[Contracapas]
Navio presídio
Este livro se insere no número dos depoimentos necessários. Ao ser desfechado o golpe
militar de 1º de abril de 1964 - também conhecido pelo eufemismo de "Revolução de 31 de março" - o jornalista Nelson Gatto exercia o cargo de chefe
do departamento de repressão ao contrabando em São Paulo.
Fiel ao governo constituído, num momento em que tantos traíam ou se acovardavam, fez
tudo o que esteve ao seu alcance para defender a legalidade brutalmente ameaçada, na área de sua jurisdição. Por isso mesmo, foi considerado
"subversivo" pelos subversivos, perseguido encarniçadamente e finalmente preso e recolhido ao navio-presídio Raul Soares, surto no porto de
Santos.
O presente livro narra, precisamente, a história de seu encarceramento, as provações
que precisou arrostar, as provocações sobre ele desencadeadas, as cenas de selvageria e de sadismo a que assistiu, as humilhações e o martírio
anônimo de muitos dos seus companheiros de prisão. Isto tudo em nome da "Revolução saneadora e redentora"...
O livro de Nelson Gatto mais uma vez vem provar como são cruéis e detestáveis os
fariseus que, em nome de Cristo, de Deus e da Família, organizam marchas de "mal amadas" e o assalto ao poder, para depois revelar toda a sua
hediondez numa das repressões mais desvairadas e inúteis de que se tem notícia neste país.
Com efeito, qual o saldo de todas as perseguições movidas pelos beneficiários do
golpe militar: No capítulo da corrupção, a quartelada teve de cortar na sua própria carne, pois não apenas em São Paulo, como no resto do Brasil,
foram precisamente conhecidos figurões da política conservadora que caíram nas malhas de diversos IPMs
(N. E.: IPM - Inquérito Policial Militar). No
campo um pouco mais elástico da "subversão", o que também se apurou foi de uma pobreza franciscana, deixando muito mal colocado o desfrutável
udenista Bilac Pinto, que anunciava, em tom apocalíptico, o preparo de uma "guerra revolucionária" no estilo de Fidel Castro e Mao Tse-Tung
(N. E.: líderes respectivamente em Cuba e na China continental)...
Mas - dir-se-á - não julgam os melhores observadores do momento político que a
"Revolução é irreversível" e que, ao comemorar o seu primeiro aniversário, o seu resultado é absolutamente positivo? Sim, isto é dito em termos
grandiloquentes, mas não passa de má literatura de péssimos escribas, que jamais souberam viver fora do bafejo dos poderosos e que bitolam o seu
elogio a tanto por linha.
Na verdade, a que se reduz esse saldo? À "manutenção da ordem" e ao "combate à
anarquia". A nada mais! Dizendo-se reformista, o governo da quartelada ainda não concretizou, a não ser no papel, uma única reforma digna desse
nome. Mas foi fulminante em outro plano, qual seja o de executar as ordens de seus patrões imperialistas, destroçando praticamente a lei da remessa
de lucros, entregando os minérios brasileiros à Hanna, comprando o ferro velho da AMFORP, alienando a soberania nacional na esfera da política
exterior.
Esse esquema entreguista completa-se, num quadro dos mais sombrios, com as fórmulas
impostas pelo Fundo Monetário Internacional à tarefa de julgamento da inflação - fórmulas levadas à prática pelo Torquemada das Finanças que
responde pelo nome de Roberto de Oliveira Campos.
De nada valeram as advertências de que a simples estabilização de preços daria, de
algum modo, "justificativa histórica" à quartelada de 1º de abril, mas que esses métodos já haviam malogrado inteiramente na Argentina, para citar
apenas o exemplo mais próximo a nós, no tempo e no espaço. O FMI exigia essa tremenda terapêutica, como condição sine qua non para permitir
uma fecunda irrigação de dólares, com o qual se reergueria em breve tempo a economia brasileira.
Não será demais repetir que os empréstimos prometidos não vieram e que o povo
brasileiro está sendo levado ao desespero e à miséria. Em primeiro lugar, coube ao proletariado e a todos os milhões que vivem de ganhos fixos,
suportar esse tratamento, que lhes arranca os olhos e a pele. Mas isso não é tudo. A própria indústria brasileira sofre agora os efeitos da mesma
medicação, e estrebucha indignada, clamando que não merece provação tão injusta, pois foi "revolucionária", "temente a Deus", que esteve presente às
"marchas", que acha o marechal Castelo Branco um "homem cem por cento" etc. etc....
De nada tem valido, contudo, o alarido dessa angústia. Os métodos inquisitoriais, na
esfera das finanças - simétricos aos da repressão policial - prosseguem implacáveis. "A dieta é tal que matará o enfermo", alguém já adiantou. Mas
esta observação ainda parte de um pressuposto que hoje, aparentemente, já foi superado. A imagem da dieta que mata o doente ainda se vincula à ideia
de que há na orientação financeira um fundo de boa intenção, embora o tratamento seguido seja contraindicado. Mas a estas alturas acorre o
Torquemada das Finanças, e esclarece que a coisa tem que ser assim mesmo, que a destruição da indústria brasileira não procede de um mal entendido,
pois o crack, que já começou, representará uma necessária "limpeza do terreno"... Naturalmente, no campo, só ficarão de pé as empresas
estrangeiras!
Eis a "Revolução redentora", cujas primeiras façanhas em São Paulo, desenroladas nos
soturnos porões do Raul Soares, o jornalista Nelson Gatto, que sempre se revelou um modelo de hombridade e de coragem, narra com o seu
indormido espírito de repórter. Trata-se, sem dúvida, de aspectos parciais da quartelada, em área necessariamente reduzida, mas que bastam para
autorizar estas rápidas generalizações de julgamento. |