ARTE MANUAL - Poucas mulheres ainda se dedicam à atividade no local
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
ARTESANATO
Tradição sob ameaça
Apenas cinco mulheres permanecem na atividade de bordadeiras do Morro São Bento
e não devem ser substituídas no futuro
Da Reportagem
"Se passa um e avisa 'vais morrer amanhã', então
eu bordo hoje", ri Beatriz de Freitas Leão Pereira, de 80 anos, bordadeira do Morro São Bento, uma das cinco guardiãs que ainda restam de uma
tradição de mais de 60 anos na Cidade.
Remanescentes de um grupo que reuniu mais de 300 mulheres na década de 80,
praticamente todas portuguesas, ela e outras quatro são as últimas que ainda produzem e vendem tecidos com uma técnica refinada de bordado criada na
Ilha da Madeira, e que hoje é um patrimônio lusitano preservado por um instituto cultural.
A atividade das mulheres é tema de uma dissertação de mestrado apresentada na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), para o curso de Gerontologia, pela jornalista Gisela Kodja (ver matéria).
Maria Alexandre Fernandes, de 70 anos, única brasileira do grupo, mas que, seguindo a
tradição, aprendeu o ofício ainda jovem, de sua mãe portuguesa, confirma o sentimento de Beatriz. "Vamos bordar enquanto Deus nos der vista. Quero
morrer com o dedal na mão".
Apesar da beleza dos pontos e do requinte na escolha do linho e das linhas, a tradição
não deve resistir a uma nova geração. As filhas e netas, apesar da admiração pelo ofício, não aprofundaram a técnica a ponto de poder vender os
trabalhos.
"Nós contamos o segredo, até ensinamos os pontos, mas ninguém consegue fazer igual. É
o jeito de pegar na agulha, de usar a linha. Ninguém consegue", lamenta Maria Teresa Gonçalves Pestana, consciente de que a tradição deve se
extinguir quando elas deixarem de produzir os bordados.
O trabalho é feito em vários tipos de peças, de lenços a enxovais inteiros, sempre
garantindo a qualidade do material e o esmero do ponto.
Pela delicadeza e dedicação exigidas pelo bordado, as peças não custam pouco. Um jogo
de cama de solteiro não sai por menos de R$ 250,00. Uma toalha de banquete pode custar mais de R$ 1 mil, por conta de quase quatro meses de
trabalho.
Não adianta pechinchar, elas não desvalorizam o próprio ofício para vender mais. Hoje
as peças mais caras são feitas apenas por encomenda.
"A procura pelo bordado caiu. É um trabalho caro, acessível para poucos", explica
Teresa. Atualmente, a "linha de produção" das bordadeiras funciona à tarde, quando as mulheres se dedicam às agulhas e aos tecidos, normalmente no
pátio de suas casas, com visão privilegiada para o porto ou para o canal 2.
A venda ocorre apenas no primeiro domingo do mês, no Ilha Porchat Clube, e no domingo
seguinte, no Orquidário. Maria Paixão de Abreu e Isabel da Paixão Fernandes de Andrade completam o grupo.
IDEAL |
"Vamos bordar enquanto Deus nos der vista.
Quero morrer com o dedal na mão"
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Maria Alexandre Fernandes
Bordadeira nascida no Brasil
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Aprendizado - Invariavelmente, todas elas aprenderam a bordar com suas mães e
irmãs mais velhas, ainda na infância.
A tradição seguia um raciocínio lógico. As mães ensinavam para as filhas aquilo que
elas sabiam fazer. O conhecimento era - e ainda é - repassado geração após geração na Ilha da Madeira.
O bordado, o vinho e o vime são produtos nacionais da Ilha da Madeira, protegidos pelo
Instituto do Bordado, Tapeçarias e Artesanato da Madeira (Ibtam).
"Fico triste de saber que aqui em Santos a tradição vai acabar", diz Teresa,
reconhecendo que as filhas vivem outra realidade, com dedicação ao estudo, não dependendo dos ensinamentos vindos das mães.
"Antes, uma moça para ser distinta devia saber cozinhar, lavar e bordar. Hoje elas
precisam dos diplomas", explica Beatriz, justificando o desinteresse pelo ofício. "Como será no futuro? Aí não dá para saber".
Elas mantêm viva a tradição importada de Portugal e que tem mais de 60 anos na
Cidade.
Na década de 80, eram mais de 300
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
Portugal sempre é lembrado nas conversas
Nas tardes de trabalho, as conversas das bordadeiras têm quase sempre o mesmo tema:
Portugal. Mesmo vivendo há várias décadas no Brasil e tendo construído suas famílias aqui, elas não esquecem a terra natal, de onde saíram ainda
jovens, na maioria dos casos, recém - casadas.
Maria Teresa Gonçalves Pestana, hoje com 67 anos, desembarcou em Santos com 21, meses
depois do marido, que buscou no Brasil melhores condições de vida. O ponto de bordado da Ilha da Madeira veio com ela. "Aprendi com 6 ou 7 anos".
Beatriz de Freitas Leão Pereira, de 80 anos, chegou ao País aos 26 anos, também
trazida pelo marido. "Aprendi o bordado ainda criança. No navio, viajei bordando um lencinho em cima do mar".
A mesma história vale também para Isabel da Paixão Fernandes de Andrade e para Maria
Paixão de Abreu. Atualmente, todas as associadas da União das Bordadeiras do Morro São Bento são viúvas, o que fez aumentar ainda mais a união do
grupo.
A única cuja história foge do padrão de imigração é Maria Alexandre Fernandes, de 70
anos. Brasileira, ela nasceu no São Bento e vive na mesma casa até hoje. "Aprendi com minha mãe e faço o que gosto", garante, ainda com um desejo:
"Gostaria de, um dia, conhecer a Ilha da Madeira".
Apesar do saudosismo, dos lenços típicos portugueses nos ombros e da devoção fervorosa
a Nossa Senhora de Fátima, a vida com os filhos e netos brasileiros as deixa mais longe de Portugal.
"Não quero voltar não. Gosto de Portugal, mas agora sou brasileira", afirma Beatriz,
com o sotaque carregado. "Ainda sinto saudade do fado, que é lindo, mas minha vida é no Brasil", confirma Teresa.
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Quase todas elas são viúvas
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Fonte de renda - Após a chegada no Brasil, em pouco tempo, a tradição
portuguesa se transformou em fonte de renda para as famílias. No começo, as bordadeiras vendiam para pessoas que conheciam o trabalho.
Em seguida, fabricantes de tecido da Capital faziam encomendas, mas pagavam pouco por
peça, reduzindo o lucro, já diminuto.
A solução para as bordadeiras foi montar uma associação para vender por um preço
considerado mais justo por elas. Com isso, em 1984, foi criada a União das Bordadeiras do Morro São Bento, hoje com apenas cinco membros.
As vendas são feitas duas vezes por mês, porque dificilmente a clientela sobe o morro.
"As pessoas têm medo", dizem.
Semelhança - Não foi por acaso que o São Bento reuniu, no início do século
passado, a comunidade da Ilha da Madeira em Santos. Ilha vulcânica no meio do oceano, a Madeira tem várias semelhanças com o morro, com suas ruas
íngremes e vielas, além da vista privilegiada.
"Nós viemos para cá (morro) porque a comunidade já estava estabelecida aqui", explica
Teresa, recordando que, na época de sua chegada, a ocupação das encostas do São Bento era muito menor. "As casas não eram tão grudadas umas nas
outras".
A jornalista Gisela Kodja escolheu a atividade das mulheres para sua dissertação de
mestrado
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
Tema foi abordado em dissertação na PUC
A mestranda da PUC Gisela Kodja percorreu um longo caminho antes de basear sua
dissertação na vida das bordadeiras do São Bento. A proposta inicial, apresentada no Departamento de Gerontologia da universidade, era acompanhar
grupos de imigrantes sediados em Santos e que, após construir a vida, não tinham mais intenção de voltar para seus países.
Apurando o projeto, ela acabou focalizando sobre o tema comunidade laboral de idosos,
resultando no contato com as idosas do morro. "Acabei modificando o projeto de pesquisa por causa delas", diz.
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Bordado foi o caminho para manter a união
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Após meses de convivência, Gisela concluiu que o bordado é o principal instrumento
para manter a identidade cultural das mulheres, que ainda jovens se viram em um lugar desconhecido.
O bordado foi o caminho para manter a unidade do grupo, as tradições da Ilha da
Madeira, as lembranças da terra e da família deixadas para trás.
"Elas têm muito orgulho de Portugal", define. "Quando chegaram ao Brasil, não tentaram
retirar nada da comunidade. Apenas trouxeram o ofício aprendido na Ilha da Madeira como uma contribuição".
Para Gisela, estar em grupo, fazendo o que gostam, foi a forma encontrada pelas
bordadeiras de cultivar as referências culturais, evitando, assim, um rompimento com o passado, "mantendo vivas as lembranças".
Longe do país de origem, no bordado elas se reconhecem como semelhantes.
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