Um simples pedaço de terra, limitado pela natureza,
encravado entre a serra imponente e o mar misterioso. Mas o destino dos homens não obedece a nenhuma regra lógica, e nada poderia impedir o
surgimento de um povoado naquele trecho de ilha. Aquele
verdadeiro paraíso tropical haveria de atravessar os séculos crescendo, forjando uma raça de homens de bem. Afinal, os habitantes da vila que se
formava já estavam com a alma temperada, o gosto amargo das batalhas contra hordas de corsários e legiões de índios misturando-se ao calor do
aguardente. Sim, haveria de ter um belo futuro aquela terra, desde já abençoada por todos os santos.
Logo, apenas canoas estariam deslizando pela calmaria do estuário. Remando forte,
os canoeiros chegariam ao pequeno ancoradouro interno existente entre o Monte Serrate, o Ribeirão dos Jerônimos e o Outeiro de Santa Catarina.
Ao mesmo tempo, pelo Caminho Velho de São Vicente, após desembarcarem nas terras de
Pascoal Fernandes e Domingos Pires, virão os lavradores da Ilha dos Porcos (Barnabé), das encostas da Serra, da Ilha de Santo Amaro e dos vales dos
rios Diana e Jurubatuba, trazendo os feixes de cana-de-açúcar que os canoeiros levarão para longe.
Uma vocação portuária, desde já, impulsionada pelo fator econômico da produção
agrícola. Os homens eram rudes de corpo e de pensamento, atributos necessários para vencer as dificuldades do meio que os cercavam. Mas sabiam eles
que com esforço e coragem construiriam um bom lugar para se viver, ali mesmo, na extremidade nordeste da Ilha de São Vicente. E assim nasceu Santos.
Construíram-se as cabanas, as vilas, o povoado, uma cidade, uma região, até que
todos os espaços estivessem definitivamente ocupados. No lugar do mangue, ruas, avenidas, elevados. Sobre as areias úmidas, edifícios de grande
porte. E estradas para levar o homem ao mundo exterior.
É esta a história que vamos contar: como ocorreu a ocupação da Baixada Santista, os
fatores econômicos que causaram as grandes transformações e chegando até a dúvida maior, necessária: alcançamos o tão esperado desenvolvimento?
Prepare-se: a aventura vai começar.
Santos já foi bem diferente, sem a muralha de prédios de hoje. ...
Assim ocupamos esta ilha
(Veja o que fizemos com ela)
Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo A Tribuna
I - A INOCÊNCIA, O CAFÉ E A EUFORIA
Feche os olhos devagar, ultrapasse seus próprios sonhos, viaje pelo tempo e embarque
no passado. Vamos seguir agora em busca das origens deste povo que vive na beira do mar.
Estamos em 1850, em terras santistas. A população concentra-se basicamente no Centro
da Cidade e arredores, e em cada cabeça há um sentimento de ansiedade, uma expectativa. Os tempos modernos estão chegando, comentam os distintos
senhores reunidos na praça, enquanto observam o andar arrastado dos escravos. As quitandeiras, paradas junto aos tabuleiros com lanternas
lampejantes, oferecem guloseimas variadas.
A noite guarda seus segredos: sob a luz dos lampiões a óleo de peixe (que existiam
desde 1810), rapazes enamorados tramam fugas espetaculares com suas jovens amadas, enquanto os escravos rebeldes procuram abrigo no Quilombo do
Jabaquara. E a bruxa misteriosa, que vive escondida na Pedra da Feiticeira, ali onde hoje fica a Rua Tiro Naval, assusta quem lhe surgir pela
frente.
(Conta Olao Rodrigues, na Cartilha da História de Santos, que naquela época a
Cidade era bem reduzida, com caminhos simples e algumas chácaras. É ainda o mesmo mato que Braz Cubas encontrou quando aqui aportou com suas
caravelas).
Lá se vão os carregadores em direção aos vários trapiches de madeira, sacos nas costas
e tamancos nos pés. Já não transportam mais tantas arrobas de açúcar como antes: agora, os pesados fardos contêm o precioso e cada vez mais
valorizado café.
Observemos agora um exemplar da Revista Commercial,
que desde o dia 2 de setembro de 1948 (N.E. a data correta é 2/9/1849) é editada por
sistema tipográfico (e não mais manuscrito), sob o comando do vigoroso fundador e redator, o doutor Guilherme Délius. E ficaremos sabendo que já era
sentida a necessidade de melhores condições para o escoamento do café.
Eram tempos de muitas idéias. Ainda ecoava nos ouvidos o grito do Ipiranga (que por
muito pouco não aconteceu exatamente aqui, em Santos), assim como os versos de Gonçalves Dias, na Canção dos Tamoios:
"A vida é luta renhida
Viver é lutar.
A vida é combate
Que os fracos abate
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar".
Porto de Santos próximo à Alfândega, em foto de Militão Augusto
de Azevedo
(albúmen com 10,8 x 17,0 cm, Acervo Instituto Moreira Salles)
Imagem reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de Militão Augusto de
Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004
... A começar pelos antigos trapiches, substituídos depois pelo Porto...
II - O BARÃO, A FERROVIA MULTINACIONAL E UM CONCERTO NA PRAÇA
Vamos um passo além, depressa: a cabeça cheia de idéias, o olhar no futuro, o Barão de
Mauá promove os estudos para a construção de uma ferrovia entre Santos e São Paulo. O projeto ficou pronto em 1859, mas algumas coisas parece que
não mudam nunca: o barão não conseguiu transformá-lo em realidade por absoluta falta de recursos.
Vamos ouvir a história pelas palavras de Araújo Filho: "Daí haver o próprio Mauá,
então muito bem relacionado nos meios econômicos europeus, principalmente na Inglaterra, entrado em contato com os fortes banqueiros Rotschild &
Irmãos, de Londres, cedendo-lhes o direito de exploração da projetada ferrovia, passando assim para a mão dos ingleses a responsabilidade da sua
construção".
Evidente: estamos assistindo ao início do processo de desenvolvimento que iria
canalizar todo o crescimento da Baixada Santista. Com indisfarçável orgulho, o ilustre engenheiro Mackenson Fox entrega, exatamente no dia 16 de
fevereiro de 1867 (oito anos após as obras terem começado), os 139 quilômetros de trilhos, atravessando a Serra do Vale do Mogi, por intermédio de
um moderno sistema de tração funicular. Surge a primeira estrada de ferro paulista, a imponente São Paulo Railway!
O trem de ferro começa a engolir carvão, facilitando a crescente exportação de café,
que atingia números surpreendentes e gerava muitos sonhos de riqueza (em 1854/55, época em que ultrapassou o açúcar, já alcançava o significativo
total de 773.982 arrobas embarcadas em Santos). A necessidade de criação de uma infra-estrutura portuária marca assim a efetiva ocupação do setor
Nordeste da Ilha de São Vicente.
Correndo um pouco, podemos ver, em 1869, o trem chegando à Estação do Valongo, único
prédio de Santos em estilo vitoriano. E dele descer o afamado compositor e pianista norte-americano Luís Moreau Gottschalk, que no dia 3 de setembro
deliciaria a seleta platéia com um concerto no teatro do jardim público, no Largo da Coroação (Conhece? Sim, é a nossa velha Praça Mauá...).
Costa e Silva Sobrinho registraria que o local era péssimo para um evento cultural
daquele nível, mas não havia outro.
A varíola e o escorbuto ainda faziam muitas vítimas entre a desprotegida população.
Mas, para compensar, a economia ia muito bem, obrigado.
O desenvolvimento da produção agrícola no Interior do Estado é marcante e o País
continua vivendo praticamente da exportação daquilo que, em se plantando, dava.
Com o café, está em marcha um processo que transformaria Santos por completo: o
município ganha ares e feições de cidade grande, rica e importante.
Cena de carnaval em 1906 na Rua XV de Novembro
... ou a Rua XV dos bons tempos dos comissários do café...
III - OS PALACETES, O FANTASMA DO PAQUETÁ E A CRISE MUNDIAL
Desde 1850, Santos está sendo sucessivamente ocupada. Um novo século está nascendo e
nos corações dos homens há a euforia, tanto pelo crescimento da Cidade como pelo rico dinheirinho que enche os bolsos dos paletós de linho branco.
Surge toda uma infra-estrutura de serviços ligados ao café, principalmente os comissários, e ao Porto.
Na orla, surge a primeira divisão, com o domínio das chácaras de fim de semana dos
comissários, os importantes homens de negócio que moravam no Paquetá e na Vila Nova.
As epidemias começavam a ser derrotadas, pelo esforço dos sanitaristas Saturnino de
Brito e José Rebouças, incluindo os canais de drenagem (a partir de 1907) e a própria construção do porto pela Companhia Docas. Vamos ler A
Tribuna: "Na Avenida Ana Costa, deu-se a inauguração da iluminação pública por eletricidade. As lâmpadas estão colocadas a uma distância de 50
metros, no percurso do ponto de bondes da Vila Matias à Rua Carvalho de Mendonça. A experiência deu ótimo resultado" (15 de agosto de 1903).
1910: enquanto as Casas Colombo promovem concorrida liquidação e o Cruzador
Adamastor, de bandeira portuguesa, está no porto, inicia-se o loteamento da orla de Santos. As residências de paulistas se impõem,
multiplicam-se ricos palacetes, verdadeiras réplicas das mansões existentes na Avenida Angélica, em São Paulo. Tempos aristocráticos, aqueles, em
que os lucros eram fáceis. E os sustos também.
À meia-noite, surgia um fantasma no portão do Cemitério do Paquetá, andava para um
lado e para outro, por meia hora, e desaparecia em direção à Rua Bittencourt. A polícia foi convidada a desvendar o mistério, mas a tal alma penada
não apareceu, e os milicianos acabaram mesmo dispersando os curiosos com "excesso de vitalidade". A imprensa protestou.
Os palacetes imperaram na orla até 1930. Um ano antes, a quebra da Bolsa de Nova
Iorque provocou a crise mundial, a recessão, como anuncia o combativo Diário de Santos. Tanto os lusitanos que trabalham no cais quanto os
elegantes senhores em ternos de casimira inglesa estão alarmados. A queda do império estava mais próxima do que se poderia esperar.
A diminuição da capacidade de importar bens de consumo leva o Governo a adotar medidas
de estímulo à indústria nacional, através de proibições à importação de diversos produtos. E o decréscimo dos preços internacionais do café provoca
a transferência de recursos financeiros - capitais que, vindos da atividade agrícola, passaram a ser aplicados na indústria.
Santos foi duramente atingida, pois tinha no Porto a sua principal atividade. O homem
sente então que toda as coisas passam, nada é imutável. Nem os sonhos de riqueza.
Bairro do Gonzaga, meados do século XX
... e ainda do Gonzaga com espaços livres e desocupados e...
IV - AS CHAMINÉS, O LAZER DA BURGUESIA E A RODOVIA
- "É o demônio que faz essas coisas!"
- "Que nada, é o progresso mesmo..."
Vencendo a Serra, no Planalto, podemos ver que as chaminés estão surgindo em vários
pontos, as pequenas indústrias caseiras dos imigrantes italianos transformam-se. A metrópole está preocupada demais em desenvolver a sua indústria.
A máquina chegou, para ficar.
Até 1940, o processo de industrialização vai ser impulsionado, mudando a face da
economia brasileira. Cria-se uma nova classe, a burguesia industrial, que agora acumula um considerável capital e começa a ter novos hábitos, novas
exigências.
Uma destas exigências terá ligação direta com Santos: o lazer. A luta pelo poder agora
depende da sagacidade, da esperteza, da ousadia dos negócios, e não mais das lavouras cafeeiras.
Em 1930, a orla de Santos está tomada pelos palacetes. Com a crise do café, estes
imóveis sofisticados caem em desuso, são substituídos por pensões. Entre 1939 e o fim da Segunda Guerra Mundial, os palacetes dos "barões" do café
perdem até seu valor.
E o mundo perdia definitivamente sua inocência.
Havia uma guerra, dividindo o mundo entre os bons e os maus, a eterna preocupação do
homem. Havia, no Brasil, o Estado Novo e o início de lutas sindicais. O Partido Comunista na clandestinidade, e a dominação crescente das
indústrias.
Mas ainda não vimos tudo a que temos direito. Ouça o barulho, levante os olhos para os
céus, veja o colorido dos fogos de artifício. Precisamente no dia 9 de julho de 1947, está sendo inaugurada a Via Anchieta, uma moderna rodovia
ligando o Planalto à Baixada. Agora, nada poderá deter os turistas, com suas baratinhas e automóveis importados, descendo a Serra nos fins de
semana, em busca da tranqüilidade das praias.
Nesta altura, ainda eram visíveis os espaços abertos em Santos. Muita terra ainda não
ocupada, muito ar para se respirar sem constrangimentos, muito a se construir. Surge um novo tipo de atividade, a indústria da construção civil,
aproveitando-se dos capitais saídos do comércio de café. Jamais verás terra como esta: o concreto começa a ser despejado com velocidade só
compatível com a ganância por grandes lucros.
Em 1950, existiam em Santos apenas três ou quatro prédios, na orla. Em 1955, como
descobriu em sua detalhada pesquisa a professora Odete Seabra, os prédios eram 157. Claro, não havia tempo a perder, era preciso aproveitar - e bem
- as necessidades da burguesia industrial. E os antigos palacetes dos comissários de café são demolidos, para dar lugar aos arranha-céus, dentro de
um processo de substituição que só iria terminar em 1964.
V - A INDÚSTRIA PESADA, OS NORDESTINOS E SEJA O QUE DEUS QUISER...
Era preciso gastar menos, havia muito a desbravar neste País que procurava um lugar ao
sol. E vieram as restrições à importação de artigos menos essenciais, medida que estimulou a produção interna e criou condições de reserva de
divisas. Estava dado o sinal para o grande impulso: a expansão da produção de bens intermediários, como a siderurgia, o petróleo, o cimento, a
borracha, o fertilizante, o vidro, o papel. O País entra na era risonha do desenvolvimento, e surge a indústria automobilística, com a invasão do
capital estrangeiro.
Em 1955, é implantada em Cubatão a Refinaria Presidente Bernardes. Preparem-se todos:
tem início o fluxo migratório das populações nordestinas para a Baixada Santista, a Cosipa começa a ser construída, e os espaços disponíveis
tornam-se escassos. A orla já transformara-se em domínio absoluto da burguesia industrial, enquanto a população santista começa a aproximar-se,
ocupando áreas vizinhas, como que reivindicando também o seu lugar junto ao mar.
Os nordestinos, atraídos pela oferta de trabalho do parque industrial de Cubatão,
começam a escalar os morros santistas inicialmente, antes ocupados principalmente pelos portugueses da Ilha da Madeira, já acostumados a viverem
pertinho do céu.
A ilha já estava praticamente saturada, restavam alguns espaços na Ponta da Praia. A
queda dos morros, em 1956, acentua a tendência de procurar novas áreas para fixação dessa população operária e sem recursos para enfrentar os
altíssimos preços da terra.
As opções eram os mangues, a periferia de São Vicente, os diques, a Zona Noroeste de
Santos. E principalmente, Vicente de Carvalho.
Um verdadeiro Deus nos acuda, os invasores chegaram. E chegaram para ficar, em
qualquer lugar em que fosse possível erguer um tosco barraco de madeira, sem as mínimas condições de habitação. O que, aliás, continua ocorrendo até
hoje.
Vamos dar um vôo panorâmico, de reconhecimento: a orla de Guarujá já está sob os
domínios da alta burguesia industrial (que estava fugindo de Santos), o Porto passa a exportar produtos agrícolas e importar insumos para as
indústrias de Cubatão, a construção civil pára de operar em Santos em 1964 e desloca-se também para Guarujá (que assim torna-se a terceira cidade do
País em expansão imobiliária), a terra está bem valorizada em toda a ilha, vem a Revolução e a expulsão gradativa das populações de baixa renda. E a
poluição sai das chaminés de Cubatão para transformar-se no maior fantasma da região, em todos os tempos.
O futuro já chegou.
Gonzaga, em cartão postal do início do século XX
......que logo transformar-se-ia no Centro nervoso
VI - A FUGA DOS RISCOS, A CIDADE DO SILÊNCIO E O ACESSO AOS BENS
Uma longa tradição de lutas e reivindicações - para os donos do poder, "apenas
agitação" - foi repentinamente apagada: Santos perde sua autonomia, sua liberdade, sua identidade, seu direito de respirar. Transforma-se na cidade
do silêncio, e seus habitantes perdem o ânimo, a força. As lideranças e o "porto vermelho" são igualmente silenciados. O tempo parou, os homens são
obrigados a sufocar a herança que carregam na alma, a herança dos canoeiros, daqueles que lutaram contra os piratas, daqueles que contribuíram para
a independência, como os irmãos Andrada.
E veio a década de 70.
Voltamos da nossa viagem. Contemple agora, aqui do alto do Monte Serrate, o que sobrou
do antigo paraíso tropical. Veja a muralha de edifícios na orla, impedindo a circulação do ar. Perceba que não existem mais peixes e que a poluição
foi institucionalizada. Olhe ao redor e sinta como aumentaram as favelas e a insegurança dos casebres nas encostas dos morros. Crescemos, você pode
ver, mas desordenadamente.
Não respire fundo, não há garantias de sobrevivência.
O que fazer?
Estamos em um bom lugar para se viver? A qualidade de vida está caindo? Ainda há tempo
para planejarmos um futuro melhor?
Vamos esperar pelas respostas, amanhã. |