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A dor não conhece fronteiras
Uma ditadura, a escolha que não teve. Como muitos de sua geração, nos anos 70, 'Marisa'
Castro foi obrigada a imigrar
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Se a polícia bate à sua porta apenas porque você expressou
publicamente a sua opinião, então é hora de ir embora. Por isso, a uruguaia Maria Elisa Castro Sierra está na região desde 1979. E, como ela, muitos
de seus compatriotas tiveram de deixar o Uruguai nos anos da ditadura civil-militar, entre 1973 e 1984.
"Foi uma época decadente. Vimos coisas muito duras, de ambas as partes", diz. De seu apartamento no
centro de São Vicente, Marisa, como é chamada, se debruça sobre o passado já tão distante como se fosse ontem.
Mas, em meio aos livros de Mario Benedetti – o maior escritor uruguaio – ou às pinturas de Carlos
Kis na parede, ela não nutre mágoa ou sofrimento: as coisas são como têm de ser, apesar de ainda ter a mãe e uma irmã morando em Montevidéu, a
capital do Uruguai.
"Há dez anos tentei trazer minha mãe para morar comigo, mas ela não se adaptou. Dizia: 'Estão me
nascendo umas ruguinhas aqui'", sorri. A mãe tinha então 78 anos.
O contexto que forçou Marisa a imigrar não era muito diferente do vivido no Brasil, na Argentina e
em outros países da América Latina, no período. A precariedade econômica e as desigualdades sociais se transformavam em palco e combustível de
conflitos ideológicos entre a direita e a esquerda. Conflitos que, em todos os países, evoluíram para as armas.
Professora secundária, casada com um oficial da Marinha, Marisa nutria, como diz, "uma simpatia
pela esquerda". Um pecado mortal, quando o então presidente Juan María Bordaberry deu um golpe de estado, apoiado pelos militares, em 1973.
Ela viu amigos serem torturados, o marido passar longos dias na prisão militar por se recusar a
matar outros uruguaios e viu, até, o fuzilamento de estudantes, na faculdade ao lado de sua casa. Mas a pressão se tornou insustentável quando ela
mesma acabou presa e interrogada.
"Sair já era uma necessidade moral". Com os quatro filhos e a roupa do corpo, Marisa e o marido
chegaram ao Brasil, e depois, a Santos – um lugar que já lhes era familiar.
Choque cultural – Marisa já estivera em Santos, em 1970, acompanhando o marido, em uma das
escalas dos inúmeros navios a caminho da Europa. A primeira imagem foi a dos prédios tortos. "'Será que estou enjoada?',
pensei. Meu marido riu e me explicou que eram assim mesmo".
Naquela época, os navios demoravam alguns dias no Porto, para carga e descarga. Foi o tempo
suficiente para Marisa se encantar com os canais. "De alguma maneira, a baía aqui me lembrou a de Montevidéu".
Em Santos, criou os filhos e ficou viúva, há dez anos – quando se mudou para
São Vicente. Psicopedagoga por formação, trabalhou em escolas de idiomas. Em Santos, no Centro Cultural Brasil-Estados Unidos (CCBEU),
introduziu o Centro Cultural Latino-Americano.
Hoje, o descanso. Mas a aposentadoria não se estende a alguns hábitos que a acompanham desde o
Uruguai. O de vestir impecavelmente é um deles. Aliás, o despojamento brasileiro no vestir foi o motive do primeiro choque cultural que sofreu.
"Fui ao banco abrir uma conta. Estava de blazer, camisa, salto alto, como estava acostumada a me
vestir. A gerente virou e perguntou: 'De que casamento a senhora vem?' (risos)".
Preconceito está na cabeça – Na mesa, o feijão continua sendo apenas o branco, o mais
popular no Uruguai. No dia a dia, o império da batata: em purê, frita ou assada. Do chimarrão, não é lá muito fã. Mas confessa o preconceito que
carregava. "Os homens de classes mais baixas andavam pela rua com a cuia. Havia esse estigma". Até uma de suas viagens à Europa com o marido, em que
o dono de um estaleiro em Hamburgo, na Alemanha, provou, gostou e aderiu ao chimarrão. "Ele chegava todo dia na sua BMW com a cuia na mão", cai na
gargalhada. "Aprendi: preconceito só está na cabeça da gente".
E a carne bovina, tão cara aos uruguaios – há quase três bois para cada habitante -, Marisa deixou
para trás, por causa dos 70 anos recém-completados. Um paradoxo é que sua mãe, com 88, come carne vermelha todos os dias – e nem imagina o que seja
colesterol alto, por exemplo. O segredo talvez esteja no hábito de consumir vinho com regularidade, especialmente o da uva Tannat, bastante popular
no Uruguai.
Mas, para Marisa, o sabor da saudade responde pelo nome de Postre Chaja, uma sobremesa de
pão de ló regado ao vinho, com pêssego, chantili e suspiro. A água na boca não disfarça um certo amargor: quisera a saudade sempre fosse assim tão
doce. Mas não é. "Dói. Ter me decepcionado. Ter sido agredida pelo meu próprio povo".
Ao Brasil, é grata. "Nunca me faltou trabalho, nunca me faltou dinheiro, nunca me faltaram amigos".
Já pensou em retornar à terra onde nasceu. Mas essa terra talvez não seja mais a sua. "Não sei se me acostumaria. Seria como imigrar novamente".
Maria Elisa e os livros: fonte de libertação, levam o Homem a viagens inimagináveis, sem sair do
lugar. Mario Benedetti, um dos autores preferidos, mantém-na em contato com sua língua, sua gente e com a sua cidade natal, Montevidéu, banhada
pelas águas do Rio da Prata
Foto: Alberto Marques, publicada com a
matéria
O tango é uruguaio? - Também. Embora o gênero seja quase um sinônimo da Argentina, sabe-se
que o estilo era interpretado nos prostíbulos de Montevidéu, tanto quanto nos de Buenos Aires, no final do século 19. Como a popularização do gênero
se deu pela difusão fonográfica, Buenos Aires, com melhor estrutura de gravação e distribuição, angariou a fama.
Mas, fatos como o mistério envolvendo o nascimento de Carlos Gardel, um dos expoentes do gênero,
que ganhou notoriedade mundial a partir da Argentina, alimentam a polêmica da paternidade. Não se sabe ao certo se Gardel nasceu em Toulouse, na
França, ou em Tucuarembó, no interior do Uruguai. A respeito da origem do tango, o mais certo, porém, é que tenha nascido nas duas capitais, na
mesma época.
Foto: Luigi Bongiovanni, publicada com a matéria
Patinação – "A vida vai nos levando de um lugar a outro", diz Herbert Hugo Tort
Laureiro, a certa altura. Em seu caso, o levou de Montevidéu ao posto de cônsul honorário de Santos. E o percurso, ele fez de patins: Tort integrou
a seleção uruguaia de patinação artística, nos anos 50. Entre idas e vindas ao Brasil, acabou ficando em Santos, nos anos 60. Sempre trabalhou no
consulado e produzindo espetáculos de patinação – ele introduziu aqui as águas dançantes, sistema de luzes e fontes aquáticas, programadas de acordo
com a coreografia.
Sua mulher, Leonor Ester Quiche, foi uma das primeiras professoras de patins no
Clube Internacional de Regatas. Tort está com 84 anos. O Uruguai, hoje, é um lugar e um tempo distantes. "A maioria das
pessoas que saiu de lá foi para tentar uma vida melhor fora, ganhar mais", analisa. E foram tantos os que saíram que a população uruguaia no
Exterior é maior do que no próprio país, acredita-se.
Agora, as coisas melhoraram, ninguém mais sai. Embora 1 peso uruguaio valha cerca de 10 centavos de
real, o custo de vida é baixo, e a distribuição de renda, boa. "Não há analfabetismo no Uruguai", orgulha-se.
Outras coisas, porém pioraram. É difícil crer que Tort viverá em 2014 a mesma emoção do dia 16 de
julho de 1950. Ele se lembra bem daquela tarde, depois que o árbitro inglês George Reader apitou o fim de Uruguai 2, Brasil 1. "Estávamos ouvindo no
radio. Aos poucos, as pessoas foram saindo das casas e se abraçando nas ruas. Sem ninguém combinar nada, foram todos indo para a Avenida 18 de Julho
(a Praça Independência de Montevidéu) comemorar". Era o Uruguai, sagrando-se campeão do mundo de futebol pela segunda vez e em pleno
Maracanã. "Foi fantástico", emociona-se Tort.
Foto: Luigi Bongiovanni, publicada com a matéria
Gaúcho – Os gaúchos estão presentes nos vales ao longo do Rio da Prata (Argentina e Uruguai)
e no Sul do Brasil. Mas sua origem é mesmo uruguaia. A palavra pode derivar de guanchos, os nativos das Ilhas Canárias.
Muitos deles foram mandados pela coroa espanhola para colonizar Montevidéu. Depois, se
estabeleceram mais ao Norte – até o Rio Grande do Sul.
Detêm uma cultura própria e bem característica. Nas roupas, por exemplo, há a bombacha – calças
abotoadas no tornozelo – e o ponche – espécie de sobretudo, feito com lã de ovelhas.
Mas a maior expressão da cultura gaúcha é mesmo o chimarrão (erva-mate moída, diluída em água
quente, servida em uma cuia – vasilha feita da cueira ou do porongo -, e consumida através de um canudo de nove milímetros de diâmetro e cerca de 25
centímetros de altura, normalmente de prata lavrada, chamado bombilha).
Na extremidade inferior da bombilha, há uma espécie de peneira, do tamanho de uma moeda para
filtrar o liquido da erva.
Uruguai (República Oriental de
Uruguay)
População – 3,3 milhões (2011)
Capital – Montevidéu
PIB – US$ 49,4 bilhões (2011)
Renda per capita – US$ 14.671 (2011)
IDH – 0,783 (elevado)
Colônia em Santos - cerca de 350 famílias (estimativa do Consulado Honorário)
Datas Nacionais - 18 de julho (Dia do Juramento da Constituição) e 25 de agosto (Independência).
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