No rastro de uma ancestral ligação:
a Madeira e o Brasil
Alberto Vieira
As ligações da Madeira ao Brasil são ancestrais. O
madeirense esteve nas origens da ocupação portuguesa do solo brasileiro, iniciado no século XV a partir da ilha de S. Vicente. Foi graças ao
contributo dos nossos antepassados que o Brasil entrou na esfera do mercado europeu, tornando-se numa periferia de respeito pela contribuição dos
produtos cultivados (açúcar e café) ou das riquezas do solo, como o ouro.
No século XVI foi a atracção pelo exotismo das plumas ostentadas pelos indígenas, o
colorido dos papagaios. A isto sucedeu a garantia de uma inexcedível riqueza arrancada à terra. A água abundante e o solo fértil assim o indiciavam.
Por tudo isto, o Brasil ficou no nosso imaginário como a esperança, a via para o lucro fácil, quando a fome e a guerra entravam pela nossa porta
adentro. Mas, esta é uma situação recente que surgiu no limiar da independência da colónia. Aqui estamos perante um fenómeno diferente daquele que
sucedeu até ao século XVIII.
Para tràs ficou a colonização, que no entender de Oliveira Martins foi uma
oportunidade perdida, em que o movimento de gentes seguiu os impulsos da política de colonização. Primeiro foi o movimento livre de aventureiros em
que se integraram muitos madeirenses ligados à safra do açúcar: lavradores, carpinteiros e mestres de engenho seguiram o rastro dos canaviais e
transferiram-se de armas e bagagem para o outro lado do Atlântico.
Em Recife, um dos principais bastiões do açúcar brasileiro, a presença madeirense foi
evidente. Entre muitos destaca-se a figura de João Fernandes Vieira, que ficou célebre, não pelos engenhos que conseguiu assenhorear-se no momento
da ocupação holandesa, mas sim pela bravura com que se bateu contra estes que lhe havia propiciado tamanha fortuna.
No século XVIII afirma-se uma nova política de colonização, incentivada pela
necessidade de preservar a soberania nacional em face das espoliações castelhanas. Foi a época da descoberta dos sertão pelos bandeirantes, mas
também, de povoamento das terras do Sul por casais madeirenses e açorianos. A cidade de Portalegre é um marco deste movimento. Quem a fundou foi um
madeirense, mas foram os açorianos que lhe deram vida e a transformaram numa grande metrópole. Aqui tudo começou pela ilha de Santa Catarina e
avançou no continente até às fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madrid (1750). Povoar era assim uma forma de preservar a soberania e de
encontrar um recanto de felicidade para estes esfomeados e espoliados das ilhas. Só da Madeira sabe-se da saída de 226 casais.
Hoje, para o visitante que percorre estas paragens, é fácil deparar-se com alguns
vestígios da presença insular, misturados com os de outros que os seguiram no século XIX, como os italianos e alemães. Aqui e acolá, uma construção
que denuncia terra açoriana: o teatro das festas do Espírito Santo. Falando com as gentes do campo descobre-se a presença insular -
madeirense e açoriana - remanescente na nomenclatura dos produtos e artefeactos.
Todavia, o grande momento da emigração brasileira estava para chegar. Foi a segunda
metade do século XIX que o propiciou, sendo o principal motivo desta diáspora européia a abolição da escravatura. O europeu, espoliado e indefeso, é
contratado para o lugar do escravo negro em condições em todo semelhantes às que alimentaram a diáspora africana. Por isso, não será de admirar se
vermos repetir que estamos perante a "escravatura branca". Esta voz foi levantada pelos políticos na ilha, mas também, expressa na voz pungente de
algumas das vítimas. É o caso da carta de João José Basílio Pereira, remetida do Rio a 14 de maio de 1852 e que foi publicada em O Progressista
como forma de aviso. Mesmo assim, o Brasil continuou a ser o principal destino da emigração madeirense.
E as portas continuaram abertas, sempre prontas a receber os fugitivos da guerra e
fome que assolou a Europa na primeira metade da presente centúria. [N.E.: século XX].
É desta última leva que restam vestígios inolvidáveis das tristezas e alegrias que o
movimento propiciou. À partida a esperança dos que saem misturava-se com as lágrimas dos que ficam. Aqui, a Bahia de Todos os Santos foi a porta de
entrada para S. Paulo, mas também o local de permanência de muitos. A euforia do tráfico portuário, aliada à vivência nostálgica que a Bahia
propiciava foram fortes motivos para a existência de uma forte colónia madeirense, reconhecida nas bordadeiras ou na casa da Madeira, sinónimo de
uma saudade acumulada.
Depois, as cartas trocadas a avivar as esperanças e o permanente olhar ao firmamento à
procura do "vapor" que desembarcaria no cais os parentes transfigurados, com tecidos de cores garridas, mãos e dedos cobertos de grossas pulseiras e
anéis de um dourado vivo e chamativo. Tudo ornando um corpo roliço, denunciando a abundância e fazendo esquecer a figura cadavérica da partida.
Perante a curiosidade de familiares e estranhos estava a figura do brasileiro, tão prosaicamente celebrada na literatura oitocentista. Ele é a
expressão do sonho feito realidade.
Mais próximo de nós a literatura veio revelar-nos outra face recôndita do brasileiro.
Ferreira de Castro, também ele emigrante, traçou com um cruel realismo o quotidiano desses aventureiros. "A selva" é o retrato das esperanças
e frustrações deste emigrante que nunca conseguiu regressar coroado de glória.
A figura do brasileiro, o nosso parente de regresso à terra, tem origem no demerarista
- o que retornou rico de Demerara - e reflecte-se, a partir da década de cinquenta no venezuelano ou sul-africano. Em qualquer dos casos, ela é
fruto de uma aculturação e a representação perfeita da miséria e opulência. É a imagem reflectida dos anseios dos que ficaram e dos que partiram sem
nunca regressar. Sim, porque o regresso é o prémio para os vencedores e não para os vencidos...!
Novo Milênio promoveu uma revisão do texto, notadamente ajustando a
pontuação e a divisão em parágrafos, mantendo quanto possível a forma lusitana de grafia do original. |