 mil, tendo sido liberados R$
33,7 milhões para compra de remédios para o setor – para alegria dos empresários da loucura.
Nova caravana em 2004
No dia 16 de agosto de 2004, os presidentes da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, José
Edísio Simões Couto e do Conselho Federal de Psicologia, Marcus Vinícius de Oliveira, apresentam na sede da OAB o balanço da blitz efetuada
em 38 hospitais psiquiátricos de 16 estados e Distrito federal. Para Edísio, "saúde no Brasil é coisa de louco", diz no Espaço Vital, um
saite de notícias jurídicas que fala de pacientes que vivem nus, doentes mentais tratados como presidiários.
Hospitais sem plantão médico nos fins-de-semana, falta de terapeutas ocupacionais e de medicamentos
indispensáveis ao tratamento de doenças mentais. Atendimento apenas medicamentoso no Hospital Espírita no Rio Grande do Sul e no Instituto
Psiquiátrico Forense, também em Porto Alegre, visitado em 22 de julho, foi definido como "local que une as piores características de um presídio com
as piores de um manicômio – precariedade, sujeira, falta de higiene, lixo, insetos, fezes pelas paredes. Infiltração e umidade, falta de pessoal
para cuidar de seus 540 internos com Medidas de Segurança. Pacientes crônicos estão lá há mais de 20 anos. Celas fortes em pleno funcionamento.
A inspeção nacional de unidades psiquiátricas, em prol dos direitos humanos
Realizada em 16 estados brasileiros e no Distrito Federal em 22 de julho de 2004, esta ação do
Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional de Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos, criado em 2003, começou a mexer em uma antiga
caixa-preta, já tendo avaliado 168 hospitais psiquiátricos, dos mais de 200 existentes. Apenas 15% deles prestam atendimento adequado.
Por conta disso, dez hospitais foram fechados, revelando a caminhada da ação pelo resgate dos cidadãos
acometidos de transtornos mentais no país. Preocupação de poucos - a Inverso, uma ONG do setor, cita Delgado e Gabeira como alguns dos únicos
deputados "que se preocupam com a questão" -, doentes mentais são considerados estorvo, uma aberração da espécie humana que deve ser largada em um
hospital. E o Brasil é referência no setor desde Nise da Silveira nos anos 30. É o que diz o Jornal da Comunidade no Distrito Federal,
noticiando a blitz nos hospitais psiquiátricos.
"São milhares de brasileiros presos com o pretexto de serem tratados. Muitos estão há anos
aguardando a liberdade", escreve a abertura do Relatório de Inspeção do Ministério da Saúde. "Outros encontram a morte
ali". "Se a privação de liberdade não pode ser entendida como método de tratamento, segue o documento, e, portanto,
estas instituições já deveriam ter tido seu fim anunciado, nada justifica a degradação e a violação dos Direitos Humanos que continuam a acontecer
nos hospitais psiquiátricos. Infelizmente, o desrespeito ao ser humano tem sido mais uma regra do que uma exceção a grandeza desta iniciativa do
Conselho Federal de Psicologia e da Ordem dos Advogados do Brasil - a Inspeção Nacional de Unidades Psiquiátricas em prol dos Direitos Humanos -
vem, mais uma vez, romper com este pacto que os hospícios tentam impor à sociedade. Parabéns a todos os que participaram desta inspeção. Brasil sem
manicômios, já! – Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial".
Pelo Conselho Federal de Psicologia participaram da organização dessa inspeção Marcus Vinicius de
Oliveira Silva, Ana Luiz de Souza Castro e Yvone Magalhães Duarte e pela Ordem dos Advogados do Brasil/Comissão de Direitos Humanos, José Edísio
Simões Couto.
Em São Paulo, na Clínica Psiquiátrica Charcot, visitada em 22 de julho de 2004, com 200 leitos, foram
encontradas amarras, miséria e ociosidade, pacientes desnutridos, tuberculosos e outras doenças estão presentes. Sem projetos de assistência aos
familiares, sem atividades ocupacionais, estrutura física e higiene precárias, impregnação medicamentosa na maioria, magros e débeis, mal-vestidos e
de roupas rasgadas com pés descalços, sem agasalhos e desdentada. O quadro é caótico.
Por Ela, Procuradora da República, a responsabilidade do Estado
A sub-procuradora da República Ela Viecko Volkmer de Castilho, da
Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão, na apresentação do Relatório de Inspeção, lembra que "temos assistido à deterioração de um sistema que
nunca foi perfeito, sobretudo pelo fato da sociedade preferir esconder o problema a enfrentá-lo. Para ela, é uma chaga aberta esta questão,
que "ofende os princípios humanistas mais comezinhos. Trata-se de uma parcela da população que muitas vezes é abandonada à própria sorte por suas
famílias. Todavia, esse fato não deveria nos assombrar, afinal vivemos em uma sociedade em cuja base reina a crise nas relações familiares, a
privação da educação e a ignorância de noções básicas de cidadania; seria duro não reconhecer o pragmatismo duro que rege as relações privadas entre
pessoas cuja única preocupação é o próximo prato de comida", escreve.
"O Estado que mantém esta situação viola a lei", diz Ela. Os
dados "rechaçam nossas ilusões quanto a eficiência do nosso o sistema democrático", reafirma. Citando um professor estrangeiro "importante",
destaca, lembra que a Democracia é uma forma de Estado cuja ética política não admite a exclusão. Legitima-se – ressalta – a partir do modo pelo
qual ela trata as pessoas em seu território.
"Devemos apreciar este Relatório, segue Ela, para dizer com
todas as letras que "não temos feito nosso trabalho. Portanto, completa, este é o momento do Estado, por meio de seus agentes com poder de
decisão, responder à demanda que se apresenta, não porque parcelas significativas do povo a apresentem, afinal estamos falando de pessoas sem voz,
mas com o objetivo de concretizar o projeto de nação solidária que a Constituição de 1988 nos oferece", concluiu.
Achar que a luta está pronta e acabada é um erro e se defronta, como
vimos, como sempre em todas as revoluções, sobre se a conquista está efetivada ou ainda não - apesar de todas as vitórias. Ainda em 2004, 15
anos depois do Anchieta, o relatório da Caravana de Direitos Humanos mostra que esta realidade não foi modificada.
A Casa de Saúde Doutor Eiras, em Pacambi, no Rio de Janeiro, está sob
intervenção municipal desde o dia 18 de junho de 2004. Em Recife, uma auditoria em hospitais psiquiátricos denunciou os horrores que ainda existem,
apesar de tantas normas legais. Em Santa Catarina, um francês incompreendido e preso entre pacientes com HIV, 520 leitos. É o hospital psiquiátrico
de Santa Catarina, em que um paciente morreu afogado recentemente tentando fugir. Mais dez intervenções são anunciadas em agosto, em nova inspeção
do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Psicologia. |