Júlio Dantas em Santos
No decurso de oito dias, a alma santense experimentou dois grandes e distintos lances de sentimentalismo
induzidos pela cultura portuguesa: a morte de Guerra Junqueiro, em 7 de julho de 1923, e a visita honrosa de Júlio Dantas, em 15 do mesmo mês e ano.
O grande escritor, estendendo à Cidade sua viagem de intercâmbio cultural ao Brasil, foi
alvo de inequívocas demonstrações de afeto e admiração, aqui permanecendo por espaço de três dias.
Desembarcando às 12h46 na gare da Inglesa,
acompanhado do seu secretário, sr. Jaime Silva, recebeu os cumprimentos das autoridades, representantes de instituições luso-brasileiras e
literatos, que lhe foram apresentadas pelo poeta Martins Fontes. No Largo Marquês de Monte Alegre, onde havia muito povo,
tocaram as bandas musicais do Corpo de Bombeiros, da Sociedade Colonial e da União Portuguesa.
Júlio Dantas
Foto: Biblioteca Nacional/Rio de Janeiro-RJ
Deixando
a plataforma ferroviária, abraçado à senhorita Maia Filho e ao Dr. Arnaldo F. Aguiar, vice-prefeito em exercício, o escritor português dirigiu-se
para o Paço, onde o presidente da Câmara, Dr. B. de Moura Ribeiro, saudando-o, disse da honra com que o Município o hospedava; ao agradecer, o autor
de A Ceia dos Cardeais fez votos pela prosperidade de Santos e felicidade do seu povo.
Depois de visitar a sede do Consulado de Portugal, na Praça Rui Barbosa,
saudado pelo Dr. Heitor de Morais, seguiu ele para o Parque Balneário Hotel, onde lhe foram reservados aposentos e almoçou
na intimidade. Durante a tarde, foi recebido no prado do Jóquei Clube, que executou programa de corridas em sua homenagem, visitando também a sede
social da agremiação turfística, presidida pelo Dr. Antônio Assunção.
À noite, após o jantar íntimo no Parque, realizou conferência sobre o tema Elegância em
Portugal, antes saudado pelo poeta Martins Fontes. Aliás, o autor de Sóror Dolorosa viu-se acompanhado até ao
Guarani pelo povo, que o aguardou na Praça José
Bonifácio, em ruidosa e festiva Marche Aus Flambeaux. Na mesma noite, compareceu à festa social que o Clube XV
promoveu em sua honra, onde teve de responder ao discurso do Dr. J. Carvalhal Filho.
No dia seguinte, o dramaturgo português visitou a Sociedade
Beneficência Portuguesa, que lhe outorgou o título de sócio honorário, pelas mãos do comendador Aristides Cabrera Correia da Cunha; no Livro de
Visitantes, deixou as seguintes impressões: "É quando, longe da Pátria, visito instituições como esta, que eu sinto, mais íntima e profundamente, o
orgulho de ser português". Escola Portuguesa, Sociedade União Portuguesa, Centro Republicano Português e Real Centro Português
foram também as visitas do dia, em todas elas muito homenageado. Vale assinalar que numa dessas instituições, o Real Centro Português, convidado por
uma senhorita a proferir um pensamento sobre a Mulher, o autor de Pátria Portuguesa assim conceituou: "A Mulher é o único defeito do Homem".
Após o jantar no Parque Balneário, Júlio Dantas proferiu, no
Guarani, perante grande concorrência, como a anterior, conferência sobre O Heroísmo
Português, quando foi saudado por Galeão Coutinho e Ibraim Nobre.
Em seu último dia de permanência, o autor de A Severa visitou os jornais e a Câmara
Municipal, sendo ainda homenageado pela Municipalidade com um banquete no Parque Balneário Hotel. Oferecendo-o em nome da Cidade, discursou o Sr.
Arlindo Aguiar, vice-prefeito em exercício; também pronunciaram orações de louvor ao eminente escritor português os poetas Heitor de Morais e
Martins Fontes. Após o banquete, uma senhorita paulistana, Raquel Blacke, recitou poesias de Júlio Dantas, que se emocionou.
Foi extremamente cordial o ato de despedida, que se seguiu à visita à Câmara dos Vereadores.
Por todas as classes sociais, desde o humilde homem do povo à mais alta autoridade, além das figuras de evidência no ambiente cultural, Santos
consagrou a Júlio Dantas as mais eloqüentes demonstrações de admiração, amizade e gratidão.
Cine-teatro Júlio Dantas, durante uma apresentação do
Rancho Folclórico Verde Gaio,
antes de 1979, quando foi alugado para cinema
Foto: Centro Português de Santos
Entre duas primaveras
Júlio Dantas nasceu e faleceu no mês de maio. No Hemisfério
Norte, as estações são invertidas em relação à metade Sul da Terra, justificando o comentário do contemporâneo Luís de Oliveira Guimarães: "Uma
Primavera o trouxe, uma Primavera o levou". Maios separados por 86 anos de uma vida, de uma obra, de uma postura, de uma perspectiva
singularíssimas, analisa Fernando Dacosta em artigo na publicação lusa Público Magazine, em 4 de abril de 1993.
O escritor nasceu em Lagoa, Portugal, em 19 de maio de 1876. Médico do Exército, foi
também deputado e exerceu outros cargos no governo. Colaborador dos jornais mais importantes de Portugal, escreveu ainda no Correio
da Manhã, no Rio de Janeiro, e em La Nación, de Buenos Aires. Durante décadas,
foi um dos autores portugueses mais apreciados no estrangeiro. Em Portugal e no Brasil, ficou mais conhecido por seu teatro voltado para o amor
elegante e o heroísmo aristocrático.
A meio caminho entre o romantismo e o parnasianismo, seus poemas foram enfeixados em Nada
(1896) e Sonetos (1916). O interesse pelo amor elegante levou-o a estudos como O Amor em Portugal no Século XVIII (1915). A procura do
passado heróico rendeu Pátria Portuguesa (1914) e Marcha Triunfal (1954). Foi na dramaturgia, porém, que alcançou grande sucesso: em
A Severa (1901) foi baseado o primeiro filme português sonoro, de Leitão de Barros, e A Ceia dos Cardeais, escrita em 1902, tem longa
história nos palcos. Escreveu ainda Paços de Veiros (1903) e O Reposteiro Verde (1912). Morreu em Lisboa, em 25 de maio de 1962.
Versatilidade política - Poeta, dramaturgo, cronista, jornalista, conferencista,
médico, deputado, militar, ministro, glória das instituições, da política, da literatura, do teatro, da sociedade da época, acadêmico de dezenas de
academias, referência para o Prêmio Nobel e para a Presidência da República, Júlio Dantas, "entre outros talentos teve o prodígio da versatilidade
política. Gostava de estar sempre perto do poder", evoca o escritor e jornalista português António Valdemar.
Para se aproximar do Paço e da Rainha escreve a Ceia dos Cardeais. Não recebendo os
cargos e as honrarias a que julgava ter direito, aproveita-se da crise do regime monárquico e faz Um Serão nas Laranjeiras, denúncia da
decomposição da corte. Mas não se afasta dela.
Aguarda, por exemplo, a chegada da família real de Vila Viçosa, no fatídico dia 1 de
fevereiro de 1908, e oferece a D. Amélia um ramo de flores. O mesmo ramo de flores que ela arremessou, conta Aquilino Ribeiro, à cara do Buiça,
quando apontava e disparava a carabina. Proclamada a República, Dantas adere ao novo regime e publica na Capital, em folhetins, Cruz de
Sangue, reunida depois em livro sob o título Pátria Portuguesa, uma exaltação do povo e uma condenação da nobreza.
Perante o conflito desencadeado com a Igreja pela Lei da Separação de Afonso Costa, redige a
peça A Santa Inquisição, em que condena violentamente o Santo Oficio. Com o advento do salazarismo, escreve Frei António das Chagas
elogio de quem se sacrifica, se imola pela Pátria. Um abalo no poder salazarista leva-o a reformular a Antígona, fazendo uma crítica ao velho
ditador através da personagem de Creonte.
Há quem, ironizando, goste de dizer que, se Júlio Dantas continuasse vivo, teria produzido
peças sobre o 25 de Abril (a Revolução dos Cravos, que em 25 de abril de 1974 derrubou o regime salazarista) e os novos dirigentes portugueses Mário
Soares e Cavaco Silva - a favor e contra.
Júlio Dantas foi sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa desde 1913 e, por várias
vezes, durante 25 anos, foi escolhido para presidente dessa instituição. Dedicou-se aos mais variados gêneros literários como a poesia, o teatro, o
conto, o romance, a crônica e o ensaio. Alcançou grandes êxitos com as suas peças teatrais.
Defendeu o culto do Heroísmo, da Elegância e do Amor, e a sua época predileta, que escolhia
quase sempre como cenário das suas produções, era o século XVIII, exaltando o efêmero, a morte, o sentimento, o cosmopolitismo etc. Sua poesia é
inspirada na lírica palaciana do Cancioneiro Geral de Garcia Resende.
Funeral civil - À pergunta sobre o que pensava de Deus, Júlio respondia sempre: "Como
sabem, sou acima de tudo um homem de teatro. Ora, Deus para mim é um elemento essencialmente cênico". O autor -, a quem Augusto de Castro chamava o
Quarto Cardeal, em alusão à peça A Ceia dos Cardeais, que eram três, e aos inúmeros bispos, frades, freiras, abades que povoam as sua obras
("são figuras eminentemente teatrais", repetia) - recusou-se a casar religiosamente e exigiu que o seu funeral seja civil.
"Isso causou uma grande perturbação nos meios católicos, dado o seu prestígio", destacou
António Valdemar, presente no funeral. "Para salvar as aparências,
Cerejeira pediu ao padre Moreira das Neves que se deslocasse à Academia das Ciências, onde o
corpo estava em câmara ardente, e que permanecesse junto da
urna, de joelhos, a rezar, sobretudo nas alturas em que a sala tivesse mais gente. Moreira da
Neves assim fez".
Vitorino Nemésio, que sucedeu a Júlio Dantas na Academia, ao ocupar sua cadeira (a de número
13), fez a evocação oficial, sublinhando a sua alta qualidade literária e a sua invulgar mestria dramatúrgica - que lhe dão lugar maior nas letras
portuguesas. Carlos Malheiro Dias foi mais longe: "Ninguém como Dantas deu tanta plasticidade, tanta riqueza verbal, tanto ímpeto à nossa língua.
Nem o Eça, nem o Fialho".
Teatro santista - No dia 12 de abril de 1908 o Real Centro
Português inaugurou seu Salão-Teatro, que permaneceu em atividade até 1951, quando passou por grande reforma, sendo reinaugurado a 13 de outubro
de 1956, com modernas poltronas, finíssima decoração, como Teatro do Centro Português, sendo então uma das mais modernas casas teatrais de Santos,
com a denominação de Teatro Júlio Dantas. |