Parede do engenho dos Erasmos, em Santos:
pela janela da direita eram atiradas flechas contra agressores
Engenho do século 16 guarda segredos da povoação do país
"...a todos nos pareceu tão bem esta terra que o capitão irmão determinou de a
povoar e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas e fez uma vila na ilha de São Vicente e outra nove léguas dentro pelo sertão à
borda de um rio que se chama Piratininga e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficiais e pôs tudo em boa obra de Justiça de que
a agente toda tomou muita consolação com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimônios ... e ser cada um senhor do seu
... e ter todos os outros bens da vida segura e conversável."
(Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso de Sousa, em seu Diário).
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Rodrigo Castro
da Reportagem Local
Mais de 40 anos depois de descoberto casualmente, o engenho São
Jorge dos Erasmos, em Santos (litoral de São Paulo), deve começar a fornecer "provas materiais" do início do primeiro projeto de colonização oficial
do Brasil, a cargo de Martim Afonso de Sousa.
Pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Católica de Santos pretendem
juntar aos textos objetos que documentam a vida cotidiana e o trabalho dos primeiros senhores de engenho do país.
O terreno do engenho foi tombado em 1974 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo). Apenas em 1996 começaram os trabalhos de prospecção das ruínas.
(...)
Uma das duas paredes que restaram do engenho dos
Erasmos, construído por volta de 1533 por Martim Afonso de Sousa na ilha de São Vicente
A primeira fábrica do Brasil
Arqueólogos estudam as ruínas de um dos primeiros engenhos do país, construídos por
volta de 1533
Fausto Siqueira
da Agência Folha, em Santos
Uma equipe de arqueólogos e outros pesquisadores da USP e da UniSantos começará em março a
escavação pioneira do terreno onde foi construído o primeiro, ou um dos três primeiros, engenhos de açúcar do Brasil.
O engenho de São Jorge dos Erasmos, em Santos (SP), construído no século 16, se encontra em
ruínas, mas é uma relíquia arqueológica capaz de oferecer explicações sobre as origens da indústria brasileira e sobre o cotidiano do trabalho no
início da ocupação portuguesa do país.
O trabalho dos pesquisadores, da USP (Universidade de São Paulo) e da UniSantos
(Universidade Católica de Santos), começou no último dia 16 de julho. A primeira fase, de prospecção, deveria terminar na quinta-feira passada.
Na etapa inicial foram levantados dados para delimitar as dimensões do sítio arqueológico do
engenho, situado no sopé do morro da Nova Cintra, na região da Zona Noroeste (periferia de Santos). Os pesquisadores pretendem preparar a planta
mais detalhada que já se fez do local e confrontá-la com outras duas conhecidas, elaboradas pelo arquiteto Luís Saia, nos anos 60, e pelo holandês
Paul Meurs, no início dos 90.
A equipe também está analisando material encontrado na superfície do terreno, como
fragmentos de louça, cerâmica, telhas, madeira, metais e ossos de animais. Cada fragmento encontrado é lavado e numerado. Pedaços de louça de
pratos, por exemplo, são colados, com a finalidade de tentar reconstituir as peças. Esse material ficará armazenado na sede do Iparq (Instituto de
Pesquisas em Arqueologia), da UniSantos, no Museu de Arte Sacra, situado no morro de São Bento, em Santos.
Escavação - De acordo com a coordenadora do trabalho, Margarida Davina Andreatta,
arqueóloga do Museu Paulista da USP, a etapa de escavações deve começar em março, após o período de chuvas em Santos.
A seqüência do projeto dependerá da obtenção de financiamento junto a instituições de
pesquisa. Até agora, o trabalho foi realizado com recursos do Museu Paulista - mais conhecido como Museu do Ipiranga - e da Prefeitura de Santos,
que cedeu geólogos, arquitetos e trabalhadores que fizeram a limpeza do terreno. O 2º Batalhão de Caçadores do Exército, em São Vicente, também
colaborou, enviando soldados que ajudaram no trabalho de campo.
Segundo Margarida Andreatta, as escavações revelarão o solo original do engenho, atualmente
coberto por uma camada de 30 a 50 centímetros de terra e sedimento, acumulados ao longo de mais de quatro séculos.
A arqueóloga Eliete Maximino, coordenadora do Iparq, da UniSantos, disse que, com as
escavações, será possível determinar como se relacionavam as estruturas do engenho e como se comunicavam suas áreas internas.
A edificação original do engenho, atingida por um incêndio no início do século 17, está
reduzida a praticamente duas paredes, construídas à base de pedras e de uma argamassa de cal, areia e conchas, segundo Margarida Andreatta.
Ruínas doadas - As ruínas, doadas em 1958 à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP pelo proprietário do terreno, Octávio Ribeiro de Araújo, ocupam uma área de cerca de 3.200 metros quadrados (meio campo de futebol).
A área em torno das ruínas (cerca de 41 mil metros quadrados, o equivalente à metade do
estádio do Maracanã), foi doada em 1987 à Prefeitura de Santos pela Pratex Empreendimentos Imobiliários, então proprietária do terreno.
A doação foi resultado de uma negociação entre a prefeitura e a empresa, impedida à época
pelo Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) de realizar uma construção no local. Com a doação à prefeitura, a área foi
considerada de utilidade pública e garantiu-se a visibilidade em torno das ruínas.
Segundo Eliete Maximino, toda a documentação original do engenho, escrita em flamengo
arcaico, está na Holanda, sendo traduzida pelo arquiteto Paul Meurs.
Em razão do andamento das pesquisas, a visitação ao engenho está restrita às quintas-feiras,
das 14h às 17h. As visitas devem ser agendadas pelo telefone (013) 235-3137.
Restos de pratos encontrados nas escavações
superficiais do engenho
Pesquisa acha fôrma de pão-de-açúcar
da Agência Folha, em Santos
Uma mó de pedra é considerada pela arqueóloga Margarida Andreatta como a peça mais
importante descoberta desde o início dos trabalhos. A mó é uma roda com cerca de um metro de diâmetro que fazia girar os eixos com os quais se
esmagava a cana para obter o caldo. Era acionada por animais ou por escravos.
Outra peça importante para a reconstituição histórica do engenho são fragmentos das fôrmas
de pão-de-açúcar, as quais os pesquisadores estão tentando reconstituir.
Essas fôrmas - cones com um furo na ponta - recebiam o caldo de cana fervido e o armazenavam
por 45 dias, período após o qual o "pão" (bloco de açúcar endurecido) era retirado.
O "pão" era cortado pelos escravos de modo que fossem separadas as partes "nobres" do açúcar
- destinadas à exportação - da parte que misturava o bagaço de cana e impurezas - destinadas à alimentação dos escravos. A parte nobre do "pão" era
mais clara e ficava depositada na camada superior do bloco de açúcar. Na parte inferior, se depositava o açúcar mascavo, mais escuro.
Os pesquisadores estão tentando reconstituir também restos de pratos de louça. Em dois dos
fragmentos aparecem os selos que identificam os fabricantes, ingleses. Pratos e telhas serão datados a partir da comparação com modelos que aparecem
em catálogos internacionais de arqueologia.
Um nicho embutido em uma das paredes é a indicação do provável local onde ficava a capela do
engenho. Também apareceram cinco soleiras de pedra, uma das quais com marcas em forma de meio semicírculo, que indicam o movimento das portas. O
local, segundo Andreatta, era provavelmente um dos cômodos da casa do senhor do engenho.
Nas paredes que restaram há orifícios retangulares verticais - as "seteiras". As "seteiras
serviam para que os ocupantes do cômodo observassem eventuais ameaças externas e alvejassem os inimigos sem que pudessem ser atingidos por quem
estivesse do lado de fora.
Pesquisadores limpam ruínas e colhem material do
terreno
Pirata holandês destruiu engenho
da Agência Folha, em Santos
O engenho dos Erasmos seria um dos três primeiros engenhos de cana-de-açúcar construídos no
Brasil. É o único do qual ainda há vestígios. Há divergências entre os historiadores a respeito de qual teria surgido primeiro: o engenho Madre de
Deus, o engenho de São João ou o engenho dos Erasmos, todos em Santos e erguidos na primeira metade do século 16.
Segundo texto da professora Fernanda Maria Felipe dos Anjos, que pesquisa as ruínas, o
engenho de São Jorge dos Erasmos nasceu de uma sociedade comercial que envolveu cinco sócios, entre os quais Martim Afonso de Sousa, primeiro
colonizador "oficial" do Brasil. A sociedade reunia o flamengo Johan Van Hielst, Martim Afonso (donatário da Capitania de São Vicente), Pero Lopes
de Souza (irmão de Martim Afonso), Francisco Lobo e Vicente Gonçalves.
O engenho foi batizado como engenho de São Jorge dos Erasmos depois de ter sido adquirido
pela empresa Erasmo Schetz e Filhos. Erasmo Schetz, banqueiro e proprietário de navios em Amsterdã, comprou as partes de cada um dos sócios em 1544
e tornou-se o único proprietário do engenho.
O período áureo do engenho de São Jorge dos Erasmos teria ocorrido sob a administração dos
Schetz, que, de acordo com documentos históricos, manteve a produção de açúcar no local pelo menos até 1580.
No início do século 17, o engenho começou a sofrer os efeitos da decadência da cultura do
açúcar no país. Por volta de 1615, a edificação teria sido destruída por um incêndio provocado pelo pirata holandês Joris
Spilbergen.
O engenho é considerado o único no Brasil, e talvez, no mundo, em estilo açoriano (dos
Açores), onde os portugueses desenvolveram a indústria açucareira. Segundo relatório de 1966 do arquiteto Luís Saia, a característica açoriana do
engenho é dada pela construção aglutinada, com todas as instalações sob um mesmo teto. Os engenhos nordestinos, posteriores ao dos Erasmos, tinham
edificações separadas para cada função, estilo próprio dos engenhos brasileiros.
A arqueóloga Margarida |Andreatta, da USP, que coordena a pesquisa
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