VIAGEM FATAL – No dia 6 de setembro de
1865, era inaugurada a linha São Paulo-Santos e, no mesmo dia, o trem descarrila perto do Rio Tamanduateí, matando o maquinista
Imagens: reproduções, publicadas com a matéria
OPINIÃO
Importância logística da ferrovia é redescoberta
José Alfredo V. Pontes
[*]
O vício político brasileiro de realizar inaugurações festivas de obras
inconclusas resultou em tragédia na primeira viagem experimental de trem ligando Santos a São Paulo, no dia 6 de setembro de 1865, há exatamente 140
anos. Apesar desse infortúnio, ocorrido quase no final da viagem inaugural, essa ligação ferroviária foi um fator decisivo para o desenvolvimento
posterior da cidade e do País.
Pode-se dizer, sem nenhum exagero, que o marco inicial da modernização da cidade e do Estado de São Paulo ocorreu
nesse dia, quando o primeiro trem da São Paulo Railway vindo de Santos para São Paulo descarrilou próximo do Rio Tamanduateí antes de atingir a
primitiva e inacabada Estação da Luz.
Como consolo atenuante do vexame, a história registra que a poderosa e progressista Inglaterra também sofreu um
constrangimento acidental por ocasião da inauguração de sua primeira linha interurbana ligando Liverpool a Manchester, em 1830, quando um assessor
do primeiro-ministro morreu ao ser atropelado por uma locomotiva que se movia lenta e silenciosamente.
No caso brasileiro, a desgraça atingiu duplamente o maquinista, única vítima fatal dentre os feridos e, ainda
assim, responsabilizado pelo acidente por ter imprimido a extraordinária velocidade de 60 km por hora. Uma investigação posterior, porém, revelou
que os dormentes estavam mal fixados, provocando a demissão de um engenheiro fiscal.
Até então, a cidade de São Paulo tinha cerca de 25 mil habitantes em toda a área do município, com apenas 19 mil
residindo no perímetro urbano. A mancha urbana crescera timidamente desde a época colonial, pois mesmo a instalação da Faculdade de Direito, em
1828, embora muito importante do ponto de vista cultural e político, pouco agregara à cidade em termos econômicos. A atividade urbana, restrita à
burocracia provincial e à passagem de tropas em trânsito para o litoral, era monótona e sossegada, como registraram diversos cronistas que residiram
ou passaram pela cidade em meados do século 19.
Desde 1834, durante o governo do Regente Feijó, pensava-se na construção de uma estrada de ferro ligando Santos a
São Paulo. A barreira representada pela muralha de 800 metros da Serra do Mar inibia o desenvolvimento do planalto desde o século 16, quando foi
fundada a cidade de São Paulo, pois o transporte de cargas por tropas de mulas era extremamente precário e limitado. A declividade abrupta da Serra,
porém, tornava o custo de construção de uma ferrovia altíssimo para as possibilidades da época.
Posteriormente, no entanto, com a expansão da cafeicultura para o Oeste do Estado nas décadas seguintes, criaram-se
condições objetivas para a viabilização de um investimento de grandes proporções. Mais próximo das novas áreas produtoras, o Porto de Santos passava
a rivalizar com o de São Sebastião e o de Ubatuba, tradicionais portos de escoamento da decadente produção do Vale do Paraíba.
Cientes da potencialidade da nova cafeicultura do Oeste paulista, baseada no trabalho assalariado de imigrantes e
assentada em melhores técnicas de plantio e beneficiamento, capitalistas brasileiros liderados pelo Barão de Mauá conseguiram formar uma empresa com
o propósito de viabilizar a ligação ferroviária de São Paulo com Santos, iniciando sua construção em 1860. E, posteriormente, por carência de mais
capital de investimento, associaram-se ao Banco Rotschild.
Com o advento da ferrovia, a cidade alterou-se irreversivelmente com a febre de progresso da "São Paulo que não
pode parar". Uma vez regularizadas as viagens, a partir de 1867, a cidade transformou-se no principal polo urbano da próspera economia cafeeira
paulista.
A circunstância geográfica de grande entroncamento das rotas de acesso ao interior da Bacia do Prata foi
potencializada enormemente, resultando na consolidação de São Paulo como um "porto do planalto", atraindo tanto o comércio atacadista como a
nascente industrialização. A antiga "boca de sertão" havia entrado inexoravelmente em um ciclo econômico virtuoso que caracterizaria o final do
século 19 e se estenderia a todo o século 20.
Como desdobramento desse processo, a cidade atingiu o número de 250 mil habitantes em 1900, ou seja, a população
havia decuplicado em apenas 35 anos decorridos após a chegada da ferrovia. Em 1915, já era o maior centro industrial brasileiro. Em 1930 alcança uma
população de mais de 800 mil habitantes. Vinte anos depois, serão 1,5 milhão de moradores. E, durante todo esse período, a estrutura do transporte
de cargas no interior do estado e do Brasil era predominantemente ferroviária, utilizando uma malha que interligava todo o Sul, Sudeste e parte do
Centro-Oeste. Essa hegemonia só seria quebrada a partir dos anos 50.
A malha ferroviária paulista não foi a primeira do Brasil, mas certamente foi a mais importante, pois contribui
decisivamente para alavancar o formidável desenvolvimento econômico do Estado nas últimas décadas do século 19 e na primeira metade do século 20. Em
1867, primeiro ano de funcionamento regular da São Paulo Railway, foram transportadas 26 mil toneladas anuais de carga. Apenas 3 anos depois, foram
transportadas 71.531 toneladas de mercadorias entre São Paulo e Santos. E, em 1900, seriam 1.965.920 toneladas, ou seja, 75 vezes o movimento do
primeiro ano.
Tamanho crescimento exigiu a duplicação da ligação São Paulo/Santos, concluída em 1901. Nesse período, houve uma
extraordinária ampliação da malha paulista interiorana, com a abertura sucessiva de novas linhas e empresas nacionais: Paulista (1868), Ituana
(1870), Sorocabana e Mogiana (1872). Em 1940, a malha ferroviária brasileira atingia 34.252 quilômetros, sendo 7.540 no Estado de São Paulo (22%).
Dez anos após (1950), porém, um estudo da Câmara dos Deputados alertava sobre as ameaças que pairavam sobre o
sistema ferroviário brasileiro. Alguns pontos críticos eram apontados:
1) Fraca densidade de tráfego;
2) Diversidade das mercadorias trocadas;
3) Escoamento sazonal da produção agrícola;
4) Congelamento das tarifas;
5) Concorrência dos transportes rodoviários.
Um artigo do jornalista Júlio de Mesquita Neto publicado no Estado em 30 de junho de 1950 informava que o
ápice do sistema ferroviário paulista fora atingido em 1948. A partir daí, já se vislumbrava uma possível decadência: "pois o sistema ferroviário
nacional não tem acompanhado, nos últimos anos, o desenvolvimento econômico do Brasil".
A falta de melhor integração Norte-Sul, parcialmente atendida pela navegação de cabotagem, era, na opinião de Júlio
de Mesquita Neto, um dos maiores problemas, visto que a maior parte das linhas eram direcionadas para o sentido Leste-Oeste.
E, de fato, os anos 50 e 60 assistiram à rápida deterioração dos serviços ferroviários, época caracterizada pela
priorização excessiva dada ao transporte rodoviário. Mas, sem nenhum exagero, pode-se afirmar que as ferrovias alavancaram a modernização do Brasil
por mais de 80 anos como principal protagonista do setor de transportes.
E, nos dias de hoje, sua importância logística vem sendo novamente defendida em diversos estudo sobre os chamados
"corredores de exportação" em decorrência da sua condição potencial de redução do "custo Brasil".
[*] José Alfredo V.
Pontes é historiador |