Imagem publicada com a matéria
Um país chamado saudades
Esse é o sinônimo que melhor descreve Cabo Verde, cuja população fora dele supera a de
moradores locais
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Imagine um Brasil formado apenas por negros africanos e
brancos portugueses – sem indígenas. Tal país existe, é só trocar o nome: sai o Brasil aí de cima, entra Cabo Verde, um arquipélago de origem
vulcânica na costa da África Ocidental, formado por dez ilhas. De lá, direta ou indiretamente, são cerca de 300 pessoas vivendo na Baixada Santista.
Entre elas, José Augusto do Rosário, presidente da Associação Cabo-Verdiana do Brasil. Hoje ele
tem 53 anos de idade, mas chegou aqui nos braços da mãe, quando tinha apenas 3. Vieram durante a maior, de várias ondas imigratórias do país: a que
sucedeu um grande período de seca, que durou oito anos, entre 1940 e 1948. E uma estiagem tão longa, em uma nação agrária e de poucos recursos, se
transforma rapidamente em uma desgraça humana.
"O país tinha uma condição pobre", comenta Augusto. À sua frente, uma coleção de CDs e DVDs de
Cesária Évora – a mais famosa de suas compatriotas. À sua música, atribui um retrato do que vai na alma de um cabo-verdiano: saudade. "É um país de
apenas 500 mil habitantes. Há mais gente morando fora do que lá. Sinto isso. Essa saudade da maneira de vida, das pessoas que se deixou".
Em Santos, os primeiros cabo-verdianos de que se tem notícia chegaram nos anos 20. Havia muitos
navios de pesca de baleia singrando os mares do Atlântico Sul e o Porto de Santos estava incluído na rota. Para um cabo-verdiano, chegar ou partir é
mais natural do que para indivíduos de outros povos. Assim, muitos deles embarcaram nesses navios. E, ao passarem por Santos, acabaram ficando.
A alta rotatividade em Cabo Verde tem origem e explicação históricas. O arquipélago foi
descoberto ainda em 1460. Era desabitado e serviu de entreposto para os navios portugueses, em suas viagens entre a América e a Europa. "Tudo o que
Portugal trazia para o Brasil, como plantas e animais, passava lá por um período de adaptação climática. Foi assim com o feijão, o coco e a cana".
E também foi assim com os escravos. Depois de serem arrancados de suas terras, e antes de serem
enviados ao Brasil, permaneciam em Cabo Verde, onde eram forçados a aprender o trabalho na lavoura, carpintaria, marcenaria, tear e, claro, passavam
por um processo de 'salvação da alma': eram cristianizados.
O Grupo Cultural Cabo-Verdiano apresenta danças típicas, durante uma festa da comunidade em
Santos. No programa, a Colá, Batuke e o Funaná – em pares, que guarda semelhanças com a Carimbó, originária da Região Norte do Brasil
Foto: Fernanda Luz, publicada com a matéria
'Um nache na Cabo Verde' – A formação meio que à força e a condição tardia de
colônia (a independência só veio em 1975) fazem com que o país ainda esteja "em fase de definição, até mesmo cultural", como analisa Augusto. "Há
muitas influências externas adaptadas". A começar pela língua das ruas, o criolo. Formado por 70% de português arcaico e 30% de uma miríade de
línguas africanas, nasceu do esforço de comunicação entre os dois grupos.
Assim, se alguém lhe disser "um nache na Cabo Verde", rebata polidamente: "e eu nasci no
Brasil". E se ouvir por lá uma melodia lamuriosa, pense duas vezes antes de cravar que é o fado: pode ser a morna. Já a dança chamada coladeira
faria muito brasileiro jurar que está assistindo à umbigada. Da mesma forma, quem bebe um grogue cabo-verdiano não recusaria uma cachaça nacional:
ambos são destilados da mesma e única cana-de-açúcar.
As similitudes culturais são muitas. Quem nasce em Cabo Verde tem grandes possibilidades de se
sentir em casa no Brasil. Mas o que porventura seja um pouco diferente ou não exista por aqui pode muito bem ser reproduzido. É o caso das
choradeiras, uma tradição que durante muito tempo foi vista nos velórios cabo-verdianos no País, mas que vem se tornando cada vez mais rara.
Consiste em expressar o sentimento de luto através da música, com a adaptação dos versos, em criolo, à trajetória do morto.
Na cozinha, a catchupa pode ser considerada uma feijoada vitaminada. Leva feijão jalo,
milho de canjica, couve, mandioca e batata doce. "Durante muito tempo, em toda Cabo Verde o trabalho era rural. Preparavam a catchupa no
almoço, repetiam na janta e faziam um guisado no café da manhã do dia seguinte", explica Augusto.
Nas casas cabo-verdianas no exílio, haverá sempre uma bandeira ou um pôster evocando a terra
natal. Entre eles, também se reproduzirá um traço que falta no Brasil: o de todos se sentirem responsáveis pelos outros, como se todos os
cabo-verdianos formassem uma grande família. Ao ponto de a comunidade, apesar da pobreza, adotar os meninos de rua, caso lhes faltem os pais por
algum motivo. "Costumo dizer que Cabo Verde não foi descoberta, mas inventada".
José Augusto do Rosário, presidente da Associação Cabo-Verdiana do Brasil
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
Febre de Brasil – O presidente da Associação Cabo-Verdiana do Brasil, José Augusto do
Rosário, diz que há em curso uma febre brasileira em Cabo Verde. São novelas, roupas, jeitos e até supermercados dedicados apenas a artigos
brasileiros espalhados pelas ilhas. E quando a seleção canarinho entra em campo, Cabo Verde se veste de verde e amarelo.
País de imigrantes – Cabo Verde foi descoberto ainda em 1460. A população estimada no
exterior supera em número a do próprio país. Só para se ter uma ideia de alguns locais: são cerca de 250 mil cabo-verdianos nos
Estados Unidos, 100 mil em Portugal, 37.500 nos
Países Baixos, 35 mil em Angola, 22.500 no
Senegal e 19.500 no Brasil.
Cesária Évora – Chamada por muitos de A Rainha da Morna, ela foi, realmente, a
cantora de maior sucesso em Cabo Verde. Cruzou as fronteiras de seu país e popularizou o gênero pelo mundo, especialmente nos países lusófonos.
Nasceu em 1941 no Mindelo, na Ilha de São Vicente, e começou a cantar de menina. A partir da independência, em 1975, com problemas financeiros e
combatendo o alcoolismo, abandonou a carreira para sustentar a família.
Em 1988, incentivada por Bana, cantor e empresário de Cabo Verde, foi persuadida a voltar aos
palcos. Cesária gravou o disco A Diva dos Pés Descalços no mesmo ano, que a projetou ao estrelato internacional. Em 2004, foi vencedora do
Grammy na categoria World Music.
|
"Foi a maior alegria na hora que cheguei (à casa dos pais, em Cabo Verde, depois de 24
anos distante) e a maior tristeza quando parti de novo" |
Antonio Carlos Braz, imigrante cabo-verdiano radicado em Santos desde 1956 |
Antonio Carlos Braz
Foto: Bruno Miani, publicada com a matéria
Vítima da seca – Antonio Carlos Braz, hoje com 80 anos, é outro imigrante da seca
cabo-verdiano dos anos 40. Ele lembra até hoje o dia que saiu da Ilha de São Nicolau: em 12 de julho de 1956. Chegou oito dias depois a uma Santos
bastante diferente da paisagem a que estava acostumado: não havia luz, nem água encanada – com a seca, a cachoeira que abastecia parte da ilha
praticamente secara.
Todo mundo trabalhava na roça. As famílias cuidavam do seu milho, da sua banana, papaia, mandioca,
feijão, batata, abóbora; das suas cabras, galinhas e vacas. Para espantar o mau olhado, alguns colocavam um crânio de bode à porta de casa –a
maioria de barro. E não havia cerveja. Os jovens se reuniam no trapiche para fazer uma "bafa", em outras palavras, tomar um grogue e assar um
peixe. "Sentavam-se à Lua", como diz, para uma "tocatina", ou seja, cantar e tocar mornas e coladeiras à rabeca, ao violão e no violino. Ao
fundo, no negrume da noite, o som do mar batendo nas rochas.
Tudo isso o acompanha na forma de saudade, como é de se esperar. Nem mesmo o fato de ter se
estabelecido bem em Santos poderia mudar isso. Aqui, trabalhou como motorneiro dos bondes do Serviço Municipal de Transportes
Coletivos (SMTC), até o final deles, em 1973. Depois, comprou um táxi.
Visitou Cabo Verde três vezes ao longo dos anos. A primeira, em 1980, quando reviu os pais, depois
de 24 anos. "Foi a maior alegria na hora que cheguei e a maior tristeza na hora que parti de novo", recorda. Na última visita, em 1996, encontrou um
país totalmente novo. De fato, além da modernidade, dos 52 países africanos, Cabo Verde é o terceiro em estabilidade política, liberdade de imprensa
e alfabetização.
Conexão Carnaval – Em 1922, o jovem cabo-verdiano Eugenio Pedro Ramos extasiou-se com o
Carnaval de Mindelo, na Ilha de São Vicente – muito mais exuberante do que o Carnaval na sua mais recatada
Ilha de São Nicolau. Divertiu-se com os blocos de cargos alegóricos e com a chuva de serpentina das casas.
Em 1929, depois de percorrer meio mundo em navios baleeiros, chegou a Santos e se estabeleceu no
Macuco, trabalhando no Porto. Mas o dia distante do Carnaval em São Vicente deve ter ficado incrustado em sua alma.
Assim, em 1946, começa a surgir o lendário Cabo Roque, cabo samba da X-9, ao lado de sua
mulher, a madrinha Tia Inês. A dupla se apropriou, no bom sentido, da Escola de Samba, e marcou os carnavais santistas. Com isso, Cabo
Roque ficou conhecido na história como O Condestável – título do primeiro oficial da coroa, subordinado apenas ao rei, que comandava os
exércitos.
República de Cabo Verde
População – 491.875 (2010)
Capital – Praia (na ilha de Santiago)
Línguas - portuguesa (oficial), criolo cabo-verdiano
PIB – US$ 1,94 bilhão (2010)
Renda Per Capita – US$ 3.944,09
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – 0,534 (2010, desenvolvimento médio)
Datas nacionais - Dia da Independência de Portugal (5 de julho de 1975)
Colônia – São cerca de 300 pessoas (incluindo a segunda geração) na Baixada
Santista.
|
|