Em
1962, foi publicado em Sorocaba/SP este livro de 200 páginas (exemplar no acervo do historiador santista Waldir Rueda), composto e impresso nas
Oficinas Gráficas da Editora Cupolo Ltda., da capital paulista (ortografia atualizada nesta transcrição):
Pequeno histórico da Mayrink-Santos
Meus serviços prestados a essa linha entre Mayrink e Samaritá
Antonio Francisco Gaspar
[...]
2ª PARTE - ESTUDOS E CONSTRUÇÃO
XXVI - Ainda algumas anotações do meu Diário
Pai Matias - No sábado, 27 de novembro de 1937, foram ligados os trilhos da
linha Mayrink-Santos na ponte nº 4, próximo à estação Chapéu, passando a locomotiva nº 280 que, de Mayrink, fora escalada para esse fim, tendo por
maquinista o sr. Antônio Antunes Ferreira. Foi um festivo momento para todos aqueles que assistiram à tão almejada ligação. Hosanas!
Esse diligente maquinista, entusiasmado, por ser o primeiro a descer a Serra, ia
constantemente puxando o cordel do apito da locomotiva, e seus silvos atroadores perdiam-se nas profundas grotas e nos altos da Serra, anunciando
que a Mayrink-Santos estava ligada e mais uma via férrea buscava o mar, o porto de Santos. Esse primeiro trem, que partira de manhã da estação de
Mayrink, era composto de vagões carregados com Cimento Votoran, Sorocaba, chegando a Santos às 16 horas.
Então, como já estavam correndo trens de carga, em caráter provisório, e o trecho Rio
dos Campos a Samaritá tem uma grande distância entre esses dois pontos, na segunda-feira, 29, recebi ordem para com José Laureano Cunha seguir a Pai
Matias e dali ir fazendo as instalações necessárias dos aparelhos telegráficos e telefones Seletivos, nessas cinco estações desse trecho.
Em Pai Matias, o 1º encarregado telegrafista que para ali foi nomeado era o sr. Artur
Belém. Bom moço, cavalheiro e de bons costumes. Era fiel, leal servidor e cumpridor de seus deveres para com a Sorocabana e seus amigos, naquele
lugar ermo e tenebroso e, na maior parte do ano, quase sempre com abundantes chuvas.
Uma vez que o sr. Belém já estava ali há dias, instalei o telefone Seletivo e o
aparelho telegráfico para ele poder dar as licenças para os trens de cargas trafegarem.
Ali, também, a Inspetoria dos Telégrafos e Iluminação tinha destacado o guarda-fios
Francisco Américo de Oliveira.
À noite, depois do serviço e jantar, improvisávamos uma tocata com alguns
trabalhadores das turmas de avançamento. Um tocava sanfona, outro bandolim, mais um outro violão, outro cavaquinho e eu, também violão.
"Saudades do Matão", "Dirce", "Nas asas de um anjo" e tantas
outras valsas que em 1937 estavam em voga. Nós executávamos para nós mesmos escutarmos e apreciarmos, pois auditório éramos nós mesmos.
Numa dessas noites em que nós fazíamos as nossas serenatas, e como a estação de Pai
Matias, por não correr trem à noite, fechava o expediente às 21 horas, eu pedi tocar a valsa "Saudades de Matão" e, colocando o fone do
telefone Seletivo no ouvido, apertei o botão do microfone e pus-me a escutar o sr. despachador do Centro Seletivo de Santos procurar pela linha,
quem estava fazendo serenata e prejudicando o serviço do Movimento de Trens.
O sr. Belém não estava satisfeito com isso, mas como a estação de Pai Matias recebeu
ordem de fechar, nem ele e nem eu podíamos nos apresentar, é lógico.
O sr. despachador procurava descobrir onde seria a tocata: chamou Rio dos Campos,
Samaritá, Itariri, Itanhaém, Cedro, Juquiá e mais outras estações, inclusive também Pai Matias. Mas nós não podíamos atender o chamado, porque
estava fechada a estação, com ordem do próprio despachador de Santos. Se atendêssemos o sr. despachador, então teríamos pegado com a "boca na
botija". As estações de Cedro e Rio dos Campos estavam sendo apontadas como era delas que partia a "misteriosa" tocata.
Às 22 horas, terminamos a seresta e fomos nos acomodar, cada um para o seu pouso, e
jamais o sr. despachador pôde saber o certo, qual a estação que esteve prejudicando o serviço do Movimento de Trens.
Enfim, até o dia 19 de dezembro, eu com José Laureano Cunha estivemos instalando todos
os aparelhos necessários ao serviço para licença de trens. Trabalhávamos simultaneamente nas estações Mãe Maria, Rio dos Campos, Acaraú, Chapéu,
Gaspar Ricardo e Sales da Cruz. Todas as estações são de tijolos, menos a de Chapéu, que até hoje é de tábuas.
Não tínhamos horário para o serviço, pois, como estávamos na Serra, trabalhávamos dez,
doze e até mais horas por dia, para nos ver livres daqueles abruptos lugares.
Despachamos para São Paulo, via Mayrink, o vagão com as sobras dos materiais e, num
caminhão, descemos até Cubatão e pela S.P.R. subimos a São Paulo, onde, na Oficina Telegráfica, recebemos ordem de prosseguirmos a Piraju, instalar
luz elétrica no armazém de cargas e pátio da estação.
Em Piraju, dia 31, recebi telegrama para regressar à Oficina Telegráfica, São Paulo,
para recebermos nossos vencimentos e passe-livre de estação a estação.
E, assim, terminou o atribulado ano de 1937.
Muitos serviços, viagens e contratempos que fiz e que passei nesse ano foram
executados por mim, sempre com prazer. Nunca fiquei aborrecido com essas inesperadas viagens. Jamais tive constipações, maleitas ou outra doença.
Tenho anotado no meu Diário muita coisa, porém não desejo prolongar mais este
capítulo. Ficamos por aqui.
Mayrink a Santos - Ligação Via Permanente
Imagem e legenda reproduzidas do livro
Mãe Maria - 1935 - Voltemos atrás. Em janeiro desse ano
eu estava alojado em Pai Matias, designado para fazer serviços na Serra.
Descia a serra da Mayrink-Santos com o ajudante Cunha num trem de lastro. Era de
manhã. Descemos desse trem num corte em meio de grandes montanhas, com o fim de instalar aparelho telegráfico numa casinha de tábuas.
Eu e Laureano Cunha estávamos no futuro pátio da estação Mãe Maria. Foi numa casinha
de madeira que instalamos o primitivo aparelho telegráfico. A estação de tijolos ainda não estava projetada e nem se sabia onde seria edificada.
Após termos ingerido uns sanduíches de mortadela acompanhados com algumas bananas,
pus-me a fumar os meus inseparáveis charutinhos catarinenses, que eu jamais deixava de os levar nos bolsos com o fim de fumá-los e com sua fumaça
afugentar as centenas de mosquitos borrachudos que nos amolavam constantemente.
O ajudante Laureano não fumava. E os mosquitos, a todo o instante, o atacavam,
picando-o de ferroadas. Eu nunca fui picado por esses insetos.
- Sr. Gaspar. Antes deste parco almoço, eu já contei 11 pontas de charutos -, disse o
ajudante Cunha.
- Pudera. Pela força de constantemente fumá-los, eu não sou picado por borrachudo
ou outro mosquito qualquer -, respondi contente.
- Meus braços, meu rosto, estão cheios de ferroadas, coçam, ardem, mas não hei de
fumar.
- O fumo não estraga a saúde. Quer um?
- Não, senhor. Prefiro ser picado.
- Está bem.
E com este diálogo reencetamos os nossos serviços.
Às 18 horas passa o trem de lastro que ia pernoitar em Pai Matias. Embarcamos nele e
também fomos para lá pernoitar. Chovia ininterruptamente uma chuvinha miúda.
No dia seguinte, ao voltar para Mãe Maria, encontrei-me nesse trem de lastro com o dr.
Vercesi, engenheiro ajudante da 1ª Seção de Construção.
- Como vai o serviço, sr. Gaspar? - perguntou-me.
- Vai bem. Amanhã, se Deus quiser, vamos para Acaraú. Hoje ainda ficamos em Mãe Maria.
O trem de lastro corria. Antes de chegar em Mãe Maria, o dr. Vercesi pediu-me um
cigarro.
- Não tenho, dr. Se quiser tenho charutinhos "mata-mosquitos". São bons.
Experimente um -, disse, entregando-lhe o charutinho catarinense. O dr. Vercesi acendeu-o e fumou.
- Que tal?
- Não é mau. Tem um gosto bom e agradável.
- Mosquito não me pica. Esvoaça ao meu redor. A fumaça os afugenta -, disse-lhe.
A locomotiva silvou. Chegamos em Mãe Maria. Desci do trem com o Cunha. O trem
prosseguiu sua rota.
O foco de borrachudos, naquela época era intenso e, talvez, ainda hoje seja
enérgico.
À tarde, de volta do serviço em Mãe Maria, para pernoitar em Pai Matias, o dr. Vercesi
pediu-me mais um charutinho. Pois ele gostou do "mata-mosquito".
E, daí por diante, quando ele me via pela Mayrink-Santos, era só: - Mais um "mata-mosquito",
seu Gaspar?!
E eu, quando ia a serviço na serra da Mayrink-Santos, levava sempre 1/2 dúzia de maços
de charutinhos, pois custavam 800 réis, cada maço de 20 charutinhos, e eu gostava de presentear esse bom e modesto engenheiro.
Sr. Daniel Neiva Ferro, fiscal de túneis e viadutos (o primeiro da direita para a
esquerda do leitor) e seus auxiliares, túnel 5 da linha Mayrink-Santos, em fevereiro de 1935
Imagem e legenda reproduzidas do livro
Acaraú - Dia 20 de fevereiro de 1935, segui para a linha Mayrink-Santos em
companhia do dr. Probo Falcão Lopes. Pela S.P.R. desembarcamos em Cubatão e de ônibus ao S.16, a fim combinarmos serviços na Serra. Regressamos
pernoitar em Santos, Hotel 2 de Maio, Rua São Bento.
No dia seguinte à Cubatão e dali ao S.5, 2ª seção, dr. Nahúl Benévolo, onde chegamos
às 9 horas. Às 11 horas seguimos de caminhão nº 580, novamente ao S.16, 4ª seção, dr. Nobre Mendes. Estivemos com dr. Quintela, 3ª seção, escolhendo
lugar para ser instalado um aparelho telegráfico.
Regressamos ao S. 12. Às 17 horas viemos pernoitar no acampamento do S. 5, 2ª seção de
construção.
Dia 22, sexta-feira. Às 6 horas junto com o sr. Juvenal Vicente, feitor turma do
telégrafo e 3 trabalhadores, instalamos aparelhos no S.12, S.16 e viemos pernoitar ao S.5. No dia seguinte 23, sábado, eu e dr. Probo fomos até o
Viaduto nº 4, onde fiquei conhecendo o sr. Daniel Neiva Ferro, fiscal de Viadutos e Túneis da 2ª seção.
O túnel 3 em construção - 1934 - O sr. Daniel Neiva Ferro e auxiliares
Imagem e legenda reproduzidas do livro
O sr. Daniel nos mostrou toda a estrutura desse grande viaduto sob sua fiscalização.
Mostrou-nos mais como eram abertos os túneis em rocha viva ou terra pelos engenheiros das diversas firmas empreiteiras que tomaram a si esse encargo
na Mayrink-Santos.
Entre Rio dos Campos e Estaleiro, estavam projetados cerca de 28 túneis, sendo que o
maior é de 320 metros e os outros variam entre 80 e 200 metros. O túnel 2A, que é hoje o túnel 3, e o túnel 4 não têm revestimento. Foram perfurados
na rocha viva, não foi preciso revesti-los.
Túnel 30 - Empresa José Giorgi, empreiteiro
Imagem e legenda reproduzidas do livro
Entre Mayrink e Rio dos Campos foram perfurados mais 4 túneis: os 29, 30, 31, sendo o
túnel 32, metade em céu aberto - lado de Mayrink - foi confeccionado com estacas de 12 metros de comprimento, batidas com um potente martelo
bate-estacas. Esse processo de escavação do corte, mediante a prévia cravação das cortinas de estacas metálicas "Larsen", implicou uma solução
original na técnica ferroviária, pois foi executada nesse túnel com o melhor êxito, economia e segurança preventiva de futuras quedas de barreiras.
Em todos os túneis da Mayrink-Santos foram adotadas as alturas de 6 metros e 80
centímetros acima dos dormentes por 9 metros e 30 centímetros entre paredes. Esse amplo e confortável gabarito foi estudado para bitola de 1 metro
ou 1 metro e 60 centímetros entre trilhos e futura eletrificação. Enfim, o sr. Daniel Neiva Ferro foi mui amável e gentil para conosco nessa visita
que a ele fizemos em seu setor, proporcionando-nos tão proveitosa e sugestiva descrição dos túneis e viadutos.
Em fins de 1932 e princípios de 1933, correu a notícia que a linha Mayrink-Santos
estava à venda. Aliás, os trabalhos prosseguiam ativamente em todos os setores. Careciam de fundamento esses boatos, pois eu estava sempre a
instalar telefones, telégrafos, betoneiras etc., onde eram precisos para o bom andamento dos serviços.
Acompanhado do mundo oficial e do dr. Gaspar Ricardo Júnior, diretor da Sorocabana, o
sr. interventor federal general Waldomiro de Lima, em outubro de 1932, rumou em visita às obras da Mayrink-Santos. Ele observou que os trabalhos
dessa linha eram feitos com atividade.
50.000 contos de réis foram autorizados à linha Mayrink-Santos por esse progressista
interventor de São Paulo.
Não se pretendia vender a Mayrink-Santos, desmentiu o ilustre dr. Fonseca Teles,
secretário da Viação. Esse boato teve assim o seu término. Como nasceu, morreu. Tanto isso era falso que o governo do Estado estava prosseguindo
essas obras em construção.
Mais um crédito especial de 14.000 contos de réis, para pagamento das medições
vencidas da Mayrink-Santos, foi designado pelo decreto nº 5.763, em 15 de dezembro de 1932. A Secretaria da Viação também, assim, desfez esse
nefando e injustificável boato.
O grande empreendimento da engenharia nacional foi testemunhado nas grandiosas obras
da Mayrink-Santos, onde se observava, nos diversos trabalhos executados, a árdua tarefa dos nossos exímios engenheiros brasileiros, que conseguiram
no ano de 1937 a ligação dos trilhos dessa magnífica linha da Sorocabana ao Mar.
No S.5, também fiquei conhecendo o dr. Afonso Bauer, dr. Sinésio Oliveira Barbosa, sr.
Iderval Carvalho, sr. Gonçalo Monteiro da Silva e outros, cujos nomes me escapam à memória. Bons amigos, hospitaleiros, Deus os tenha.
Nesse mesmo dia, às 14 horas, seguimos de ônibus a Cubatão e dali a Santos, onde no
dia seguinte estivemos no trecho S.1, 1ª seção de construção. Fiz uma revista nos telefones dessa seção e no aparelho telegráfico de Estaleiro. Dia
26, regressamos a São Paulo.
Dia 8 de novembro de 1935, pela S.P.R., segui para Santos, com o fim de substituir o
encarregado da 5ª zona telegráfica - Santos a Juquiá, sr. Mário Liguori.
Durante minha estadia em Santos fiz diversos serviços de minha alçada nessa zona,
inclusive, a pedido do chefe de Santos, sr. Armindo Ramos, eu coloquei a caixa de ferro do Correio parafusada na grade de ferro da entrada da
plataforma da estação Ana Costa. Arranjei dois parafusos de ferro 5/8" x 3" para esse serviço, com o sr. Corrêa do Almoxarifado, e aderi à grade a
dita caixa do Correio.
Foram trocados, na linha telegráfica entre Itariri e Cedro, postes de madeira por
postes de trilho tipo 20.
No fim de novembro, terminadas as férias do sr. Mário Liguori, e este entrando em
serviço, regressei pela S.P.R. a São Paulo.
E assim, na Mayrink-Santos, Santos-Juquiá, tronco e ramais da E.F. Sorocabana, eu ia
sempre atuando com presteza, meus indeléveis serviços.
Túnel 31 - Empresa José Giorgi, empreiteiro
Imagem e legenda reproduzidas do livro
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