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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - VISITANTES
Júlio Dantas é homenageado em 1923

"A mulher é o único defeito do homem"

Entre outras personalidades do campo literário internacional que estiveram em Santos, o escritor português Júlio Dantas mereceu calorosa recepção dos santistas, como registrou o jornalista Olao Rodrigues, no seu Almanaque de Santos - 1971:

Júlio Dantas em Santos

No decurso de oito dias, a alma santense experimentou dois grandes e distintos lances de sentimentalismo induzidos pela cultura portuguesa: a morte de Guerra Junqueiro, em 7 de julho de 1923, e a visita honrosa de Júlio Dantas, em 15 do mesmo mês e ano.

O grande escritor, estendendo à Cidade sua viagem de intercâmbio cultural ao Brasil, foi alvo de inequívocas demonstrações de afeto e admiração, aqui permanecendo por espaço de três dias.

Desembarcando às 12h46 na gare da Inglesa, acompanhado do seu secretário, sr. Jaime Silva, recebeu os cumprimentos das autoridades, representantes de instituições luso-brasileiras e literatos, que lhe foram apresentadas pelo poeta Martins Fontes. No Largo Marquês de Monte Alegre, onde havia muito povo, tocaram as bandas musicais do Corpo de Bombeiros, da Sociedade Colonial e da União Portuguesa.

Júlio Dantas
Foto: Biblioteca Nacional/Rio de Janeiro-RJ

Deixando a plataforma ferroviária, abraçado à senhorita Maia Filho e ao Dr. Arnaldo F. Aguiar, vice-prefeito em exercício, o escritor português dirigiu-se para o Paço, onde o presidente da Câmara, Dr. B. de Moura Ribeiro, saudando-o, disse da honra com que o Município o hospedava; ao agradecer, o autor de A Ceia dos Cardeais fez votos pela prosperidade de Santos e felicidade do seu povo.

Depois de visitar a sede do Consulado de Portugal, na Praça Rui Barbosa, saudado pelo Dr. Heitor de Morais, seguiu ele para o Parque Balneário Hotel, onde lhe foram reservados aposentos e almoçou na intimidade. Durante a tarde, foi recebido no prado do Jóquei Clube, que executou programa de corridas em sua homenagem, visitando também a sede social da agremiação turfística, presidida pelo Dr. Antônio Assunção.

À noite, após o jantar íntimo no Parque, realizou conferência sobre o tema Elegância em Portugal, antes saudado pelo poeta Martins Fontes. Aliás, o autor de Sóror Dolorosa viu-se acompanhado até ao Guarani pelo povo, que o aguardou na Praça José Bonifácio, em ruidosa e festiva Marche Aus Flambeaux. Na mesma noite, compareceu à festa social que o Clube XV promoveu em sua honra, onde teve de responder ao discurso do Dr. J. Carvalhal Filho.

No dia seguinte, o dramaturgo português visitou a Sociedade Beneficência Portuguesa, que lhe outorgou o título de sócio honorário, pelas mãos do comendador Aristides Cabrera Correia da Cunha; no Livro de Visitantes, deixou as seguintes impressões: "É quando, longe da Pátria, visito instituições como esta, que eu sinto, mais íntima e profundamente, o orgulho de ser português". Escola Portuguesa, Sociedade União Portuguesa, Centro Republicano Português e Real Centro Português foram também as visitas do dia, em todas elas muito homenageado. Vale assinalar que numa dessas instituições, o Real Centro Português, convidado por uma senhorita a proferir um pensamento sobre a Mulher, o autor de Pátria Portuguesa assim conceituou: "A Mulher é o único defeito do Homem".

Após o jantar no Parque Balneário, Júlio Dantas proferiu, no Guarani, perante grande concorrência, como a anterior, conferência sobre O Heroísmo Português, quando foi saudado por Galeão Coutinho e Ibraim Nobre.

Em seu último dia de permanência, o autor de A Severa visitou os jornais e a Câmara Municipal, sendo ainda homenageado pela Municipalidade com um banquete no Parque Balneário Hotel. Oferecendo-o em nome da Cidade, discursou o Sr. Arlindo Aguiar, vice-prefeito em exercício; também pronunciaram orações de louvor ao eminente escritor português os poetas Heitor de Morais e Martins Fontes. Após o banquete, uma senhorita paulistana, Raquel Blacke, recitou poesias de Júlio Dantas, que se emocionou.

Foi extremamente cordial o ato de despedida, que se seguiu à visita à Câmara dos Vereadores. Por todas as classes sociais, desde o humilde homem do povo à mais alta autoridade, além das figuras de evidência no ambiente cultural, Santos consagrou a Júlio Dantas as mais eloqüentes demonstrações de admiração, amizade e gratidão.

Cine-teatro Júlio Dantas, durante uma apresentação do Rancho Folclórico Verde Gaio, 
antes de 1979, quando foi alugado para cinema
Foto: Centro Português de Santos

Entre duas primaveras

Júlio Dantas nasceu e faleceu no mês de maio. No Hemisfério Norte, as estações são invertidas em relação à metade Sul da Terra, justificando o comentário do contemporâneo Luís de Oliveira Guimarães: "Uma Primavera o trouxe, uma Primavera o levou". Maios separados por 86 anos de uma vida, de uma obra, de uma postura, de uma perspectiva singularíssimas, analisa Fernando Dacosta em artigo na publicação lusa Público Magazine, em 4 de abril de 1993.

O escritor nasceu em Lagoa, Portugal, em 19 de maio de 1876. Médico do Exército, foi  também deputado e exerceu outros cargos no governo. Colaborador dos jornais mais importantes de Portugal, escreveu ainda no Correio 
da Manhã, no Rio de Janeiro, e em La Nación, de Buenos Aires. Durante décadas, foi um dos autores portugueses mais apreciados no estrangeiro. Em Portugal e no Brasil, ficou mais conhecido por seu teatro voltado para o amor elegante e o heroísmo aristocrático.

A meio caminho entre o romantismo e o parnasianismo, seus poemas foram enfeixados em Nada (1896) e Sonetos (1916). O interesse pelo amor elegante levou-o a estudos como O Amor em Portugal no Século XVIII (1915). A procura do passado heróico rendeu Pátria Portuguesa (1914) e Marcha Triunfal (1954). Foi na dramaturgia, porém, que alcançou grande sucesso: em A Severa (1901) foi baseado o primeiro filme português sonoro, de Leitão de Barros, e A Ceia dos Cardeais, escrita em 1902, tem longa história nos palcos. Escreveu ainda Paços de Veiros (1903) e O Reposteiro Verde (1912). Morreu em Lisboa, em 25 de maio de 1962.

Versatilidade política - Poeta, dramaturgo, cronista, jornalista, conferencista, médico, deputado, militar, ministro, glória das instituições, da política, da literatura, do teatro, da sociedade da época, acadêmico de dezenas de academias, referência para o Prêmio Nobel e para a Presidência da República, Júlio Dantas, "entre outros talentos teve o prodígio da versatilidade política. Gostava de estar sempre perto do poder", evoca o escritor e jornalista português António Valdemar.

Para se aproximar do Paço e da Rainha escreve a Ceia dos Cardeais. Não recebendo os cargos e as honrarias a que julgava ter direito, aproveita-se da crise do regime monárquico e faz Um Serão nas Laranjeiras, denúncia da decomposição da corte. Mas não se afasta dela.

Aguarda, por exemplo, a chegada da família real de Vila Viçosa, no fatídico dia 1 de fevereiro de 1908, e oferece a D. Amélia um ramo de flores. O mesmo ramo de flores que ela arremessou, conta Aquilino Ribeiro, à cara do Buiça, quando apontava e disparava a carabina. Proclamada a República, Dantas adere ao novo regime e publica na Capital, em folhetins, Cruz de Sangue, reunida depois em livro sob o título Pátria Portuguesa, uma exaltação do povo e uma condenação da nobreza.

Perante o conflito desencadeado com a Igreja pela Lei da Separação de Afonso Costa, redige a peça A Santa Inquisição, em que condena violentamente o Santo Oficio. Com o advento do salazarismo, escreve Frei António das Chagas elogio de quem se sacrifica, se imola pela Pátria. Um abalo no poder salazarista leva-o a reformular a Antígona, fazendo uma crítica ao velho ditador através da personagem de Creonte.

Há quem, ironizando, goste de dizer que, se Júlio Dantas continuasse vivo, teria produzido peças sobre o 25 de Abril (a Revolução dos Cravos, que em 25 de abril de 1974 derrubou o regime salazarista) e os novos dirigentes portugueses Mário Soares e Cavaco Silva - a favor e contra.

Júlio Dantas foi sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa desde 1913 e, por várias vezes, durante 25 anos, foi escolhido para presidente dessa instituição. Dedicou-se aos mais variados gêneros literários como a poesia, o teatro, o conto, o romance, a crônica e o ensaio. Alcançou grandes êxitos com as suas peças teatrais.

Defendeu o culto do Heroísmo, da Elegância e do Amor, e a sua época predileta, que escolhia quase sempre como cenário das suas produções, era o século XVIII, exaltando o efêmero, a morte, o sentimento, o cosmopolitismo etc. Sua poesia é inspirada na lírica palaciana do Cancioneiro Geral de Garcia Resende.

Funeral civil - À pergunta sobre o que pensava de Deus, Júlio respondia sempre: "Como sabem, sou acima de tudo um homem de teatro. Ora, Deus para mim é um elemento essencialmente cênico". O autor -, a quem Augusto de Castro chamava o Quarto Cardeal, em alusão à peça A Ceia dos Cardeais, que eram três, e aos inúmeros bispos, frades, freiras, abades que povoam as sua obras ("são figuras eminentemente teatrais", repetia) - recusou-se a casar religiosamente e exigiu que o seu funeral seja civil.

"Isso causou uma grande perturbação nos meios católicos, dado o seu prestígio", destacou António Valdemar, presente no funeral. "Para salvar as aparências,
Cerejeira pediu ao padre Moreira das Neves que se deslocasse à Academia das Ciências, onde o corpo estava em câmara ardente, e que permanecesse junto da
urna, de joelhos, a rezar, sobretudo nas alturas em que a sala tivesse mais gente. Moreira da Neves assim fez".

Vitorino Nemésio, que sucedeu a Júlio Dantas na Academia, ao ocupar sua cadeira (a de número 13), fez a evocação oficial, sublinhando a sua alta qualidade literária e a sua invulgar mestria dramatúrgica - que lhe dão lugar maior nas letras portuguesas. Carlos Malheiro Dias foi mais longe: "Ninguém como Dantas deu tanta plasticidade, tanta riqueza verbal, tanto ímpeto à nossa língua. Nem o Eça, nem o Fialho".

Teatro santista - No dia 12 de abril de 1908 o Real Centro Português inaugurou seu Salão-Teatro, que permaneceu em atividade até 1951, quando passou por grande reforma, sendo reinaugurado a 13 de outubro de 1956, com modernas poltronas, finíssima decoração, como Teatro do Centro Português, sendo então uma das mais modernas casas teatrais de Santos, com a denominação de Teatro Júlio Dantas.