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Santistas, nas barrancas do Paranapanema [03]

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Livro de Santos Amorim, lançado em novembro de 1932, relata a participação de um batalhão santista na Revolução Constitucionalista daquele ano:
No quartel do 4º B.C., em Sant'Anna

Chegados à Luz, depois de ligeiro descanso, partimos a pé para o Quartel do 4º B.C. No alto de Sant'Anna.

Foi uma viagem extenuante. De quase duas horas. A rapaziada, quase todos nós sem treino necessário para marcha tão longa, levou desse modo uma esfrega nada agradável. Mas agüentou firme. Ninguém ficou na retaguarda. A primeira prova de resistência física, sob uma soalheira sufocante, estava dada. E com galhardia.

Mesmo o sargento Lage, com os seus quase duzentos quilos, não afrouxou.

Nós já começávamos a ser heróis...

***

No Quartel - que estava desguarnecido de forças - nos acomodamos de maneira mais ou menos apreciável. Tínhamos camas para dormir. O rancho não era dos piores. Água havia em abundância. Mas as pulgas eram terríveis. Gulosas de sangue humano. Não nos davam tréguas. A noite, nós a passávamos em claro. Durante o dia era-nos impossível conciliar o sono. As pulgas nos deixavam em paz. Mas a gritaria dos voluntários era infernal.

Só quem lá esteve pode ajuizar do enorme alarido que fazem, por qualquer motivo ou sem motivo nenhum, quase cinco centenas de moços no vigor da idade. Na pujança da vida.

É um quadro de difícil reprodução. Agora, é um que berra, lá no canto, o meu nome:

- Santos Amorim!

Eu o atendo. Porque não sei do que se trata. Mas vejo logo que é pilhéria. Ele me diz:

- Chamam-te ao telefone.

Fico irritado com a brincadeira. Berro também para dizer coisas feias. Que eu não diria na vida pública. Mas digo-as sempre. Quantas vezes me chamam!

E isso me prejudica, porque tomam-me, de vez, para vítima. Dão-me uma corda tremenda. Que não tem fim.

Acabo também por imitar os outros. É a única defesa. O único recurso. Ambiento-me. Deixo de ser vítima. Para me transformar em algoz.

Quando percebo que o Bilú vai ferrar no sono, chamo, a plenos pulmões: - Virgílio Pinto de Oliveira!

Ele, esfregando os olhos, volta-se, preguiçosamente, para perguntar-me:

- Que é?

Respondo-lhe, de golpe:

- É o telefone...

E levo ambas as mãos às oiças, tapando-as, para não ouvir a torrente de impropérios que me são dirigidos...

Cenas iguais a essa, repetem-se pela noite a dentro. Envolvendo dezenas e dezenas de rapazes. Uns que perturbam o silêncio, deliberadamente. Outros que fazem barulho para exigir silêncio...

E não se dorme nunca. A carcaça, moída, pede repouso. Mas não há comiseração. A balbúrdia domina.

***

Ficamos, assim, pelo espaço de oito dias, no Quartel do 4º B.C.

Durante esse tempo recebíamos instrução militar. Com as mãos vazias. De corpo livre... Armamento não existia ainda. A ordem era marchar. Marchar sempre para desenferrujar os tornozelos. E adestrar os músculos. Todas as manhãs fazíamos excursões pelas vizinhanças de Sant'Anna. O povo nos observava e aplaudia. No Quartel, diariamente, entravam automóveis de Santos. Famílias e amigos nossos que vinham visitar-nos. Carlos Herdade. Capitão Luiz Pimenta. João Figueira. Joaquim Ferreira Coelho. Major Santos Silva. Domingos Mejias. Orlando Esteves. Dr. João Carlos de Azevedo. Comendador Manoel Fins Freixo. E inúmeros outros cavalheiros, cujos nomes não nos ocorrem no momento.

E esta pergunta era freqüente:

- Quando vocês seguem para o front?

Não sabíamos como responder. Continuávamos ignorando o nosso destino.

Essa situação, é bem de ver, causava sérios aborrecimentos a todos nós. Muitos, já desanimados pela espera, pretendiam incorporar-se a outra unidade de guerra. Sôfregos para deixar S. Paulo. Para enfrentar o inimigo. Outros, tinham o propósito fixo de voltar para Santos. Já que permaneciam inutilmente no Quartel.

No dia 24. Todos nós tivemos uma notícia oficial. Que sobremodo nos alegrou:

- O Q.G. havia classificado o nosso Batalhão. Éramos o 7º de Caçadores da Reserva de Santos. Não estávamos esquecidos...

Afinal, na manhã de 27 de julho fomos chamados para receber armamento. Foi com um contentamento transbordante que os moços santistas pegaram o fuzil. Desde esse momento, uma azáfama indescritível reinou no Quartel. O entusiasmo dos voluntários, que parecia amortecido, renasceu com a máxima intensidade. Horas depois, de fuzis e sabres rebrilhantes ao sol, ao glorioso sol paulistano, os santistas fremiam de satisfação. Estavam armados. Podiam brigar.

Era isso, apenas, o que queríamos.

Na Intendência, Polydoro Bittencourt, Raul Schmidt Toledo, Álvaro Alcântara e outros, não dispunham de um só minuto de descanso. Pagando o fardamento e o equipamento à rapaziada. Todos, ao mesmo tempo, desejavam ser atendidos. Com presteza. E, para satisfazê-los, era preciso uma paciência evangélica.

O Schmidt ficava mais vermelho do que é. O Polydoro transfigurava-se. O Alcântara bufava.

Mas tudo se arranjou. À tarde a tropa estava aparelhada para o primeiro toque de reunir. Só lhe faltava munição.

***

Impedido, desde cedo, o Quartel, sem que se soubesse exatamente porque, começaram os palpites:

- Nós vamos embarcar hoje - diziam uns.

- E é para Lorena, no setor Norte, ajuntavam outros.

- Estão todos enganados. Daqui iremos diretamente para Itararé, no setor Sul, afirmavam terceiros.

Finalmente, por volta das 16 horas, veio a ordem imperativa do comando: todo o Batalhão em forma para partir. Rumo certo à estação da Sorocabana.

Íamos para o setor Sul. De trem. Desceríamos em Itapetininga. Ponto de concentração das tropas paulistas. Da cidade de Júlio Prestes seguiríamos para a zona de operações.

Deixamos Sant'Anna em auto-caminhões. Numa algazarra ensurdecedora. O povo, apinhado pelas ruas próximas ao Quartel, levantava vivas vibrantes aos voluntários santistas. Estes respondiam. Vivando São Paulo.


Na estação da Sorocabana

Pouco antes das 17 horas chegávamos à estação da Sorocabana. Muita gente nos aguardava. O Batalhão ficou formado, na rua, por longo tempo. Esperando que se organizasse a composição ferroviária. Que deveria conduzi-lo.

Enquanto isso, a rapaziada divertia-se a valer, demonstrando o grande entusiasmo que a possuía. Ao som de clarins, caixas e tambores, chegou mesmo a improvisar um assustado em plena via pública... Zezé Sacramento era quem dirigia a orquestra. De batuta em punho. Bamboleando o corpo. Zezinho Coelho e Altamir Coelho, de corneta à boca, sopravam-na sem cessar. O povo gostava e ria. Algumas senhorinhas aderiram ao choro. Dançaram também. Mas, no melhor da festa, chegou a ordem de ocupar o trem.

Os soldados, em forma, tomaram lugar. Athié, o popular futebolista, à frente do Batalhão, empunhava a Bandeira Paulista. Com garbo militar. Porte ereto. Olhando, firme, para a frente. Sua figura era o alvo da atenção geral. Seu nome, aclamado milhares de vezes. Todos conheciam o bravo moço. Todos o saudavam. E ele, imperturbável, sereno, marchava sempre.


XXX

Somente às 21 horas e 15 minutos, foi que o trem se movimentou para partir. Nosso ponto de desembarque seria Itapetininga. Dali é que nós teríamos outro destino. E, com ele, o que ardentemente desejávamos: - o combate pelas armas, para redimir São Paulo. E glorificar o Brasil. À custa, embora, do nosso sangue. Com o sacrifício da nossa vida.

Entretanto, já não íamos satisfeitos. Um sentimento de revolta nos oprimia. Dera-lhe causa um aviso que havíamos recebido. Pouco antes.


Água envenenada!

Veio-nos a notícia espantosa de fonte seguríssima. Do próprio coronel Favilla, nosso comandante. Todos os soldados não deveriam beber água em Itapetininga. Salvo se quisessem morrer envenenados! Mãos criminosas - era a informação positiva que nos transmitiam - haviam misturado terrível substância ao precioso líquido. Quem o tomasse, sucumbiria. Fatalmente. Essa, a verdade aterradora que nos deixava indignados.

- Pois Itapetininga não era cidade paulista? - perguntávamos eu e Floriano Peixoto Corrêa. Não estavam ali forças paulistas? Amigas nossas, portanto?

A água estava envenenada! Quem a envenenara? O inimigo distante? Impossível! Era necessário desvendar esse mistério. Mas ninguém cogitava disso. Foram tomadas, apenas, providências para que os soldados ali concentrados não perecessem à sede. Nada mais. Nunca se procurou apurar a verdade. Para punir o autor ou autores dessa ignomínia.

Até hoje, o mistério permanece impenetrável. Devem subsistir fortes razões para tanto...

Todavia, falou-se dias depois que o monstruoso atentado fora concebido e posto em prática por indivíduos paulistas. Nascidos mesmo em Itapetininga. Eram, os infames, inimigos de São Paulo. Atraiçoavam-nos miseravelmente. E não foram castigados. Nem o serão jamais. Pelo menos enquanto os paulistas viverem escravizados. De canga ao pescoço. Como bois de carro...


Graças a Deus!

- Graças a Deus! - Foi a frase que todos nós dissemos, quando deixamos a terra da água envenenada. Depois de ali demorarmos um dia inteiro.

Chegáramos às 5 horas da manhã de 28. E, ao morrer da tarde, rumávamos de trem para Engenheiro Hermillo. Pequena povoação à frente. Onde desembarcamos à noite.

A viagem foi boa. Com imenso prazer nosso Itapetininga tinha ficado para trás. Bem longe das nossas vistas. E nós livres, afinal, da sua água mortífera. O capítulo negro das traições, das felonias, das torpitudes que sofreram os heróicos soldados de São Paulo, deve ter sido iniciado em Itapetininga.

Foi ali que surgiu o novo Joaquim Silvério dos Reis. É a minha convicção. Minha e dos meus bravos irmãos de farda e de ideal.

Um dia, se Deus quiser, a história lutulenta dessas covardias abomináveis será contada. Com todas as minúcias e fundamentos. Para execração eterna dos refalsados Judas que nos venderam. E que ainda não tiveram a coragem necessária para repetir o gesto digno daquele que, aturdido pelo remorso, por ter traído o Divino Mestre, procurou uma figueira para enforcar-se. E se enforcou.

Dêmos tempo ao tempo.

São Paulo esteve, está e estará sempre de pé. Pelo Brasil livre e unido. Não o abaterão, nunca, a perfídia e a inveja. Inútil e ridícula é a obstinação odienta dos que pretendem, por todos os meios, mesmo os mais vis, trucidar o gigante. Verdade é que o apunhalaram pelas costas. Mas o sangue que jorrou de suas feridas operou o milagre de tornar mais forte ainda a têmpera inquebrantável de seus filhos.


Verdades dolorosas e sacrifícios inúteis

A 1ª Cia. do 7º Batalhão foi, sem dúvida, entre as tropas constitucionalistas, a que mais se movimentou no longo e tormentoso período revolucionário. Triste fadario lhe estava reservado.

De 27 de julho a 4 de outubro - ou sejam 73 dias - excluindo cerca de 40 que esteve nas trincheiras de fogo, atravessou toda essa temporada avançando muito pouco. Recuando bastante. Ladeando sempre.

Não que, aos seus soldados, minguasse ânimo para as mais arriscadas investidas. Ao contrário, todos os episódios dramáticos que se desenvolveram ao fragor da luta, e que enumeraremos adiante, constituem uma prova líquida, insofismável, da bravura autêntica dos santistas.

Mas, é sabido, o soldado não avança ao encontro do inimigo, nem dispara o seu fuzil sem que, para isso, receba ordens do oficial que o comanda.

E, como esse oficial nunca dava essa ordem, a não ser em casos que o leitor irá conhecer no desenvolvimento desta narrativa, o resultado dos nossos ingentes sacrifícios era invariavelmente o mesmo: - nulo por completo.

Faltou-nos, quase sempre, um comandante enérgico e capaz. Com o senso suficiente e a competência indispensável para nos conduzir de modo satisfatório. Isto é uma verdade irrecusável. Que eu disse, vezes sem conta, nas trincheiras. E que agora proclamo aqui, em letra de forma, desafiando uma contradita honesta.

Reconheço, sem favor algum, que o 7º teve em suas fileiras de combate oficiais de indiscutível valor técnico e moral. Briosos. Dignos. Patriotas. Leais. Amigos dos seus soldados. Com extremo devotamento. Com a máxima abnegação. Mas, infelizmente, foram eles em número menor aos primeiros. Os tenentaços improvisados, de emergência, super-abundavam. Surgiam aos pares. De todos os lados. Como cogumelos. E poucos se recomendavam à confiança dos seus subordinados. Uma lástima! Devo frisar e repetir que estes mesmos conceitos se referem, exclusivamente, à 1ª Cia., que foi, talvez, a que maiores martírios sofreu. Os seus soldados padeceram horrores. Não houve provação, por mais dura e penosa, a que não fossem submetidos os destemerosos voluntários santistas.

E não se justificava, de maneira nenhuma, semelhante situação. Estávamos em terreno pacífico. Nosso. Distantes, ainda, das forças que deveríamos combater. Não havia necessidade, portanto, dos sacrifícios que nos impunham. Por inépcia ou vaidade tola de alguns oficiais de galões pegados com cuspe...

De alguns cretinos fardados.

Entretanto, de uma coisa nos orgulhávamos: - da nossa resistência sobre-humana. Que jamais permitiu a qualquer um de nós se abatesse. Não discutíamos ordens. Mesmo aquelas que eram absurdas. Cumpríamos todas. Com elegância moral. Com elevação cívica. Com ardor. Disciplinados. Unidos. Para a vida ou para a morte. Nosso lema sagrado era o de lutar por S. Paulo. Por S. Paulo lutaríamos. Como lutamos. Como lutaremos ainda. Amanhã. Hoje. Sempre. Não maldizemos, por isso, as vicissitudes que curtimos no decorrer da aspérrima jornada.

Lamentamos, apenas, o tristíssimo e trágico desfecho que ela teve. Mas sem perder a fé nos nossos altíssimos destinos. E o entranhado amor à terra de Piratininga - berço doirado de uma raça que emoldurou os faustos da história pátria com os maiores rasgos de bravura e de abnegação.

S. Paulo é S. Paulo!

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